Festival In-Edit mostra filme sobre o recluso João Gilberto

O In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical chega à sua décima edição com duas joias raras, os documentários “Onde Está Você, João Gilberto?”, do diretor franco-suíço Georges Gachot, e “Chavela”, sobre a cantora mexicana Chavela Vargas, musa de Pedro Almodóvar.

O evento, que reúne mais de 50 filmes brasileiros e internacionais, será aberto – para convidados e público – nesta quarta-feira, 6 de junho, prosseguindo até dia 17, em dezenas de cinemas de São Paulo.

O cineasta Georges Gachot estará presente à sessão inaugural, no CineSesc, para apresentar seu filme sobre o arredio João Gilberto e receber troféu como homenageado do décimo In-Edit. Ao longo da semana, o franco-suíço mostrará outros de seus filmes aos paulistanos e ministrará masterclass sobre sua profunda relação com o documentário musical e com o Brasil.

Há que se reforçar que Georges Gachot é fã ardoroso da música popular brasileira, à qual dedicou (além de “Onde Está Você, João Gilberto?”) mais três longas-metragens (“Maria Bethânia, Música e Perfume”, 2005, “Nana Caymmi em Rio Sonata”, 2010, e “O Samba”, 2014, que tem em Martinho da Vila sua peça de resistência). Estes filmes também serão apresentados pelo In-Edit.

Em “Onde Está Você, João Gilberto?”, Gachot revive incansável busca empreendida pelo alemão Marc Fischer, cujo sonho de vida era ouvir “Ho-ba-la-lá” na voz do artista, que completa 87 anos neste 10 de junho. Tarefa difícil, já que João vive recluso há quase 20 anos.

O inquieto jornalista e escritor alemão, nascido em Hamburgo, era siderado por João Gilberto. Um dia, ele ouviu a música “Ho-ba-la-lá”, uma das raras composições do baiano de Juazeiro, e teve uma epifania. Resolveu dar com os costados no Brasil e mover montanhas até encontrar o artista. Para tanto, procurou Miúcha, ex-mulher do cantor, João Donato, parceiro em “Minha Saudade”, Roberto Menescal, autor de muitas composições gravadas por João, Marcos Valle, da bossanovista “Samba de Verão”, Octávio Terceiro, amigo e “empresário” do baiano, o cozinheiro que prepara seu steak diário, o barbeiro que corta seus cabelos etc, etc.

Marc Fischer não conseguiu, apesar de todos os seus esforços, ouvir João cantar “Ho-ba-la-lá”. Mas registrou sua caminhada em livro – “Ho-ba-la-lá – À Procura de João Gilberto” – lançado na Alemanha (e no Brasil, pela Companhia das Letras), em 2011. A nota mais triste da história veio poucos dias antes da chegada do divertido volume às livrarias: Fischer suicidou-se. Tinha 40 anos.

Tocado pelo livro no qual o alemão narrou sua infrutífera busca ao ídolo, Gachot resolveu transformá-lo em filme. Buscou os personagens contatados por Fischer, mostrou centenas de fotos feitas pelo germânico àqueles que reencontrava, fez viagens, visitou e documentou cenários joãogilbertianos.

Para realizar seu novo projeto brasileiro, George Gachot, de 55 anos, repetiu, até, a viagem que Fischer fizera do Rio a Diamantina, usando o mesmo meio de transporte (um ônibus) e enfrentando percurso de onze horas. E mais: encontrou-se com Miúcha, Donato, Menescal, Marcos Vale, Octávio Terceiro e usou os serviços de Raquel Balassiano, moça carioca, de origem libanesa, que servira de tradutora ao alemão. Foi atrás do cozinheiro Garrincha, do barbeiro que cortou os cabelos do cineasta do mesmo jeito que corta(va) os de João, usou como cenário o Copacabana Palace, hotel preferido do recluso artista.

De Roberto Menescal, o filme ouve dois testemunhos raros. Um, de encanto com a atitude de Marc Fischer, um alemão capaz de deixar seu país para tentar algo muito difícil: encontrar João Gilberto. “Por aqui” – pondera o músico – “ninguém mostra interesse semelhante”. E narrou mais uma esquisitice de João: ele teria pego todas as camisas do compositor para fazer a foto de capa de um de seus elepês e não devolveu nenhuma delas.

Em Diamantina, Gachot registrou imagens até do banheiro da casa onde João “ensaiava” em busca da acústica perfeita. Pertencente a uma irmã do jovem que futuramente renovaria a música brasileira com o seminal “Chega de Saudade”, o casarão diamantinense abrigou o baiano em meados dos anos 1950.

