No Coração do Mundo
Por Maria do Rosário Caetano
O coletivo, hoje transformado em sólida produtora mineira, Filmes de Plástico lança, nesta quinta-feira, primeiro de agosto, seu terceiro longa-metragem: “No Coração do Mundo”, de Maurílio Martins e Gabriel Martins.
O filme chega aos cinemas na esteira de uma série de curtas e de dois longas (“Ela Volta na Quinta” e “Temporada”, ambos de André Novais Oliveira), que firmaram o prestígio do grupo, ancorado em Contagem, na Grande Belo Horizonte. Neste novo filme, que em fevereiro último participou da mostra competitiva do Festival de Roterdã, André, além de ser um dos produtores, aparece em cena na pele do descolado Reggae Nigth. Gabriel Martins, o Gabito, tem breve aparição a la Hitchcock (com um morto, de nome Joca).
Os cinéfilos que conhecem os trabalhos anteriores da trupe mineira vão deliciar-se com a recorrência de temas (e até trechos de outros filmes). E de atores-atrizes, mesmo que em participações, às vezes, fugazes. O caso mais notável é o de Russo APR, volumoso ator que já havia roubado a cena em “Temporada”. Ele reaparece agora em papel pequeno, mas, graças à sua fala banhada em humor e na musicalidade das ruas, volta a brilhar e a encantar o público.
Renato Novaes também brilha na pele de Beto, aprendiz de bandido, que a todos cativa com sua inexperiência e seu cabelo único (carrega na cabeça corte moicano em formato de lagartão verde com patas geometricamente desenhadas). Renato é irmão de André e filho de Dona Maria José e do Sr. Norberto Novais Oliveira. Pai e mãe têm passagens afetivas pelo novo filme. Maria José e o crítico e cineasta Geraldo Veloso, que também faz aparição breve, são homenageados “in memoriam” nos créditos. Morreram antes da estreia brasileira. Karine Teles, atriz e roteirista de “Benzinho”, faz participação especialíssima.
Vale ponderar aos que desconhecem os curtas e longas-metragens pregressos do coletivo mineiro, que a fruição se dará da mesma forma. Afinal, a empolgante trama dos dois realizadores mineiros soma momentos reflexivos, de forte base documental, a cenas adrenalinadas de filmes de assalto. Sem esquecer o humor, forte marca do Filmes de Plástico, em especial os de André Novais.
“No Coração do Mundo” é fruto de roteiro muito bem urdido, capaz de somar drama social e crônica periférica a ingredientes de thriller. Afinal, um roubo muito bem engendrado eletrizará sua segunda metade. À frente do elenco, ótimo time de atores negros, liderados por Grace Passô, que interpreta Selma, personagem central na trama policial.
Os papeis femininos – registre-se – ganham imenso destaque. As mulheres trabalham, são independentes, levam a vida no sufoco, mas não se entregam. Barbara Colen (que está, também no elenco de “Bacurau”) dá duro num salão de beleza e planeja comprar um carro para trampar, em jornada dupla, no Uber. Ana (Kelly Kiefer) é cobradora de ônibus e sonha melhorar de vida. Dona Fia (Gláucia Vandeveld) vende detergentes que ela mesma fabrica em casa. Dona Sônia (Rute Jeremias) chora a dor da perda do filho Joca, assassinato brutalmente. Brenda (MC Carol) se deu mal e foi parar na cadeia, mas resolve se reabilitar assumindo trabalho providenciado pela avó.
No elenco masculino, o personagem mais centrado é Miro (Robert Frank), o irmão trabalhador do desencaminhado Beto, o do cabelo moicano. Frank, um dos nomes da vibrante trilha sonora do filme (que conta com “Negro Drama”, dos Racionais MC), brilha pela contenção. E pelo vigor em cena de sexo com a fogosa Rose (Barbara Colen).
Leo Pyrata dá credibilidade ao “vitellone” Marcos, que mora com a mãe e vive de pequenos expedientes. Ajudará Selma em um “bico” fotográfico. Os dois irão a um colégio (Escola Carlos Reichenbach) fotografar os alunos em cenário perpetuado ao longo dos tempos: globo terrestre, livros bem encadernados e maçã para a professora. No filme, um fundo com majestosa paisagem europeia ampliará a potência visual desta sequência poderosa (muito bem filmada). Mas Selma, com sua inteligência estratégica, levará Marcos e sua namorada, Ana, a formar a trinca que se arriscará em roubo em condomínio de luxo, fechadíssimo portanto.
“No Coração do Mundo” se apresenta ao público já nos créditos (coisa rara no cinema brasileiro). Nomes da equipe artística e técnica são impressos sobre fortes imagens documentais de bairros de Contagem, com seu aspecto de periferia marron-tijolo e árvores raras. Ali vivem domésticas, motoristas e cobradoras de ônibus, cabeleiras, mecânicos, pequenos comerciantes, enfim, moradores que estabelecem complexas relações interpessoais (seja no mundo do trabalho, seja em relações amorosas, seja no planejamento de um assalto). Um filme de raro vigor, prova da vitalidade do cinema feito fora do eixo Rio-São Paulo.
No Coração do Mundo
Brasil, 120 minutos, 2019
Direção e Roteiro: Gabriel Martins e Maurílio Martins
Produção: Filmes de Plástico
Elenco: Grace Passô, Kelly Crifer, Leo Pyrata, Bárbara Colen, Robert Frank, Rute Jeremias, Renato Novaes, MC Carol de Niterói e Gláucia Vandevelde
Fotografia: Leonardo Feliciano
Montagem: Guto Parente e Irmãos Martins
Música: Robert Frank, Heberte Almeida, Kim Gomes
Distribuição: Embaúba Filmes
FILMOGRAFIA
FILMES DE PLÁSTICO
Longas-metragens:
. “Ela Volta na Quinta”, de André Novais Oliveira (2015)
. “Temporada”, de André Novais Oliveira (2018)
. “No Coração do Mundo”, de Maurílio e Gabriel Martins (2019)
. “Marte Um”(em pós-produção), de Gabriel Martins (2020)
. “O Último Episódio (em pré-produção), de Maurílio Martins (2020)
. “E os meus Olhos Ficam Sorrindo” (em pré-produção), de André Novais Oliveira (2020)
Alguns curtas-metragens:
. “Filme de Sábado” (2009),
. “Contagem” (2010),
. “Dona Sônia Pediu uma Arma Emprestada a seu Vizinho Alcides” (2011),
. “Rapsódia para o Homem Negro” (2015),
. “ Nada” (2017)
. “ Um Homem que Voa: Nelson Prudencio” (2013),
. “Quinze” (2014),
. “Constelações” (2016)
. “Pouco Mais de um Mês” (2013)
. “Quintal” (2015)