Festival praieiro lota cinema a céu aberto e debates
Por Maria do Rosário Caetano, de São Miguel do Gostoso (RN)
Em sua quinta edição, a Mostra de Cinema de Gostoso — realizada no litoral potiguar, em pequeno município de apenas 9 mil habitantes — confirma a cumplicidade estabelecida com os gostosenses. Afinal, os moradores do antigo vilarejo de pescadores e de suas zonas rurais lotam, desde sexta-feira, as novas e confortáveis cadeiras dispostas num trecho da Praia do Maceió. Não só lotam, como brigam pelos assentos.
No sábado, dia em que foi exibido o longa documental “Meu Nome é Daniel”, de Daniel Gonçalves, censura livre, a demanda explodiu. Depois da exibição do curta municipal (exibe-se um a cada noite), do curta estadual (a produção do Rio Grande do Norte, excluindo São Miguel do Gostoso) e do curta nacional (produções de São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Minas Gerais), dezenas de pessoas disputavam um lugar. Mas estavam todos ocupados.
Parte do público sentou-se, então, numa passarela imensa, e barulhenta, de madeira, que cobre a parte central do “cinema na areia”. De forma que a Mostra de Gostoso registrou seu maior (e histórico) público. O filme foi muito aplaudido. Mais até que seu primeiro concorrente, o santista “Sócrates”, de Alex Moratto, que se fez representar, em Gostoso, por seu protagonista, o ator Christian Malheiros. Este filme, soube-se depois, foi tema de muita polêmica em grupos de whatsapp, por conter cenas de beijo entre homens. Mas os diretores do festival potiguar estão tranquilos, pois menores de 14 anos (censura recomendada para o filme) foram retirados do espaço de exibição. O público de mais de 14 anos assistiu a “Sócrates” até o fim e os aplausos foram significativos.
Se a plateia é grande no cinema ao ar livre, o mesmo acontece na caliente (em termos climáticos) sala de debates, na Pousada dos Ponteiros, centro nevrálgico da parte reflexiva da Mostra de Gostoso. É que, além dos integrantes do Coletivo Nós do Audiovisual, ONG que organiza o festival junto com a Heco Produções, a UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) enviou 25 alunos para acompanhar as sessões de curtas e longas-metragens, debates e seminários sediados na cidade litorânea (situada a 110 km de Natal).
Os debates na Mostra de Gostoso são calmos, educados, generosos. Os jovens fazem muitas perguntas aos cineastas e atores. E aplaudem e vibram, principalmente, com as respostas dos jovens realizadores da ONG Nós do Audiovisual, a prata da casa. Foi assim com Renata Alves, de 17 anos, diretora em nome do Coletivo gostosense, do ficcional “Derradeiro”. O filme conta a história de um velho (Sr. Antônio) com Alzheimer, que dedica a seu cachorro uma imensa ternura. Quando o animal morre, ele continua agindo como se a perda não fosse real. Vive mergulhado num “oceano de memórias”. Mais frisson, ainda, causou “Medo é uma Moita”, de Ailton Modesto, outro integrante do Coletivo. O curta de apenas sete minutos, mistura documentário e terror. Seu roteiro foi escrito a partir de histórias contadas a Ailton por familiares: num imenso cajueiro em estrada deserta de São Miguel do Gostoso, costuma aparecer uma assombração (na forma e um menino apavorante).
O mais incrível de tudo, é que até o jovem cineasta, também de 17 anos, acredita na história. Durante o debate, para deleite dos participantes, ele jurou nunca ter visto, “só sentido”, a alma penada. Contou mais: um dia, passando, sozinho, de motocicleta, pelo local, o veículo sofreu avaria justo diante do tal cajueiro. Ele tem certeza que “o menino assombrado pegou carona em sua moto”. Mas ver, garantiu, “não vi”.
“Medo é uma Moita” começa como um documentário clássico. Um senhor idoso, morador da cidadezinha desde os tempos em que era uma vila de pescadores, fala dos progressos municipais. Outro morador o sucede. Mas este adota tom menos informativo e parte para a evocação do cajueiro assombrado. O curta abandona o tom documental e transforma-se em filme de terror, com alguns efeitos especiais. A moto conduz o protagonista até o lugar fatídico em noite muito escura. No cinema praieiro, houve estouro de aplausos. No debate, também. A moçada é chegada em lendas de assombradas.
