Cinema pra quem?
A representatividade por gênero e, principalmente, por raça, no audiovisual brasileiro, apresenta dados estatísticos profundamente desiguais. Ampliar a inclusão de negros, mulheres, indígenas e homoafetivos, no cinema, constitui, hoje, desafio dos mais relevantes e urgentes.
Pesquisas do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, da Ancine, e análises do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa/UERJ) têm causado espanto por mostrarem que o cinema, no Brasil, é feito em sua quase totalidade por homens brancos.
A mais recente pesquisa da Ancine (referente ao ano de 2016) mostra que 75,4% das 142 produções que chegaram aos nossos cinemas traziam assinatura de cineastas do sexo masculino e cor branca. Os outros 24,6% foram distribuídos entre mulheres brancas (19,7%) e homens negros (2,1%). Nenhuma mulher negra dirigiu, roteirizou ou fotografou um longa-metragem no período. O IBGE registra que 51% da população brasileira é do sexo feminino; negros e pardos correspondem a 50,7%.
A situação, se vista do ponto de vista histórico, é ainda mais espantosa. A presença feminina na direção de filmes, até os anos 1970, era esporádica. Começou a melhorar lentamente. Nos anos 2000, superou os 10%. Hoje, se aproxima dos 20%. Mas, se o foco recair sobre as mulheres negras, o dado assume proporção alarmante.
Em 120 anos de história cinematográfica, só oito realizadoras afro-brasileiras tiveram seus nomes nos créditos de direção de um longa-metragem. Cinco delas dividiram a direção com parceiro masculino. Uma, a atriz Luciana Bezerra, do grupo Nós do Morro, dirigiu, sozinha, um dos cinco episódios do longa “5 X Favela, Agora por Nós Mesmos” (2006). No mesmo filme, Manaíra Carneiro dividiu com Wagner Morais a direção do episódio “Fonte de Renda”.
Só a pioneira Adélia Sampaio dirigiu sozinha um longa ficcional (“Amor Maldito”/1984). Vinte e um anos depois, Lilian Santiago, em parceria com Daniel Solá Santiago, realizou o documentário “Família Alcântara” (2005). Mais um longo hiato até que a atriz Sabrina Rosa dirigisse, com Cavi Borges, “Um Brinde por Favor” (2011). Novo hiato, até Camila Pitanga (com Beto Brant) dirigir “Pitanga” (2016). Ano passado, a gaúcha Camila de Moraes lançou o documentário “O Caso do Homem Errado” e Glenda Nicácio apresentou o ficcional “Café com Canela”, parceria com Ari Rosa.
Neste momento, jovens cineastas black preparam seus longas solo. A advogada e realizadora Viviane Ferreira, presidente da APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro) transforma seu curta “Um Dia com Jerusa” em fonte de longa de mesmo nome. Juliana Vicente, Sabrina Fidalgo e Yasmin Thayná também preparam filmes de longa duração.
Os organismos de fomento ao cinema brasileiro, finalmente, criaram editais para atender às chamadas “minorias”. Tudo começou com o “Curta Afirmativo”, projeto da SAv/MinC. Em fevereiro último, a Ancine, via Fundo Setorial do Audiovisual, lançou edital para longas (sob a rubrica da Diversidade) com investimento no valor de R$ 80 milhões.
O cineasta Joel Zito Araújo, autor de “A Negação do Brasil” (livro e filme), vê com otimismo o momento de afirmação da presença de realizadores negros no cinema brasileiro. “Felizmente” – pondera – “nosso cinema está na contramão de nossa história política, abalada pelo golpe de 2016. Vivemos momento de grande mobilização de realizadores negros”. Mesmo assim, ele vê dificuldades no percurso, pois “nossa ‘indústria’ audiovisual é, ainda, profundamente conservadora em tudo que se relacione à questão racial. Basta conferir os dados do Gemaa e do Observatório da Ancine. Mas tende a mudar. Porque esta é uma onda mundial, que vai demorar a ser contida. Creio que teremos mudanças mais rápidas a partir de agora”.
A antropóloga Samantha Brasil, curadora do Cineclube Delas e integrante do Coletivo Elviras, acompanha de perto a participação da mulher no audiovisual brasileiro. Ela viu, na última festa de entrega do Oscar, momento que define como “especial e exemplar”. Aquele em que a atriz Frances McDormand, ao receber sua estatueta, convocou empresários do cinema a receberem mulheres em seus escritórios para discutir projetos de produção. “Frances” – registra Samantha – “destacou termo desconhecido e fundamental, a cláusula de inclusão (pela qual atores de peso na indústria podem pleitear a inclusão de minorias nos filmes)”.
A integrante do Coletivo Elviras, dedicado ao estudo e à difusão da participação feminina no audiovisual, vê, porém, muitos desafios pela frente. “Não temos como precisar em quanto tempo superaremos essas dificuldades”, diz. “Mas acredito que, se houver políticas de incentivo de fato (e não apenas paliativas), certamente, a médio prazo, poderemos minimizar, em muito, esse abismo entre homens e mulheres na direção, roteiro e fotografia”.
Samantha defende a aplicação da “cláusula de inclusão” no audiovisual brasileiro e mais políticas públicas, principalmente de fomento, ao cinema feito por mulheres. Tais medidas “teriam consequências práticas importantíssimas para minimizar essa grande dificuldade de acesso das mulheres aos fundos de investimento”.
Como Joel Zito Araújo, Samantha acredita que “esta fase que estamos vivendo veio para ficar, pois as mulheres estão se articulando de forma ativa no mercado audiovisual em busca de igualdade de oportunidades e salários”. Mas – constata – “faltam políticas mais sólidas, capazes de mudar de fato e de forma estrutural nosso cenário audiovisual. Os poucos editais afirmativos existentes ainda hoje trabalham com cifras muito modestas e isto acaba romantizando a exigência de um certo cinema ‘de guerrilha’, que jamais será o desejável”.
Por Maria do Rosário Caetano