Olhar de Cinema mostra “A Portuguesa”
Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba
A cineasta lusitana Rita Azevedo Gomes, de 67 anos, mostrou e debateu seu penúltimo filme, “A Portuguesa”, um dos participantes do último Festival de Berlim, no Olhar de Cinema (Festival Internacional de Curitiba).
O filme, exibido em sessão especial (a cineasta integra o júri oficial ao lado da brasileira Flávia Cândida e do cubano Alberto Ramos), será mostrado no CCSP (Centro Cultural São Paulo), em retrospectiva da realizadora. Quem frequenta a Mostra Internacional de São Paulo conhece alguns dos filmes de Rita, em especial o documentário “A Quinta Pedra”, de 2007, registro de culta e saborosa conversa entre dois luminares do audiovisual português: o cineasta Manoel de Oliveira (1908-2015) e o pesquisador, crítico de cinema e cinéfilo João Bénard da Costa (1935-2007).
Ligada à vertente mais experimental e independente do cinema lusitano, Rita dedica-se também às artes cênicas e gráficas e à memória e difusão do cinema (nos quadros da respeitada Cinemateca Portuguesa). Sua obra soma curtas e longas-metragens, entre eles “O Som da Terra a Tremer” (1990), “O Cinema Vai ao Teatro” (1996), “Intromissões” (1998, com o mesmo Manoel de Oliveira, de quem se diz que é discípula ou herdeira artística, condição que ela costuma negar), “King Arthur” (1999), “Frágil Como o Mundo” (2001), “Altar” (2002), “A Conquista de Faro” (2005), “A Coleção Invisível” (2009), “A Vingança de uma Mulher” (2012) e “Correspondências” (2016).
O filme que traz Rita a Curitiba, “A Portuguesa”, é um drama histórico nada convencional. Seu ponto de partida é conto homônimo do austríaco Robert Musil (1880-1942). A escritora Agustina Bessa-Luís (1922-2019), já nonagenária, indicou à cineasta que lesse tal texto, do qual era grande admiradora. A paixão de uma contaminou a outra. Rita pediu então a Agustina, colaboradora de Manuel Oliveira (em Vale Abraão, Espelho Mágico e O Princípio da Incerteza), que escrevesse um roteiro a partir do conto de Musil. Recebeu, algum tempo depois, “seis páginas apenas, mas com diálogos de beleza única”, contou Rita no debate do filme, em Curitiba.
“A Portuguesa” conta a história de uma mulher (interpretada pela ruiva Clara Riedenstein, que tinha 16 anos quando assumiu este papel protagônico), casada com o nobre Von Ketten. Ele é um senhor da guerra e vive para conquistar novos territórios. Quando nasce o filho de ambos, eles estão no norte da Península Itálica. Luta-se pelo domínio do Principado Episcopal de Trento. Von Ketten sugere à mulher, “A Portuguesa” do título, que regresse com o filho à sua terra. Ela se nega. Prefere ficar alojada em um modesto castelo, à espera do marido, enquanto ele luta por anos a fio. O Concílio de Trento se deu em 1540. Portanto, a espera da Portuguesa pelo marido se dá no século XVI, em anos anteriores ao fim do conflito bélico.
As filmagens se realizaram em Portugal (em regiões montanhosas e muito verdes), os figurinos têm um quê de atemporais (delicada e despojadamente nobres), as ações são rarefeitas, os diálogos maravilhosos e a fotografia de Acácio de Almeida (o nome mais internacional das imagens portuguesas, ao lado de Rui Poças), fascinantes. O elenco, pouco conhecido dos brasileiros, é convincente (e a jovem Clara Riedenstein, uma revelação, embora a diretora diga que sua atriz vai abandonar o ofício recém-iniciado para estudar Filosofia em Oxford). A trilha sonora evoca sons do Renascimento, mas sem preocupação datada. E a cantora (e atriz de Fassbinder) Ingrid Caven interpreta, em alemão ou francês, canções que contribuem para criar atmosfera de espera e saudade, marcas de “A Portuguesa”.
