Cine Ceará 2017 homenageia o Chile
O Cine Ceará – Festival de Cinema Ibero-Americano de Fortaleza, que realiza sua 27ª edição de 5 a 11 de agosto, tem este ano o Chile como país homenageado. Por isto, o festival cearense promoverá mostra de cinema chileno, justo no momento em que esta nação andina vive uma espécie de primavera audiovisual.
A produção cresceu de forma significativa e nomes como Pablo Larraín, Andrés Wood e Sebastián Lelio vieram somar-se aos veteranos Patrício Guzmán, único latino-americano com dois filmes na lista dos 50 maiores documentários de todos os tempos do BFI (British Film Institute), Alejandro Jodorowsky, de 88 anos, e Raúl Ruiz (1941-2011).
A Mostra Chilena, que tem curadoria de Pablo Arellano e será exibida na bela sede da Caixa Cultural, no centro histórico de Fortaleza, compõe-se com 19 longas (16 ficções e três documentários) e um curta-metragem (“Adiós” , do crítico e cineasta Leopoldo Muñoz, o Pôlo).
Cinco dos filmes são ficções delirantes do chileno-mexicano Jodorowsky (“Fando y Lis”, “El Topo”, “A Montanha Sagrada”, “A Dança da Realidade” e “Poesia sem Fim”), quatro de Raúl Ruiz (três produções francesas – “Três Vidas e Uma Só Morte”, “Genealogia de um Crime”, e “O Tempo Redescoberto”, e uma chilena, “La Recta Província”), duas de Dominga Sotomayor (“De Quinta a Domingo” e “Mar”).
Cinco realizadores, com um filme cada, completam a seleção: Maite Alberdi (“Los Niños”), Marcia Tambutti Allende (“Allende, Meu Avô”), ambos documentários, Pablo Larraín (“Tony Manero”, protagonizado por seu ator-fetiche, Alfredo Castro), Sebastián Lelio (“Glória”, filme que projetou a atriz Paulina García no exterior) e Ignácio Agüero (“O que me Motiva II”).
O prolífico realizador de “Três Tristes Tigres” é o único integrante da mostra já falecido. Por causa do exílio, Ruiz, que havia realizado cinco filmes em seu país (na Chile Films, da era Allende), radicou-se na Europa. Realizou dois filmes para a TV alemã (“Diálogos de Exilados” e “Utopia”) e, durante quase quatro décadas, dirigiu dezenas de filmes na França, onde desenvolveu a parte mais substantiva de sua carreira. Começou a chamar atenção internacional com “As Três Coroas do Marinheiro” (1982), seu primeiro filme lançado no circuito de arte brasileiro. Ao morrer, com 70 anos, Ruiz deixou mais de cem filmes. Um deles, o lusitano “Mistérios de Lisboa” e o chileno “La Recta Província”, marco de seu regresso cinematográfico ao Chile natal.
Durante o Cine Ceará, a obra do realizador chileno-francês será analisada em masterclass ministrada pelo jornalista brasileiro Régis Frota, autor do livro “Raúl Ruiz e o Cinema Chileno Contemporâneo”. Outra masterclass analisará a obra de Pablo Larraín, premiado em diversos festivais europeus (e no Cine Ceará, em 2015, com “O Clube”). O crítico chileno Ernesto Garratt avaliará, além de “Tony Manero” e “O Clube”, os filmes “Post Morten”, “No”, “Neruda” e “Jackie”.
Ignácio Agüero – Diretor e “ator” discute com colegas o que o motiva a fazer cinema
Como a maratona da Mostra de Cinema Chileno começa na terça-feira, primeiro de agosto, e a mostra competitiva do Cine Ceará será aberta quatro dias depois (também com um longa chileno – “Una Mujer Fantástica”, de Sebastián Lelio), o público terá tempo prévio para ver os filmes e acompanhar as duas masterclass.
Na quarta-feira, dois de agosto, um documentário – “Como Me Da La Gana II” (O que me Motiva II), de Ignácio Agüero – será exibido em sessão única e servirá como vitrine privilegiada do cinema chileno contemporâneo. Realizado no ano passado, este longa documental de 86 minutos, retoma o curta-metragem “O que me Motiva I”, realizado por Agüero em 1985.
Há outra peculiaridade na trajetória do realizador destes dois filmes que o integra, de forma harmoniosa, à Mostra Chilena do Cine Ceará: ele trabalhou como “ator” de Raúl Ruiz, em dois filmes “Días de Campo” e “La Província Recta”. Mas, avisa, “são papéis pequenos”.
Agüero, de 65 anos, é um documentarista de grande reconhecimento nos países hispano-americanos. Em 1988, venceu o Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana, em Cuba, com “Cien Niños Esperando un Tren”. Sequenciou sua carreira com filmes para cinema e TV (incluindo “Neruda, Todo el Amor”, de 1998, para o Canal Plus) e, de vez em quando recebia (e aceitava) convites para papeis secundários em produções de conterrâneos (caso de Ruiz e Pablo Perelman).
Dois anos atrás, o cineasta aceitou missão bem mais desafiadora: protagonizar o longa “El Viento Sabe que Vuelvo a Casa”, de José Luís Torres Leiva. Trata-se de documentário que dialoga com a ficção e que foi festejado em diversos festivais. No Brasil, “O Vento Sabe que Volto para Casa” venceu, ano passado, o V Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba. Sua receptividade no Paraná foi tão grande, que Agüero participou, em maio último, do VI Olhar de Cinema, agora na condição de homenageado. Além de ministrar masterclass sobre seu processo de trabalho, o chileno acompanhou a exibição de alguns de seus filmes. E conversou com a Revista de CINEMA.
