Três filmes hispano-americanos chamam atenção no circuito brasileiro
Com a estreia de “Sueño Florianóplis”, da argentina Ana Katz, no circuito brasileiro, dispomos de vitrine simultânea para três significativos títulos hispano-americanos. Os outros dois são o mexicano “Museu” e o uruguaio “Uma Noite de 12 Anos”.
A trinca justifica a compra de ingressos neste período de longos feriados. O mexicano “Museu”, de Alonso Ruizpalácios, autor do instigante “Güeros”, é o melhor de todos. O terceiro, “Uma Noite de 12 Anos”, de Álvaro Brechner, em cartaz há sete semanas, vem mantendo bom diálogo com o público. Tornou-se uma espécie de programa obrigatório. Está em cartaz em diversas cidades do país (em São Paulo, permanece na Sala 1, do Espaço Itaú Augusta, em todos os horários) e já vendeu 60 mil ingressos (número dos mais significativos para um filme uruguaio). Dois deles foram comprados por Fernando Haddad e Ana Estela, nos dias que se seguiram ao segundo turno das eleições presidenciais. A saída do candidato derrotado do cinema da Rua Augusta transformou-se em um acontecimento (com fotos, abraços e cantos).
O filme de Brechner registra a longa noite (que durou 12 anos) do encarceramento de três militantes políticos (um deles, José Mujica, que depois seria eleito à presidência do país platino) durante a ditadura uruguaia.
“Sueño Florianópolis” é uma sensível dramédia, fruto de coprodução (entre Argentina e Brasil) digna do nome. A realizadora bonaerense filmou seu quinto longa-metragem, integralmente, em solo brasileiro (em estradas e praias de Florianópolis), com elenco argentino (liderado pela ótima Mercedes Morán e por Gustavo Garzón) e brasileiro (Marco Ricca, em papel dos mais significativos, e Andrea Beltrão, em participação especial). Além de locações e atores, o filme tem uma empresa brasileira como coprodutora (a Pródigo). Na trilha sonora, músicos locais (Beto Villares, Arthur Faria, entre outros). Há, na banda sonora, também, repertório breganejo. E um clássico de Noel Rosa para salvar a lavoura desta praga musical de nossos tempos. Finalmente – e “Sueño Florianópolis” prova isto – as coproduções transformam-se, mesmo, em trocas entre cinematografias e não meros arranjos entre produtores. Foi assim com “Zama”, de Lucrécia Martel, com Matheus Nachtergaele em papel destacado, coprodutora ativa (Vânia Catani, da Bananeira Filmes) e quadros técnicos (a diretora de arte Renata Pinheiro, a co-montadora Karen Harley). O filme de Ana Katz é uma delicada e algo melancólica comédia (com pitadas de drama), um olhar dos argentinos sobre os brasileiros e vice-versa. Somos folgados (o personagem de Marco Ricca que o diga, com sua sunga de praia full time), mas não só. Temos qualidades e defeitos, assim como os personagens argentinos.
Gael García Bernal protagoniza “Museu”, mais que um filme sobre roubo ao Museu Nacional de Antropologia, do México (ocorrido nas vésperas do Natal de 1985, ano de terremoto e autoestima nacional em frangalhos), um notável mix de gêneros, que começa com cenas documentais e chega ao road movie. No frigir dos ovos, o segundo longa de Ruizpalácios é uma aventura recheada de ideias estimulantes sobre pilhagem, vida, família, amizade e delírios etílicos-drogados (vide a sequência em que a argentina Leticia Brecia, de “9 Rainhas”, interpreta a vedete decadente Sherazade Ríos).
O filme, que tem ainda o notável chileno Alfredo Castro no papel do pai de Juan, um dos ladrões (Gael García Bernal), vem recebendo críticas positivas por todos os cantos (algumas, bem poucas, negativas, o que é normal). Selecionado para a competição do Urso de Ouro em Berlim, teve seu roteiro premiado (com o Urso de Prata). Poderia ter ganho o troféu dourado, se o júri não tivesse optado pelo pretensioso romeno “Não me Toque”.
Quem for ao cinema para ver, em “Museu”, um clássico “filme de roubo” será gratificado apenas parcialmente. Afinal, o que Ruizpalácios e seu corroteirista (Manuel Alcalá) construíram foi uma formidável reinvenção de fato real, banhada em deliciosas reflexões sobre a história do México, marcada pela pilhagem de patrimônios artístico-culturais.