DOIS MERGULHOS NA TRAGÉDIA SOCIAL E POLICIAL BRASILEIRA E ESPANHOLA
Dois filmes sacudiram o público do Olhar de Cinema 2019 na noite do sábado, 8 de junho: o mineiro “Sete Anos em Maio”, média-metragem de Affonso Uchôa, e o espanhol “Entre Dos Águas”, de Isaki Lacuesta. Ambos documentais (em diálogo aberto com a ficção), ambos densos, rigorosos, arrebatadores. Mais que todos os filmes exibidos até agora na competição, eles exemplificam com rara potência a proposta da principal mostra do Olhar: apresentar obras que sejam inéditas no Brasil, inventivas, dedicadas a temas contemporâneos e interessadas em comunicar-se com o público. Este é o verdadeiro milagre da criação: ousar no campo da linguagem e na abordagem temática, sem esquecer que na sala escura há um conjunto de pessoas interessadas em refletir e fruir, com alguma dose de prazer, o que bate na tela.
Pois Uchôa, presente à sessão com sua equipe, e Lacuesta, que enviou um vídeo substantivo sobre seu longa (de 2h16′), conseguiram esta alquimia, que tem em Renoir, Welles, Buñuel, Fellini, Agnès Varda (entre outros) seus maiores artífices. Fizeram filmes essenciais para compreendermos a tragédia de nosso tempo, sem descuidarem-se de abordagem inventiva e renovada.
O realizador mineiro constrói, em 42 minutos, retrato dilacerado de um jovem mestiço de nossas periferias urbanas (Rafael dos Santos Rocha). Um retrato que sai do individual para o coletivo. O que “Rael”, seu apelido, vive é multiplicado a cada dia em periferias assemelhadas à de Contagem, na Grande BH. Um rapaz é abordado pela Polícia em sua modesta residência, pois é acusado de ter em seu quintal um quilo de maconha. Depois de revirarem tudo e nada encontrarem, cobrem o moço de socos, queimaduras, tortura enfim. O que acontecerá dali em diante ficará para sempre em nossa memória. Tal qual Aristides de Sousa (o Cristiano de “Arábia”), Rafael dos Santos Rocha se revela um intérprete de imensa sensibilidade ao recriar sua tumultuada história em um longo diálogo com outro jovem, de pele preta (Wederson Neguinho). Racismo, brutalidade policial, falta de emprego e de um sistema inclusivo de educação expõem-se nas filigranas deste filme obrigatório. Principalmente, neste momento brasileiro, marcado por intolerância e ódio.
“Entre Dos Águas”, prêmio Concha de Ouro no Festival de San Sebastián, no País Basco, sequencia filme que Lacuesta realizou em 2006, “A Lenda do Tempo”, protagonizado por dois adolescentes ciganos, Israel, o Isra, e Francisco, el Cheíto. Já adultos, eles voltam a ser personagens do realizador catalão, de 43 anos. Cheíto agrega-se ao serviço naval como taifeiro e passa longas temporadas em missões militares, distante da mulher e das três filhas. Teme que ela, por causa das ausências de até seis meses, arrume outro parceiro. Preocupa-se, também, com o irmão Isra, pai, como ele, de três menininhas. Ele acaba de sair da prisão (por tráfico de drogas).
Caberá ao jovem Israel ocupar o espaço central do filme. Bonito, ousado, rebelde, ele vive entre parcos ganhos como catador de mariscos (ou vendedor de sucata industrial) e o tráfico de drogas. A mãe de suas filhas não quer saber dele, enquanto não ganhar dinheiro honesto. Ou seja, arrumar emprego fixo. O pai transgressor gosta das menininhas e, de vez em quando, passeia com elas. Mas não há jeito de firmar-se em empregos que rendem pouco e o submetem à autoridade de patrões. Vive, também, alimentado cotidianamente pelo desejo de vingança (contra o assassino de seu pai). Isra é o correspondente “gitano” do mestiço Rafael dos Santos Rocha. Com uma diferença: a polícia espanhola parece infinitamente mais civilizada que a nossa.