A febre do ouro e a paixão pelo cinema dão origem ao épico “Dawson City”, exibido na CineOP

Por Maria do Rosário Caetano, de Ouro Preto (MG)

Para que nós, brasileiros, entendamos a importância e o poder de sedução de “Dawson City, Tempo Congelado”, filme do norte-americano Bill Morrison, exibido e debatido na XIII CineOP, podemos evocar a febre do ouro que tomou conta de Serra Pelada, na Amazônia.

Num exercício de liberdade, suponhamos que o cinema vivesse uma era de ouro e, consumido em doses industriais, encantasse a todos, do mais rico ao mais pobre dos garimpeiros-espectadores. Centenas de filmes chegariam às telas de um grande cinema, acoplado a complexo de diversões, para que ali se divertissem os trabalhadores enriquecidos, mesmo que temporariamente, pela exploração do ouro.

Só que viria a decadência das minas, visível no desespero dos garimpeiros, e os filmes, que outrora a todos encantavam, se transformariam em mero descarte. Ou seja, esquecidos, seriam enterrados envoltos em grandes caixas, dentro de uma piscina que daria lugar a espaço de práticas esportivas.

Passadas muitas décadas, alguém resolveria construir nos escombros da cidade, ex-sede da corrida do ouro (Serra Pelada, no caso), um clube recreativo e, já nas primeiras escavações, se deparasse com rolos e rolos de filmes. Aí as diferenças se tornariam brutais. O calor sufocante da Amazônia poderia ter avinagrado todos os rolos de filmes. E “Serra Pelada City: Tempo Congelado” não teria a força, beleza e importância de “Dawson City”, o inventivo e surpreendente, documentário de Bill Morrison, que arrebatou o público da Mostra de Cinema de Ouro Preto e foi escolhido, pela crítica dos EUA, como um dos cem maiores documentários do mundo lançados em 2016.

Para se ter ideia da importância de “Dawson City”, longa documental de densos 120 minutos, vale lembrar que podemos vê-lo como uma espécie de making off póstumo de “Em Busca do Ouro” (The Golden Rush, 1925), o clássico chapliniano. Aliás, há trechos do filme de Carlitos, metido com a corrida do ouro, na narrativa de Bill Morrison.

E como foram salvos os valiosos filmes da era muda (impressos em 503 rolos), que seriam desenterrados, em 1978, na cidade de Dawson (nascida do povoado indígena de Tr’öchek), no Canadá? E como Morrison tomou conhecimento da existência deles?

Em sua concorrida masterclass, ilustrada com trechos de muitos de seus filmes, Morrison, nascido em Chicago, há 52 anos, recorreu a termo religioso para explicar o espantoso fenômeno: “um verdadeiro milagre”. E por que? Porque quem enterrou os filmes, um agente do sistema bancário-financeiro, não estava criando uma cápsula do tempo para salvar aquelas narrativas pioneiras impressas em nitrato nas longínquas primeiras décadas do século XX. Na verdade, ele estava fazendo economia (tirando os filmes de circulação, sem ter que reenviá-los aos produtores) e, principalmente, evitando novos incêndios. Dawson City sofrera vários deles, já que o nitrato é matéria-prima altamente inflamável, e estava traumatizada.

O “verdadeiro milagre” evocado por Bill Morrison tem a ver com a salvação (mesmo que parte dos rolos estivesse bastante danificada) de material tão fascinante e em condições tão adversas. Ele explica o que aconteceu em Dawson City, quando o agente bancário, representante legal dos produtores, resolveu enterrar os filmes: “inadvertidamente, encontrou-se um jeito mais seguro de armazenar filmes de nitrato”. Ou seja, “congelá-lo e enterrá-lo para que não houvesse circulação de ar ao redor dele”. Pena que — lamenta — “eles tenham enterrado pequena parte dos filmes que passaram pela cidade”, já que, “a grande maioria foi jogada no Rio Yukon, ou queimada, acidental ou intencionalmente”. A parte salva — e que deu origem ao filme de Morrison — “foi preservada porque havia um local improvisado para o armazenamento, uma enorme piscina de clube esportivo, em processo de aterramento, para que desse origem a um ringue de hóquei”.

Morrison, louco por arquivos fílmicos, ouvira falar do patrimônio encontrado no norte canadense, nos anos 1970, e armazenado pelo Dawson City Film Colection. Mas tinha informações superficiais. Só em 2013, quando visitou Otawa, para acompanhar mostra retrospectiva de seus filmes, pôde ver parte do raro acervo na Library and Archives do Canadá. Foi tomado de tamanho entusiasmo que decidiu realizar “Dawson City, Tempo Congelado”. O filme se tornaria o mais requisitado entre os trinta projetos (de curta, média e longa-metragem) que Morrison vem realizando desde 1990.