Já na abertura do filme, vemos um gigantesco totem, hoje exposto na entrada externa do Museu Antropológico, sendo transportado de sua região de origem para a populosa capital mexicana. Cinejornais dão conta dos dias loucos vividos pelo país e questionam a transferência da escultura de muitas toneladas, arrancada de seu povo originário. Em pauta, a pilhagem, que renderá outro poderoso diálogo na segunda parte do filme (entre o personagem Frank Graves, um receptador britânico de obras de arte roubadas, e Juan, o ladrão que Gael interpreta com paixão imensa).
O britânico discute com o jovem e inexperiente cérebro do roubo o papel das grandes potências na pilhagem de valiosos tesouros da Mesoamérica. Uma discussão que serve de paradigma para egípcios, gregos, romanos ou iraquianos. Evoca-se tesouro inca, retirado de navio naufragado no fundo do mar, por anglo-saxões. De quem é o tesouro? Dos peruanos, território dos incas? Ou dos que empreenderam e pagaram a custosa operação de resgate? Quando Juan diz que os peruanos são os donos legítimos, Frank argumenta com cinismo cristalino: se não fossem os empreendedores que buscaram o tesouro no fundo do mar, ele continuaria lá. Ou seja, não seria de ninguém. E arremata: “não há preservação sem pilhagem”.
Depois das imagens dos cinejornais, saberemos que o Museu Nacional Antropológico (inaugurado em 1964) entrará em reforma e que nele trabalha o chaparrito Juan (como iluminador fotográfico de peças de imenso valor arqueológico). Iremos, então, nos familiarizar com a dupla – Juan e Benjamin (o ótimo ator Leonardo Ortizgris) – que, na véspera do Natal, empreenderá o roubo de 140 peças (de ouro e jade).
Benjamin Wilson é meio sonso, mas muito carinhoso com o pai, muito doente. Juan é mais safo e exerce (quase) total domínio sobre o amigo. Somos, então, transportados para a casa de Juan (em Ciudad Satélite, no imenso perímetro urbano da capital mexicana) e conheceremos seus familiares (em especial o pai), um homem íntegro e seguidor de preceitos rigorosos. A festa de Natal lembra a de qualquer família de classe média brasileira, com suas brigas, gritos, comentários disparatados, divergências políticas etc). O tom é cáustico, os diálogos cortantes.
Adepto e praticante de deliciosas digressões, os roteiristas do filme abrirão espaço para que um tio de Juan rememore, o que fazia sempre e aborrecidamente, uma incrível história de incêndio na casa paterna. Mas nada é gratuito. Tudo se soma neste filme composto de tantas e tão fascinantes partes.
O roubo acontece e é mostrado minuciosamente. Quando a notícia chega aos telejornais, o pai de Juan comenta, revoltado: estes ladrões “são excrementos, que merecem ser açoitados no Zócalo” (a praça que constitui o coração arquitetônico-social da Cidade do México).
Dali em diante, a narrativa acontecerá em clima de road movie, pois os dois ladrões, Juan e Benjamin, necessitam encontrar compradores para as 140 peças roubadas (pequenas, em tamanho, mas de valor arqueológico-cultural imensurável). Os dois não têm um receptador. O que a eles foi indicado, Pepe Soto, eles não localizarão. Maravilhosa e delirante sequência, que unirá Juan e a atriz decadente Sherazade Ríos, movidos a cocaína e álcool, explicará por quê. A boate onde ela trabalha tem o sugestivo nome de Portal do Paraíso. O filme dialoga abertamente com a obra de Carlos Castañeda. E com Roberto Bolaño e muitos escritores e pensadores de Nuestra (saqueada) América.
No carro “emprestado” do pai, Juan conduzirá Benjamin, às vezes contrariado, por sítios históricos (Palenque) e cidades turísticas (Acapulco, com seus intrépidos mergulhadores, é a principal). Viverão, irresponsavelmente, momentos felizes e loucos, refletirão sobre a vida e a morte, se desentenderão. Mas continuarão juntos até o momento derradeiro.
Quem acompanhou a história do roubo, nos anos 1980, sabe que os inexperientes ladrões não se deram bem. As valiosas peças de ouro e jade foram devolvidas ao Museu Antropológico. E isto é o que menos importa ao filme. O que Ruizpalácios e Alcalá queriam com seu brilhante roteiro era, ao invés de fazer suspense, compor um vibrante, lisérgico e irresistível filme de ideias. Seus 127 minutos na tela voam prazerosamente. Em todos os momentos, somos estimulados a fazer o que é característica dos grandes filmes: divertir e estimular a reflexão.
Saímos da sala, levando conosco uma deliciosa provocação dos criadores deste notável “Museu”: “Prá que arruinar uma boa história contando a verdade?!”.
Por Maria do Rosário Caetano