Fest Brasília – Filme de Daniela Thomas é duramente questionado em debate

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília

A sessão de “Vazante”, primeiro filme solo da cineasta Daniela Thomas e segundo concorrente da mostra competitiva do 50º Festival de Brasília, começou com atraso de 75 minutos e entrou madrugada adentro. Ao final, foi aplaudido.

Já no debate, realizado na manhã deste domingo, 17, a cineasta e sua equipe estiveram sob fogo cerrado. Artistas, críticos e estudiosos dirigiram à codiretora, de “Terra Estrangeira”, “O Primeiro Dia” e “Linha de Passe” (com Walter Salles) e ” Insolação” (com Felipe Hirsch), questionamentos duríssimos.

“Vazante” mexeu em tema mobilizador, agora mais do que nunca: as relações entre brancos, proprietários de terra, com negros escravizados. E o fez pelo ponto de vista de uma realizadora branca, nascida e criada na classe média intelectual carioca. Para dar seu ponto de vista, Daniela escreveu o roteiro de “Vazante” com Beto Amaral, que produziu o filme com a Dezenove de Sara Silveira e Maria Ionescu. Os dois roteiristas, brancos, deram a atores (e personagens) igualmente brancos, as funções de protagonistas. Ela é Beatriz (Luana Nastas), menina de 12 anos, dada em casamento a Antonio, um proprietário de terras, de 45 anos (interpretado pelo lusitano Adriano Carvalho).

O português vive do negócio da venda de escravos. E de gado. Deixa a mulher sozinha numa imensa fazenda mineira. A relação dela com um dos moradores da fazenda, um jovem escravo, vai mudar a aparente calma da grande propriedade.

Os questionamentos dirigidos ao filme centraram-se em pontos-chave: “os personagens negros não têm subjetividade”, “o filme santifica a menina branca” e os roteiristas (Daniela e Beto Amaral) “não procuraram fontes renovadas de análise ou ficções (como “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves) para embasar seu trabalho”. Até o orçamento do filme (de R$ 6 milhões, sendo R$ 1 milhão vindo de parceiros portugueses) e os cachês dados aos atores brancos e aos negros foram questionados.

O filme foi definido como “um Sinhá Moça ostentação”, “uma novela da Globo em ritmo mais lento”, ” uma obra que requisita certa inocência para reafirmar o status quo”. Até o ator Fabrício Boliveira, que interpreta Jeremias, um escravo fôrro, concordou com os questionamentos dirigidos ao filme. A atriz Jai Batista, que interpreta a escrava Feliciana, e o ator Vinícius dos Anjos (o jovem escravo Virgílio) estavam na mesa de debates, ao lado de Luana Nastas (Beatriz), mas ouviram mais do que falaram. A jovem Luana Nastas não se manifestou.

Daniela Thomas, no início, ainda tentou se defender, lembrando que o filme traz o ponto de vista feminino (o da pré-adolescente entregue a um casamento não desejado por ela) e que seria uma reflexão sobre o patriarcalismo na sociedade brasileira. Mas, à medida que as críticas iam se avolumando, acabou tomada por certa perplexidade. No final, admitiu que, depois de tão contundente debate, não faria mais o mesmo filme. Tudo indica que a cineasta compreendeu a complexidade do terreno minado em que se envolveu. No Brasil de 2017 não basta, pelo menos em filmes que abordam a questão afro-brasileira (em especial a escravidão), assumir-se como progressista por defender o olhar feminino.

Na mesma mesa em que sentou-se a equipe de “Vazante”, estava a equipe do curta-metragem “Peripatético”, da realizadora paulistana Jéssica Queiroz. A cineasta, que já realizou um filme sobre a escritora e catadora Carolina de Jesus, agora prepara um longa sobre “Adelia e Carolina”. Adélia, no caso, é umas das primeiras cineastas negras do país, Adélia Sampaio.

“Peripatético” registra o desafio de três jovens da periferia de São Paulo, que buscam o primeiro emprego, enquanto um trágico acontecimento – os ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) – agitam a megalópole e mudam o rumo das vidas dos três amigos. O filme tem roteiro de Amanda Radhika, responsável também pelas animações que enriquecem a narrativa.

No debate dos dois primeiros curtas da competição (“O Peixe”, do pernambucano Jonathas de Andrade, e “Nada”, do mineiro Gabriel Martins, do coletivo Filmes de Plástico) e do primeiro longa (“Música para quando as Luzes se Apagam”, do gaúcho Ismael Caneppele) não houve perguntas incômodas. As questões e comentários foram todos de tom elogioso.

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