Festival de Gramado – Homenagem a Soledad Villamil em noite de filme intimista e de falso documentário brasileiro
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado
A “cantriz” argentina Soledad Villamil, que coprotagonizou, com Ricardo Darín o oscarizado “O Segredo dos seus Olhos”, esteve no centro das atenções na sétima noite do 45º Festival de Cinema de Gramado. Noite que se complementou com dois longas-metragens – o peruano “La Última Tarde”, de Joel Calero, e o brasileiro “Bio”, de Carlos Gerbase. Ambos devem figurar na lista dos premiados com troféus Kikito. E com dois curtas, um gaúcho, “Mãe de Monstro”, baseado em conto homônimo de Guy de Maupassant, e a animação goiana “O Violeiro Fantasma”.
A homenagem a Soledad foi das mais belas e merecidas. Atriz de teatro e cinema, além de cantora (com seis discos gravados), ela assistiu, do palco, a quatro afetuosos depoimentos em sua homenagem. Dos EUA, os gaúchos Paulo Nascimento e Leonardo Machado enviaram a ela carinhosa mensagem. O diretor e seu ator-fetiche estão filmando série brasileira em solo estadunidense e não puderam prestigiar, ao vivo, a estrela de “Teu Mundo Não Cabe nos meus Olhos”, filme que será lançado em março de 2018. Depois, foi a vez do parceiro da atriz nesta produção gaúcha, o paulista Edson Celulari, dar seu depoimento, também em vídeo projetado na imensa tela do Palácio dos Festivais.
O ator relembrou a qualidade do trabalho de “Sole” (assim a chamam os amigos) e a recepção que ela deu a ele, em uma de suas apresentações musicais. “Eu ainda estava careca por causa de tratamento quimioterápico contra um câncer” – lembrou – “e fui assistir ao show de Sole. Estava na plateia, com minha mulher, quando ouvi a voz dela interpretando uma canção de Djavan. Uma canção que ela sabia que eu amava”.
O último a falar foi Ricardo Darín, que não pode, por razões profissionais, vir a Gramado, mas fez questão de saudar, em vídeo especial, a parceira em “O Mesmo Amor, a mesma Chuva” (filme pelo qual ela ganhou o Condor de Prata de melhor atriz) e “O Segredo dos seus Olhos”, ambos de Juan José Campanella. O protagonista de “Nove Rainhas” destacou as qualidades da atriz e amiga e reforçou a justeza dos que a escolheram como nova detentora do Kikito de Cristal, láurea atribuída aos que dão significativa contribuição ao cinema latino-americano.
Depois de ser festejada pelos profissionais de cinema que a dirigiram ou por parceiros de cena, Soledad agradeceu ao prêmio e contou breve história. “Na minha infância, a Argentina vivia dias difíceis, sob ditadura. Meus pais me trouxeram para férias no Brasil. Me lembro de crianças brasileiras que não entendiam bem o que eu falava, mas que me receberam com carinho e afeto, brincando comigo”. Agora, prosseguiu, “vocês, adultos, me recebem com igual carinho, nesta noite, com este Kikito de Cristal, ao qual agradeço. Acabo de realizar um filme, o meu primeiro no Brasil, e estou muito feliz”.
“Sole” acaba de lançar seu sexto CD (já disponível no Spotfy) e vai cantar quatro músicas na noite de premiação (neste sábado, 26, com transmissão ao vivo pelo Canal Brasil, a partir das 20h30). A pedido de Roger Lerina, um dos apresentadores da homenagem, e do público, ela deu uma “palhinha”: interpretou à capela uma jocosa canção de Tita Merello, atriz e cantora de tangos, que ela definiu “como uma espécie de Carmen Miranda argentina”. Foi aplaudida com entusiasmo.
Guerrilha e intimismo
O longa-metragem peruano “La Última Tarde”, sexto concorrente da Mostra Latina, se fez representar em Gramado por seu diretor Joel Calero e por sua coprotagonista, a atriz Katerine D’Onofrio. Seu parceiro neste drama intimista, com evocação dos tempos da guerrilha, o ator Lucho Cáceres, não pode vir a Gramado.
O concorrente peruano teve boa acolhida do público e da crítica. No debate, foi saudado como o favorito (falta ainda um concorrente, o argentino “Pinamar”, de Federio Godfrid) ao Kikito de melhor produção latina. Se ganhar, dará ao Peru, passados 17 anos, o prêmio máximo conquistado por “Pantaleão e as Visitadoras”, de Francisco Lombardi, aqui laureado em 2000.
“La Última Tarde”, segundo longa de Calero, reaproxima dois ex-guerrilheiros, Ramón, de pele morena, e Laura, de pele muito clara. Ele de origem modesta, morador de Cuzco, ela filha da burguesia limenha. Os dois militaram no MRTA (Movimento Revolucionário Tupac Amaru), de orientação guevarista, mais urbano e menos influente que o Sendero Luminoso, maoísta e com penetração camponesa. Laura abandonou o companheiro e hoje é uma influente publicitária. Ramón trabalha em organização que concede microcrédito a pequenos agricultores. Os dois se reencontram, passados 19 anos, para homologar o divórcio. Passarão uma tarde juntos e reverão mágoas e desconfianças do passado.
