Praça Paris
O medo é o sentimento dominante no décimo-primeiro longa-metragem de Lúcia Murat, “Praça Paris”, que estreia nesta quinta-feira, 26 de abril. Conhecida por suas ficções (“Quase Dois Irmãos”) e documentários (“Uma Longa Viagem”) marcados pelo enfrentamento da realidade social e política brasileira, a cineasta resolveu, aos 68 anos, dialogar com o cinema de gênero. Por isto, “Praça Paris” merece a qualificação de thriller psicológico que investe mais em atmosferas, que em diálogos.
Para ajudá-la no novo desafio, Lúcia buscou parceria com Raphael Montes, jovem (27 anos) escritor dedicado ao romance policial. Na verdade, um devoto e missionário da estética “noir”. Autor dos romances “Suicidas”, “Dias Perfeitos” e “Jantar Secreto” (e do livro de contos “O Vilarejo”), Montes estudou Direito na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), instituição que ocupa importante espaço (mental e físico) na narrativa de “Praça Paris”. Afinal, trabalham nesta instituição Glória (a mineira Grace Passô, premiada como melhor atriz no Festival de Rio) e Camila (a portuguesa Joana de Verona), as duas protagonistas do filme.
Lúcia conta que “Praça Paris” nascera, como ideia, há mais de dez anos. Uma amiga, professora universitária, dissera a ela que continuava difícil levar adiante trabalhos comunitários que aproximassem a Universidade das favelas cariocas. A cineasta resolveu pesquisar o assunto, enquanto realizava outros projetos. Quando o sonho de integração trazido pelas UPPs (Unidades Públicas de Pacificação) começou a apontar sinais de fracasso e as ONGs começaram a mostrar desânimo, Lúcia buscou ajuda de Raphael Montes, de quem lera o romance “Dias Perfeitos”. Juntos, subiram o Morro da Providência para conversar com moradores. A situação, porém, tornava-se cada vez mais complexa e a guerra instalou-se no morro. Na fase de filmagem, pouco foi realizado lá. E este pouco, para se viabilizar, exigiu difíceis negociações com os “donos” do Providência.
As protagonistas de “Praça Paris”, Glória e Camila, encontram, em certa medida, paralelo no emblemático “Quase Dois Irmãos” (2005), protagonizado por Jorge (Flávio Bauraqui) e Miguel (Caco Ciocler). Neste filme, ambientado na Penitenciária da Ilha Grande, Estado do Rio, na década de 1970, dois amigos de infância e de classes sociais diferentes (um, negro favelado, filho de pai sambista, o outro, branco e político de esquerda) se reencontram na mesma galeria carcerária. Os presos comuns aprenderão, então, com os presos políticos, técnicas de organização social que dariam origem ao Comando Vermelho.
Em “Praça Paris”, mais uma vez Lúcia se aproxima de personagens negras e brancas, oriundas de universo sócio-econômico diferentes. E regressa ao universo essencialmente feminino de seu primeiro filme “Que Bom te Ver Viva” (sobre mulheres que militaram em organizações clandestinas contra a ditadura militar).
Glória vive de seu trabalho, com carteira assinada, mas sob a proteção do irmão criminoso. E atormentada por pesadelos do passado. Relaciona-se, via terapia, com uma mulher branca, vinda da Europa. Em torno delas, gravitam personagens masculinos: Samuel (Digão Ribeiro) deixou o crime e trabalha como condutor de moto-taxi. Será a oportunidade amorosa cultivada e vivida intensa, mas rapidamente, pela ascensorista. Que, por sua vez, buscará consolo espiritual na igreja evangélica, comandada pelo pastor interpretado pelo ótimo Babu Santana. Martin (Marco Antonio Caponi) é o namorado argentino de Camila.
Em “Praça Paris” (o nome referencia logradouro moldado em praça parisiense, situado no bairro carioca da Glória), a ascensorista tornar-se-á paciente cada vez mais dependente da ajuda psicológica da terapeuta. Camila, que está no Brasil para desenvolver pesquisa sobre violência urbana, atua no Centro de Terapia da UERJ. Nas primeiras sessões de atendimento a Glória, que traz história conturbada e difícil (foi violentada pelo pai, tem no irmão, encarcerado, a proteção para seguir sua vida na comunidade onde vive), tudo parece ir bem.
Glória se abre com a psicóloga e vai revelando suas angústias e desejos. Mas, na terapia e na vida, as coisas vão saindo dos eixos. “Relação de transferência ao inverso” – explica Lúcia – “acabará por se impor”. E com consequências trágicas, pois “o medo do outro” acabará dominando a narrativa.
”Praça Paris”, coprodução Brasil-Portugal-Argentina, foi premiado no Festival do Rio (melhor direção e melhor atriz), no Festival de Havana (Prêmio Dom Quixote) e no Festin-Portugal (melhor atriz, mais uma vez para Passô). Foi selecionado para a competição oficial do Festival Internacional de Chicago e para o Festival de Talin – Black Nigth Films (Estônia).
Grace Passô, dramaturga, atriz e diretora teatral, tem neste filme seu primeiro trabalho como protagonista cinematográfica. Antes, ela fizera participação no longa “Elon Não Acredita na Morte”, de Ricardo Alves Jr. Agora, aguarda a estreia de mais dois filmes, igualmente mineiros – “No Coração do Mundo”, de Gabriel e Maurílio Martins, e “Temporada”, de André Novais. A atriz conheceu Lúcia Murat em tempo de pesquisa para peça teatral. Procurou a cineasta para dela ouvir depoimento sobre seus anos de militância clandestina contra a ditadura militar, tema de “Guerrilheiras ou Para a Terra Não Há Desaparecidos” (2015). Na conversa, Lúcia, por sua vez, descobriu uma grande intérprete.
O fotógrafo argentino Guillermo Nieto, parceiro de Pablo Trapero em diversos filmes, assegura a qualidade das imagens de “Praça Paris”. Assim como a montagem do craque Mair Tavares e a trilha sonora de André Abujamra e Marcio Nigro. “Praça Paris” é, junto com “A Longa Viagem”, o que mais elaborado Lúcia Murat realizou em 30 anos de carreira cinematográfica.
Praça Paris
Brasil, Portugal, Argentina, 2018
Elenco: Grace Passô, Joana de Verona, Babu Santana, Alex Brasil, Digão Ribeiro e Marco Antonio Caponi
Duração: 110 minutos
Distribuição: Imovision
Por Maria do Rosário Caetano