Não há, mesmo, quem resista ao fascínio do “Tempo Congelado”. Afinal, sua densa história soma série de assuntos apaixonantes: a descoberta de ouro em terras indígenas, a apropriação do território pertencente aos nativos por forças movidas pela ambição e pelo sentimento predatório, o trabalho manual (dos garimpeiros) substituído pelas máquinas, a busca de lazer para milhares de pessoas mobilizadas pelo enriquecimento (mesmo que de poucos) rápido proporcionado pelo ouro. O filme é, também, uma espécie de caça ao tesouro (no lugar do ouro, vemos a caçada a filmes raros da era muda, cujas imagens ficaram enterrados por cinco décadas, no território sub-ártico do Rio Yukon).

Na masterclass ministrada na CineOP, Bill Morrison projetou trechos dos mais importantes de seus filmes. Começou com dois deles, realizados (recriados) a partir de um único título (uma única produção). Caso de “The Mesmerist”(O Hipnotizador, de 2003) e “Ligth is Calling” (2004). Ambos retrabalham trechos, alguns bastante degradados pelo tempo, do longa “The Bells”(James Young, 1926). “The Mesmerist” tem o britânico Boris Karloff (1887-1969) como força imantadora, interpretando um satânico hipnotizador. O cineasta destacou duas características deste filme. Primeiro, o uso de partes de um clássico da era muda, impresso no nitrato, bastante degradado. Vindo da pintura, Morrison faz suas interferências no material, gerando imagens de grande beleza plástica. Beleza vinda da destruição. O segundo aspecto é o mais espantoso: o filme “The Bells”(Os Sinos) mostra o terrível hipnotizador cremando, criminosamente, o corpo de um judeu. Isto, num filme realizado em 1926. Portanto, antes que os nazistas transformassem esta prática em política de estado.

Depois, Bill Morrison mostrou outra vertente de seu trabalho: os filmes realizados a partir de coleção única. Em “Re: Awakenings”, retrabalhou registros em super-8, produzidos em 1969 pelo médico Oliver Sacks, com sobreviventes de forma rara de encefalite letárgica, que os deixava em estado similar à catatonia. Por fim, destacou seus “filmes oriundos de várias fontes”(diversos arquivos), segmento em que estão inseridos seus trabalhos mais conhecidos e premiados: “Decasia”(2002), “The Miners’Hymns”(2010), “The Great Flood” (2014) e “Dawson City: Tempo Congelado”).

Em “Decasia: The State of Decay”, um poderoso exemplar do chamado “found footage” (filmes realizados com materiais encontrados e apossados-reprocessados em filmes-colagem, documentários ou mockumentary), Bill Morrison mostra um boxeador (com imagem intacta) lutando contra uma mancha (originada de material em nitrato degradado). Assim, ele ressignifica fotogramas que sofreram corrosão química parcial, dando a eles novos sentidos.

O realizador norte-americano discorreu, também e com imenso entusiasmo, de “The Miners’ Hymns”, que recria imagens de operários de minas de carvão britânicas e seus cantos de trabalho, e de “The Great Flood” (A Grande Inundação). Neste caso, Morrison retrabalha registros fílmicos da maior das inundações ocorridas no Rio Mississipi, na década de 1920. Ela provocou a maior onda migratória de negros do sul dos EUA rumo ao norte industrializado. E a chegada destes migrantes viria a provocar grande revolução na música norte-americana. Morrison lembrou que os registros recriados em seu filme lembravam a grande tragédia provocada pelo furacão Katrina, em New Orleans, em 2005. Esta catástrofe, por sua vez, daria origem a filme de quatro horas e 15 minutos (“Os Diques Romperam”, 2006), realizado por Spike Lee e mostrado no mesmo Festival de Veneza, que serviu como primeira e poderosa vitrine para “Downson City – Tempo Congelado”, em 2016. Filme que, aliás, merece urgente lançamento comercial nos cinemas brasileiros.

Durante o debate que se seguiu à master class de Bill Morrison, o realizador citou suas fontes de diálogo cinematográfico. Primeiro, seu mestre na universidade, Robert Breer, que o aproximou do cinema de vanguarda dos anos 1960, o francês Cris Marker, autor de clássicos como “La Jetée” e “Le Fond de L’Air est Rouge), o norte-americano Errol Moris (de “Sob a Névoa da Guerra”) e destacou um longa em especial, o hoje “muito e injustamente desprezado”, “Koyaanisqtsi”, de Godfrey Reggio. “Reggio não tem culpa se seu filme foi tão copiado e banalizado pela publicidade”, arrematou.

Show de Tom Zé e curtas de invenção movimentam a CineOP

A décima-terceira edição da CineOP prossegue com atividades das mais variadas. No final de semana, carro de som avisava, pela ruas de Ouro Preto, que cinema e futebol estavam de braços dados. Que se montara grande espaço público para que todos os interessados assistissem ao jogo Brasil X Suíça. Anunciava, também shows e sessões de cinema no Cine Vila Rica, nas salas exibidoras instaladas, em caráter provisório, no Centro de Convenções e ao ar livre na Praça Tiradentes.