O filme é construído em grandes planos-sequência, pelas ruas de Lima ou dentro de taxis, restaurante ou banheiro. E é justo num banheiro que acontecerá sua sequência mais polêmica (questionada pelas feministas): ele espancará, com violência, a ex-companheira. Em seguida, os dois serão vistos em cena de intimidade na cama.
O diretor e a atriz lembraram que “o personagem Ramón, que já havia agredido ladrão que furtara o carro de Laura, agredirá a ex-companheira por desconfiar que ele, sobrinha de um militar ligado à repressão ao MRTA, teria entregado a organização às forças repressivas”. Portanto, “há uma coerência interna à narrativa, não um ato gratuito”.
Outro questionamento feito ao filme foi motivado pelo perfil atribuído ao ex-guerrilheiro, visto como um estereótipo da violência. Joel Calero se defendeu: “não fiz um filme sobre dois guerrilheiros que formaram uma “pareja” (casal), mas sim, sobre uma “pareja” que integrou a guerrilha. Meu foco não está no passado deles, tanto que o filme não tem nenhum flashback. É no presente, no agora, 19 anos depois da guerrilha, que eles se colocam. Não estou dizendo que todos os ex-guerrilheiros são violentos. Mas Ramón, sim, é violento, guarda ressentimentos e visível apego ideológico ao passado, mantém uma idealização do povo. Quis questionar isto, pois no Peru, 35% dos que apoiam o Fujimorismo vêm das classes populares. Não podemos manter do povo a imagem idealizada presente em alguns versos de Mario Benedetti ou em alguns filmes de Ettore Scola”.
BIO (Biologia Social)
A apresentação do falso documentário “Bio”, dirigido pelo gaúcho Carlos Gerbase, no Palácio dos Festivais, foi concorridíssima. Afinal, entre os 39 atores que dão “depoimentos” ao filme (para compor a fragmentada história de um homem que viveu 101 anos) estavam Maitê Proença (causando alvoroçou entre centenas de fãs no tapete vermelho), Tainá Muller e uma série de atores muito conhecidos no Rio Grande do Sul, como Zé Victor Castiel e Felipe Kannenberg.
“Bio”, que evoca vida e biologia, entusiasmou o público e rendeu aplausos animados a este que é o único longa gaúcho na competição brasileira. Para tanto, contribuiu, também, a mobilizadora e irresistível “Pavão Misterioso”, cantada sobre os créditos, por Ednardo. Havia pessoas cantando, e até dançando, ao final da sessão. Gerbase, que é professor de cinema na PUC-RS, tem como um de seus focos de estudo (e aulas) o cinema documentário. Daí seu desejo de realizar um falso documentário, um “zelig” dos pampas.
O roteiro de “Bio” surgiu da imaginação do cineasta e, também, de experiências pessoais (Gerbase nasceu, como seu protagonista, em 1959, e foi fruto de falha na “tabelinha”, forma de controle anticoncepcional recomendada pela Igreja). A narrativa compõe-se de 13 partes, separadas por datas, logradouros ou fatos históricos. Os atores estruturam (com depoimentos na linha talking heads/cabeças falantes) verdadeiro quebra-cabeças que nos permite conhecer, mesmo que fragmentariamente, a trajetória de um homem que fez importantes descobertas científicas. Um homem que amou muito e deixou quatro núcleos familiares. Mas dele não veremos uma única imagem, nem saberemos seu nome. Com ele chegaremos ao futuro, já que o falso documentário entrará em clima de ficção científica, e se estenderá até o ano de 2060.
O filme chamou atenção por seu numeroso (e eficiente) elenco, capaz de cativar o espectador, mesmo em aparições fugazes, e por excelente carpintaria técnica (fotografia de rara beleza de Bruno Polidoro, criativa direção de arte de Bernardo Zortea, que inseriu os 39 persongens em 27 cenários diferentes, e montagem precisa de Milton do Prado). Um filme de difícil definição, que pode surpreender na noite dos Kikitos.
Os dois curtas da competição brasileira tiveram recepção complicada. O terror “Mãe de Monstro” incomodou as feministas pelas cenas de tortura que inflige ao corpo de uma jovem mulher, futura mãe de gêmeos siamenses. Eles serão usados como atração freak num circo. A diretora Júlia Zanin de Paula, de 22 anos, já havia saído sem nenhum prêmio da Mostra Assembleia Legislativa, o Gauchão. Prevenida, pediu ao público da mostra nacional que não assistisse ao curta como “uma obra literal, mas sim como uma narrativa metafórica”.
A animação goiana “O Violeiro Fantasma” moderniza, com influência pop, o universo imagético do cordel nordestino. O realizador Wesley Rodrigues, do maluquete “Faroeste, Um Autêntico Western”, segue em seu mergulho no mundo das HQs e filmes pop-psicodélicas, mas sem esquecer raízes brasileiras. Quem viu “Faroeste” lembra-se de referências à cultura interiorana brasileira. Desta vez, ele parte de repente cantado por dupla de violeiros paraibanos, registrada por Tânia Quaresma no filme setentista “Nordeste, Cordel e Repente” (e também em disco). A agilidade vocal da dupla, desenhada pelo cineasta e designer gráfico, dificultou, porém, a fruição e compreensão da narrativa (o diretor prometeu legendar o filme para futuras exibições). Mas o desenho do artista goiano (radicado, agora, por razões conjugais, em província argentina) é de grande beleza e vitalidade.