Os amigos seresteiros da juventude (destaque para Geraldo Ribeiro de Miranda), hoje senhores octogenários, lembram que João, então um desconhecido e aspirante a artista, cantava baixinho e não com o vozeirão necessário a quem fazia seresta para acordar e ser ouvido pela mulher amada. Quando ele estourou no rádio, ficaram surpresos e felizes.

Vários documentários brasileiros terão première nacional no Festival do Documentário Musical. Caso de “Dê Lembranças a Todos – Dorival Caymmi”, de Fabio e Thiago Di Fiore, “Arthur Moreira Lima: Um Piano Para Todos”, de Marcelo Mazuras, “Dona Onete – Flor de Lua”, de Vladimir Cunha, “Som, Sol & Surf – Saquarema”, de Hélio Pitanga, “Ultraje”, de Marc Dourdin, e “Nasi: Você Não Sabe Quem Eu Sou”, de Alexandre Petillo. Outros documentários, de curta e longa-metragem, serão exibidos em mostras competitivas e informativas.

No Panorama Internacional, uma joia rara: “Chavela”, de Catherina Gund e Daresha Kyi, coprodução entre México, Espanha e EUA. As novas gerações não se lembram de Chavela Vargas (1919-2012), costarriquenha que chegou ao México aos 15 anos e tornou-se uma das vozes mais poderosas de gênero dos mais populares no país latino-americano, a ranchera. “La Llorona”, seu maior hit, figurou até na trilha sonora de “Viva, a Vida é uma Festa”, animação que, este ano, conquistou o Oscar.

A longa história de Chavela (ela viveu 93 anos) é fascinante. Por ser uma “niña-niño” (uma menina com características masculinas) em seio de família pobre e muito religiosa, acabou abandonada pela mãe. Foi morar com parentes até, aos 15 anos, aventurar-se em mudança que marcaria para o todo e o sempre a sua vida. Foi parar no México. Aos 20 e poucos anos, começou a cantar rancheras em bares e cabarés. Conheceu o compositor José Alfredo, se entenderam bem e ela passou a cantar as músicas dele, registradas em muitos discos. E começou a beber. Os amigos da cantora contam que ela, muitas vezes na companhia de José Alfredo, passava três ou quatro dias seguidos pelos bares, bebendo doses industriais de tequila.

Lésbica, mas discreta em pronunciamentos públicos sobre sua sexualidade, Chavela teve dezenas de namoradas. Uma delas teria sido Frida Kahlo (há imagens fixas e em movimento da pintora mexicana no filme). No filme, ela conta que num dos casamentos de Liz Taylor, para o qual fora convidada, amanheceu na cama com Ava Gardner. A maior (e tardia) paixão de Chavela, porém, a uniu a advogada que ela chamava “Niña” e que a chamava de “Señora”, com “S” maiúsculo.

O depoimento de Niña ao filme é valioso, pois revela momentos encantadores da vida a duas, e outros muito difíceis. Pois a Señora bebia demais, não era mais requisitada por nenhum bar ou cabaré. Todos pensavam, até, que ela já havia morrido, tamanho era o ostracismo profissional em que mergulhara.

Niña mostra que Chavela era dona de temperamento difícil e cheia de contradições. E narra uma delas: mãe de um filho de sete ou oito anos anos, Niña, pacifista, o queria longe de armas. Mas Chavela queria que o garoto aprendesse a manusear uma pistola para “não crescer como um maricón”. A mãe desesperou-se quando viu a companheira ensinando o menino a atirar tendo sapos como alvo.

Redescoberta e transformada em musa homoafetiva, Chavela conseguiu, nos anos 1980, fazer shows em pequenas casas noturnas mexicanas, promovidos por lésbicas atuantes em movimentos LGBT. E, nos anos 1990, apadrinhada por Pedro Almodóvar, seu fã mais ardoroso, estourou na Espanha.

O cineasta, que tem presença marcante no filme, a apresentou em shows realizados em grandes teatros de Madri, sempre com casa lotada. Ele, em pessoa, atuava como mestre-de-cerimônia das apresentações dela. Vale registrar que vem do cantor e ator almodovariano, Miguel Bosè, um dos mais belos depoimentos do filme. “Chavela” – diz ele – “cantava como se aquele fosse seu derradeiro momento, como se fosse morrer ali, naquele instante”. E a artista concordava. Os silêncios que marcavam seu canto seriam “um desgarramento da alma”, como se a arrancasse do corpo.

