CineOP – “Martírio” transforma-se em poderosa vitrine do projeto Vídeo nas Aldeias

Por Maria do Rosário Caetano, de Ouro Preto

A 12ª edição da CineOP (Mostra de Cinema de Ouro Preto) ficará na memória dos cinéfilos, pesquisadores e professores, que a frequentaram nos últimos dias (21 a 26 de junho), como “o festival da emergência ameríndia”. Foi aqui que o projeto Vídeo nas Aldeias, criado por Vincent Carelli e equipe, há 30 anos, foi festejado com projeção de filmes, mesas-redondas, fotos de beleza arrebatadora e painéis informativos espalhados pelo centenário Cine Vila Rica e pelo Centro de Convenções de Ouro Preto.

A sessão que exibiu “Martírio”, o mais festejado filme de Vincent Carelli (e seus parceiros Ernesto de Carvalho e Tita), foi prestigiada por significativa plateia, no imenso Cine Praça, portanto, ao ar livre. E os espectadores, em especial professores, não se assustaram como os 160 minutos de duração do filme. Na manhã desta segunda-feira, 26 de junho, muitos deles prestigiaram o debate “Emergências Ameríndias”, que reuniu Vincent Carelli à cineasta Marcela Borela, de Goiás, ao professor André Brasil (da UFMG) e ao coordenador da Rede Kino, Carlos Eduardo Miranda, para juntos discutirem a produção de imagens indígenas, com foco especial em “Martírio”.

Antes de iniciar sua intervenção, Marcela (autora, com o irmão Henrique Borela, do longa documental “Taego Ãwa”) festejou mais um prêmio para “Martírio”: o de melhor filme no FICA (Festival Internacional de Cinema e Meio-Ambiente), realizado na cidade de Goiás Velho. Além de troféu, o longa ganhou prêmio em dinheiro no valor de R$ 70 mil. Desde que estreou no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro de 2016, que os realizadores de “Martírio” acumulam reconhecimento e prêmios nacionais e internacionais. Depois de ser preterido pelo júri oficial e consagrado pelo júri popular como o melhor filme da competição brasiliense, “Martírio” ganhou o Prêmio Spcine de melhor documentário da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e, em seguida, venceu a competição ibero-americana do Festival de Mar del Plata, na Argentina, e o Festival Janela do Cinema, no Recife. Foi selecionado para a sessão inaugural da Bienal de Cinema Indígena, em São Paulo, e para o Festival de Cinema Brasileiro, em Paris.

Na mesa que debateu “Emergências Ameríndias”, Marcela Borela analisou a singular trajetória do filme de Carelli, Ernesto e Tita: “Martírio preservou seu ineditismo até ser exibido no Festival de Brasília, mas no dia seguinte já estava disponibilizado para instituições comprometidas com a causa indígena, sem se preocupar com a hierarquia do mercado exibidor, com janela para TV, com regulamentos de festivais”. Foi lançado pela distribuidora Vitrine, no Projeto Petrobras de Cinema Brasileiro, vendeu mais de seis mil ingressos (“sete mil”, registrou Carelli), mas não deixou, em nenhum momento, de ser oferecido para sessões gratuitas em bienais, festivais, cineclubes, seminários, aldeias etc”.

Vincent Carelli complementou a fala de Marcela, lembrando ao público presente que, se alguém desejasse ver o filme, que entrasse na página de “Martírio”, no facebook, e solicitasse gratuitamente o endereço de acesso digital. “Só exigimos” –ponderou – “que nos façam relatório da sessão e nos digam quantos espectadores compareceram”. Assim – justificou – “problematizaremos a classificação da Ancine, que nos define como filme de nicho”. Além dos 7 mil ingressos vendidos no circuito comercial (dado significativo para um “filme de índio” com 2h40 de duração), o épico ameríndio já foi visto em dezenas de festivais (no Centro Cultural São Paulo, durante a Bienal Indígena, para evitar quebra-quebra, foi providenciada sessão extra), em aldeias Guarani e Kaiowá, em escolas e cineclubes. Para mostrar a disposição de exibir o filme onde houver gente interessada em vê-lo, Vincent Carelli avisou: “não precisa procurar a Vitrine, não! Nosso acordo com a distribuidora deixou claro, desde o início, que o filme continuaria sendo oferecido gratuitamente a quem quisesse vê-lo e não tivesse acesso ao circuito tradicional de salas”.

As entrevistas de Carelli pelos mais variados veículos impressos e digitais continuam se multiplicando. Até na ZUM-IMS, revista destinada ao mundo da fotografia, Carelli foi entrevistado. No volumoso e denso catálogo da CineOP XII, o Vídeo nas Aldeias e seu fundador ocupam 22 páginas fartamente ilustradas. E não se deve esquecer que uma das mais poderosas vitrines de “Martírio” foi a Bienal de São Paulo, a poderosa vitrine das artes visuais planetárias, criada por Ciccilo Matarazzo. Os curadores da mega e cinquentenária exposição paulistana solicitaram a Vincent Carelli, Tita e Ana Carvalho que criassem “instalação” inspirada no filme. Aí nasceu “O Brasil dos Índios: Um Arquivo Aberto”. O trabalho, que agora integrou-se à itinerância da Bienal por outras cidades brasileiras, pretende, como o filme, constituir-se em espaço de imersão em  imagens, gestos e cantos de povos indígenas”. Com sua força discursiva e imagética, a instalação se apresenta como “um ponto de resistência coletiva às tentativas de invisibilidade e apagamento histórico de grupos indígenas”.

Com enorme satisfação, Carelli contou, no debate na CineOP, que procuradores do Estado de Mato Grosso do Sul assistiram ao filme e solicitaram cópias em DVD para envio a juízes que costumam julgar processos e demandas jurídicas entre ruralistas e indígenas. Como se vê, nenhum dos trabalhos audiovisuais do Vídeo nas Aldeias – incluindo o belo e premiado “Corumbiara” (2009), o criativo “O Mestre e o Divino”, de Ernesto Carvalho (2013), e o cativante média-metragem “Já me Transformei em Imagem”, de Zezinho Yube (2008) – teve tamanha visibilidade e alcance social e político.

Quem quiser ler uma densa e profunda análise de “Martírio”, deve consultar o ensaio do professor André Brasil, preparado para o ForumdocBH, importante encontro de cinema documental, realizado na capital mineira. Na CineOP, o professor apresentou versão ampliada de seu estudo (que em breve estará disponibilizada na internet). Em “Martírio”, filme assumidamente engajado em uma causa (a defesa do povo Guarani-Kaiowá), André Brasil encontra uma “pedagogia do não-saber” e “vulnerabilidades que o enriquecem”. Há no filme, diz o estudo do professor da UFMG, “enormes blocos de imagens que constituem mise-en-scène do poder implacável (leilão de gado dos ruralistas, espetáculos da morte, formidáveis camionetes Hilux)”. Destas “imagens  massacrantes de um poder cínico”, os diretores de Martírio “nos desviam da estrada principal para pequena estrada vicinal, em busca de outras políticas, a dos indígenas”. Surgem então “testemunhos nunca auto-evidentes”. A análise de André Brasil prolonga e enriquece nosso contato com o filme. E nos motiva a revê-lo.

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