Além de Ailton Modesto, ainda tímido e modesto como o nome, quem causou furor na discussão dos filmes exibidos na noite de sábado, foi o professor potiguar (embora nascido em Santa Catarina) Lourival Andrade. Ele veio, vap vupt, ao festival, para mostrar seu curta “P’s” (lê-se Pês), uma original recriação de livro que Michel Foucault dedicou a trágica ocorrência policial na França do século XIX: “Eu, Pierre Rivière, que Degolei minha Mãe, minha Irmã e meu Irmão” (filmada, em longa-metragem, por René Allio, em 1976).
Lourival, dono de poderosa oratória, é professor no campus da UFRN, em Caicó, sertão potiguar. Lá, ele dá aulas de História e comanda o grupo teatral Trapiá, legítimo patrimônio nordestino, que tem circulado por festivais e temporadas do Palco Giratório do Sesc. Agora, deu para fazer filmes com parceiros (“P’s” é sua estreia solo). Defensor apaixonado da universidade pública, ele vai comandar, na URFN-Caicó, curso de mestrado que estudará, em profundidade, os Sertões. Não só o livro de Euclides da Cunha, “que traz um olhar de fora”, mas o sertão visto de dentro, por quem nele vive. As melhores dissertações dos mestrandos serão transformadas em documentários. “Não podemos mais deixar nossas dissertações e teses morrerem em gavetas e arquivos de universidades, temos que usar recursos audiovisuais para que elas amplifiquem seu alcance junto à população brasileira”.
Tudo que Lourival dizia encantava a plateia do segundo debate da Mostra de Gostoso. Quando, às 12h30, sol escaldante, avisaram que ele tinha que partir, a plateia protestou. Mas 400 km separavam o professor, diretor de teatro e agora cineasta da cidade de Caicó, onde tinha compromisso à noite. Antes de se despedir, Lourival deixou seu testemunho sobre o curta-metragem que o trouxe ao litoral potiguar:
Depois de ler o livro de Foucault sobre Pierre Rivière, pedimos ao psiquiatra e dramaturgo catarinense Gregory Haertel, que o adaptasse para montagem de nossa companhia Trapiá. Montado, o espetáculo teve ótima aceitação e fez temporada em Caicó e por várias cidades brasileiras. Resolvemos, então, transformar a peça em um filme. Empenhei-me na escritura do roteiro, no que fui muito auxiliado pelo ator-protagonista Alexandre Muniz. Ele me alertava: neste exercício de síntese, está faltando tal parte ou tal fala para que não percamos o todo. A depuração criteriosa resultou num curta de 13 minutos, feito na cara e na coragem, com orçamento baixíssimo.
O nome, que parece estranho por causa deste apóstrofe (P’s) significa que há muitos Pierres (Rivière), Pedros, Paulos, Possidônios, uma infinidade de nomes começados com pê espalhados pelo mundo e pelo Brasil. No nosso sertão, há homens que mataram mãe, irmãos e pais. Nosso “P” é um homem do sertão do Caicó, pois trouxemos a trágica história deste crime ocorrido na França para nossa região.
E, para novo delírio da plateia, Lourival Andrade arrematou: “nosso grupo se chama Trapiá em homenagem à árvore da caatinga, que aprendeu a economizar água para sobreviver. Estamos há seis anos sem chuvas no sertão do Caicó. Tudo tornou-se marrom e ocre. A trapiá segue verde. Por isto, ela é usada para reflorestamento em nossa região. Por isto, a escolhemos como nosso símbolo. Queremos fazer uma arte resistente como ela”.
A quinta edição da Mostra de Cinema de Gostoso encerra-se nesta terça-feira, 27 de novembro, com exibição hors concours do curta prata-da-casa “O Grande Amor de um Lobo”, de Adrianderson Barbosa e Kennel Rógis, e do longa “Ferrugem”, de Aly Muritiba, grande vencedor do Festival de Gramado, em agosto último. A cerimônia de premiação entregará o Trofeu Luís da Câmara Cascudo, folclorista potiguar, aos eleitos pelo público.