A grande atração do sábado, na CineOP, foi Tom Zé. A procura por sua coletiva de imprensa transformou o imenso hall do Centro de Convenções em um formigueiro humano. E o compositor arrancou deliciosas risadas do público com suas histórias de vida e da Tropicália, movimento que o teve como um dos artífices. À noite, a procura por seu show foi de tal forma apoteótica, que o jeito foi lotar o Sesc Lounge Show e instalar telão ao ar livre, para que o público o assistisse neste suporte. A festança acabou às 4h00 da manhã deste domingo, 17 de junho.

Já no Cine Vila Rica, houve sessão com parte da obra restaurada do documentarista capixaba Orlando Bomfim Netto composta com filmes sobre cultura popular (“A Festa do Ticumbi”, “Mestre Pedro de Aurora”, “Dos Reis Magos Tupiniquim”), sobre beija-flores e seu maior defensor (“Augusto Ruschi Guaianunbi”) e sobre desequilíbrios ecológicos (“Itaúnas Desastre Ecológico”).

Em seguida, vieram seis documentários arrebatadores, realizados dos anos 1960 até nossos dias, sempre norteados pelo sentindo da invenção. Tudo começou com “Brasil”, pequena joia de Rogério Sganzerla. Em 1981, João Gilberto gravou disco com os conterrâneos Caetano Veloso e Gilberto Gil. Vestido com a discrição costumeira (terno, só que sem gravata) ele foi registrado, com grande beleza, por Sganzerla, entre dois dançantes e coloridos colegas. Caetano e Gil, perto de João, parecem duas figuras que emergem de uma festa de carnaval e encontram um contido executivo do sistema financeiro para juntos realizarem uma tarefa. Quando cantam, o mundo se transforma e o Brasil se multiplica em imagens de Orson Welles desembarcando no Rio, de jangadeiros somados a Grande Otelo, em estado de iluminação, Eros Volúsia e trechos de cinejornais da era Vargas. Um filme obrigatório. Ao contrário do que acontecera com “Sem Essa, Aranha”, ninguém deixou a sala.

Aí, seguiu-se um curtíssimo de 4 minutos, da carioca Kátia Maciel. A jovem realizadora intrigou-se, em 1993, ao saber que quem quisesse disputar verba oferecida pelo Governo Itamar ao fomento cinematográfico, teria que ir, em pessoa, ao local de inscrição (o Palácio Gustavo Capanema) com caixas (ou malas) cheias de documentação burocrática. Na fila — mostram as belas e kafkianas imagens registradas pelo diretor de fotografia Jacques Cheuíche — vemos Júlio Bressane, Silvio Tendler, Alberto Salvá, Tizuka Yamasaki, Martha Alencar, Claudia Furiatti, José Joffilly, João Batista de Andrade, Denoy Oliveira, Hermano Penna, entre muitos outros. Um filme-manifesto, que nos lembra, embora seja mais contido, o “Pornografia”, de Murilo Salles & Sandra Werneck, atrevido protesto contra o desmonte do cinema brasileiro na era Collor.

Kátia Maciel, Antônio Carlos da Fontoura e Carlos Adriano vieram à CineOP para apresentar seus filmes ao público. Os três reafirmaram a alegria de ter seus curtas-metragens exibidos em programa conjunto, num festival que cultiva a memória, a educação e a história do cinema. O público recebeu com entusiamo o “Ver Ouvir”, de Fontoura, que registra a invenção visual das obras de Roberto Magalhães, Antonio Dias e Rubens Gerchman. Um filme realizado há 52 anos e que revela, livre da ação do tempo, imensos frescor e inventidade.

O mesmo se deve dizer de “O Som ou Tratado da Harmonia”(1984), um dos torpedos metalinguísticos-sensoriais de Arthur Omar, e de “Das Ruínas à Resistência” (2007-2009), no qual Carlos Adriano revisita, com seu provocador experimentalismo, documentários cinematográficos que o poeta poeta Décio Pignatari deixou inacabados.

Para encerrar o programa de curtas de invenção, foi exibido “À Meia-Noite com Glauber”, de Ivan Cardoso, delirante “diálogo” entre Glauber Rocha e Hélio Oiticica, salpicado pelo cinema de horror (em especial o de José Mojica Marins, o Zé do Caixão). A platéia, que deliciou-se e aplaudiu todos os curtas, dirigiu-se ao hall do Cine Vila Rica convicta de que nossa produção de curta duração tem momentos poderosos a ofertar a quem ama filmes inovadores.

Um longa-metragem inédito — “Quebranto”, direção de José Sette, produção de Cavi Borges, com elenco liderado por Samir Hauajis e Karine Barros, e coadjuvado por Maria Gladys, Vera Barreto Leite (ou Valdez), Patrícia Niedermeier, Octávio Terceiro e Mariana de Moraes — foi apresentado. Na madrugada, seria exibido, ainda, mais um programa de curtas. A maratona cinematográfico-musical, na CineOP, é para os verdadeiros atletas da imaginação.

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