Almodóvar quis realizar, em 1995, o maior sonho de Chavela Vargas: cantar no Olympia, de Paris, casa nobre, palco dos maiores nomes da canção mundial. Acertou tudo com os proprietários, que aceitaram desde que o pagamento viesse da renda auferida. No dia do espetáculo, raros ingressos tinham sido vendidos antecipadamente. Apavorado, Almodóvar temia que, de casa vazia, a artista, já com 76 anos, entrasse em depressão. Mobilizou os amigos, pediu ajuda e colou-se ao telefone. À noite, o Olympia estava lotado, com todos os ingressos vendidos, e ele subiu ao palco para apresentar a diva mexicana. Que, ao final, foi aplaudida com frenesi.

O desafio seguinte foi colocá-la no teatro do Palácio das Artes, o mais belo do país de Frida Kahlo. Afinal, Chavela, em sua pátria adotiva, só cantara em bares e cabarés. Pois cantou – e em 2012 seria velada no mesmo palácio que abrigou o velório de Frida – e foi aplaudida de pé. O filme narra, ao longo de 93 minutos, a longa vida desta mulher cujo canto revelava “almas feridas” e que passou pelo cinema de Almodóvar (“Kika”, “Carne Trêmula” e “A Flor do meu Segredo”), por “Babel”, de Iñarritu, e que atuou em “La Soldadera” e “Frida” (não a de Paul Leduc, mas sim a de Julie Taymor).

Além do imperdível “Chavela”, há outros importantes destaques na secção internacional do In-Edit: “Grace Jones: Bloodlight and Bami”, sobre a diva jamaicana, “George Michael Freedom: The Director’s Cut” (sobre o “meteoro” do pop), “My Life Story” (este filme, sobre o vocalista do Madness, traz a assinatura do britânico Julien Temple), “Shut and Play the Piano” (sobre Chilly Gonzales). E mais: “The Allins” (sobre GG Allin, cultor do “punk extremo”), “Ethiopiques – Revolt of the Soul” (panorama da música etíope, registrada numa série de discos), “Phil Mendrix” (sobre o roqueiro português Filipe Mendrix), “XTC: This is Pop” (registro desta banda do pop britânico), e “Finding Joseph I” (produção jamaicana sobre a banda pop-rock XTC).

Quatro títulos chamam atenção pela curiosidade de seus temas. “Queercore” é uma produção alemã sobre o “homecore”, gênero musical-comportamental, fruto do “aburguesamento da comunidade gay”, que acabou estimulando a fúria do que mais tarde se chamou “queercore”.“Olancho”, longa hondurenho que registra a atuação musical de Los Plebes e Olancho, ídolos em regiões conflagradas pelo narcotráfico, enquanto “If I Leave Here Tomorrow: A Film About Lynyrd Skynyrd”, rememora o acidente de avião que, nos anos 1970, quando Lynyrd Skynyrd lotava estádios, caiu, matando metade da banda, técnicos e músicos de apoio). Já “The Man Behind The Microphone”, produção tunisiano-francesa, mostra a diretora, Claire Belhassine, em percurso de taxi, durante o qual ela ouve uma voz cantando no rádio. Procura saber de quem é. Descobre tratar-se de um dos maiores cantores da Tunísia, Hedi Jouini, seu avô, que ela só conhecera na infância e com quem perdera contato.

Haverá, ao longo do Festival In-Edit, intenso calendário de atividades paralelas à exibição de filmes, como shows, encontros, lançamento de livro e feira de vinil. No do dia 17, quando se encerra a maratona, haverá sessão ao ar livre, com a exibição do clássico “Stop Making Sense”, na Cinemateca Brasileira. É torcer para não chover.

A programação completa do festival pode ser conferida no site www.in-edit-brasil.com.

 

In-Edit Brasil – 10º Festival Internacional do Documentário Musical
Data:
7 a 17 de junho
Sessão de Abertura: 6 de Junho, às 20h30, no CineSesc, com entrada gratuita com retirada do ingresso com 1 hora de antecedência
Locais: CineSesc, Spcine Olido, Spcine Lima Barreto (Centro Cultural São Paulo), Cine Matilha (Matilha Cultural), Cinemateca Brasileira, Sala Olido (shows) e Unibes Cultural (masterclass)
Entrada gratuita em todas as sessões e atividades do festival, exceto CineSesc (R$ 12 inteira, R$ 6 meia, R$ 3,50 comerciário)

 

Por Maria do Rosário Caetano

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.