Sua descoberta no Brasil se deu não com os documentários que você dirigiu, mas sim com seu desempenho como “ator-protagonista” do premiado “El Viento Sabe que Vuelvo a Casa”. Você se sente também um ator?
Não, de forma alguma. Sou um realizador. Atuei, em pequenos papéis em filmes de colegas como Raúl Ruiz e Pablo Perelman, mas interpretar não é meu ofício. Tanto que rejeitei convites quando me chamaram para papéis que me exigiriam o exercício da representação. Alguns tiveram coragem para me convidar para personagens muito diferentes de mim e de meu ofício, no cinema e na TV, e eu rejeitei, pois temia colocar tudo a perder.
Mas seu trabalho, em “El Viento Sabe que Vuelvo a Casa”, é imenso, você é o protagonista absoluto do filme.
Mas faço, no filme, o que sei fazer: ser um documentarista que conversa com as pessoas. Quando José Luís me convidou, ele me disse, primeiro, que gostava do meu trabalho como documentarista, e segundo, que queria que eu fosse a uma ilha chilena conhecer pessoas e conversar com elas. Como conhecer e conversar com pessoas é um procedimento fundamental no meu cinema, aceitei. Eu sabia que faria isto com muita naturalidade e segurança. Ouvir o outro é uma prática que tem tudo a ver com meu interesse pelo outro. É muito rico estar aberto a aprender com pessoas, ouvir o que elas têm para contar.
Você define “El Viento Sabe que Vuelvo a Casa” como um documentário ou uma ficção?
O filme tem elementos documentais e ficcionais. O documentarista, que eu “interpreto”, vai às ilhas Chiloé, realizar investigações para um primeiro longa ficcional, baseado em premissa que daria origem a um antigo projeto documental, nunca realizado. No começo dos anos 1980, na Ilha Meulín, em Chiloé, um jovem casal de namorados desapareceu nos bosques da região, sem deixar vestígios. Um mito se criou em torno deste desaparecimento trágico. Fui, então, como “personagem” do filme de José Luis, buscar locações e atores não-profissionais para que pudéssemos descobrir o que restava, na memória das pessoas, da história de amor entre uma nativa da ilha, uma indígena, e um rapaz nascido em família de origem espanhola. Foi uma experiência muito enriquecedora.
Você realizou, em 1985, um curta muito bom, “O que me Motiva”, no qual conversava com jovens cineastas sobre o que os instigava a fazer cinema no Chile. Retomou, ano passado, o projeto, realizando o longa “O que me Motiva II”, vencedor do Festival Internacional de Documentários de Marselha, na França. O que o motivou a fazer esta continuação?
Primeiro, não fiz uma continuação. Na verdade, realizei uma “conexão” com o filme que realizara 30 anos antes. No curta, ouvi Juan Francisco Vargas (diretor de “Santiago Blues”), Patrício e Juan Carlos Bustamante, que estavam realizando “La Isla”, Tatiana Gaviola (“Machalí,1951”), Joaquín Eyzaguirre (“Dolores”), Luis Vera (“Hechos Consumados”), Cristián Lorca (“Nemesio”) e Andrés Racz (“Dulce Patria”). Já em “O que me Motiva II”, além de José Luis Torres Leiva, com quem trabalhei em “El Viento Sabe que Vuelvo a Casa”, converso com Pablo Larraín, durante as filmagens de “Neruda”, Marialy Rivas, diretora de “Princesita”, que fala de seu interesse por um olhar homoafetivo, Cristopher Murray (“El Cristo Ciego”), Cristián Jiménez y Alicia Scherson, diretores de “Vida de Família”, Roya Eshraghi (“El Árbol”) e Niles Atallah (“Rey”). O filme seria uma continuação se eu, por exemplo, tivesse ouvido os mesmos realizadores.
E você pensa em fazer uma continuação para valer de “Cien Niños Esperando un Tren”, melhor documentário em Havana? Ou seja, procurar aquela professora, que estimulava as crianças a amar o cinema, para ver que rumos tomaram?
Não. O que eu queria fazer, eu fiz naquele momento (1988). Ainda mantenho contato com a professora Alícia Vega, que vive na mesma casa de 30 anos atrás. Alguns dos meninos, hoje adultos, mantiveram contato com ela. E eu os reencontrei algumas vezes. Não vejo razão para voltar a este filme.
O cinema e a memória histórica fazem parte de seu universo de trabalho. Você realizou um filme – “El Diário de Agustín” (Agustín Edwards Eastman, proprietário dos jornais El Mercúrio, La Segunda e Las Últimas Notícias) – sobre a linha editorial de importantes veículos de comunicação chilenos durante a ditadura militar.
O que me interessa, ao fazer um filme, é partir de imagens ou de uma situação. O que é a memória? Difícil dizer, até porque ela está impregnada em tudo que fazemos. Quanto ao filme a que você se refere – “El Diário de Agustín” –, ele foi construído a partir de um grupo de estudantes de Jornalismo, de importante universidade chilena, que investigava casos de violação de Direitos Humanos. Trabalhamos juntos.
Por Maria do Rosário Caetano