Gramado homenageia Lázaro Ramos
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)
O Festival de Gramado teve duas estrelas no centro de todas as atenções de sua quarta (e gelada) noite: Lázaro Ramos, com mais de 60 prêmios cinematográficos no currículo, e Bruna Marquezine, estreante no cinema. Lázaro recebeu o Trofeu Oscarito, uma das mais belas e cobiçadas láureas do festival gaúcho, e a atriz protagonizou o longa-metragem “Vou Nadar Até Você”, com direito a nudez fashion e cena em que divide cigarro de maconha com o personagem interpretado pelo ator Fernando Alves Pinto.
Os dois atores causaram furor no tapete vermelho. Centenas de pessoas esperaram, sob frio congelante e por horas, pela jovem atriz fluminense, de 24 anos, ex-namorada do jogador Neymar. Um menino, junto com a mãe, levou placa implorando por uma foto com ela. Que não o decepcionou e, ao posar para o retrato, foi aplaudida em delírio. Sua entrada e saída do cinema implicaram em montagem de cordões de isolamento e multidão de fãs afoitos e municiados com celulares disparando dezenas de flashes.
Lázaro Ramos, antes de subir ao palco para receber o Trofeu Oscarito, divertiu-se, ouvindo junto com o público, texto cheio de bossa e imagens que o mostraram, em “Cinderela Baiana”, seu primeiro filme, dançando o “tcham” com Carla Perez. Depois, ótimo vídeo do Canal Brasil reviu sua exitosa carreira, iniciada no Bando de Teatro Olodum e sequenciada na TV e em 30 filmes, entre eles “Madame Satã”, “O Homem que Copiava”, ”Cidade Baixa” e “Cafundó”. Este lhe rendeu o Kikito de melhor ator. Como estava trabalhando, não pôde, na ocasião, vir a Gramado para receber seu Kikito.
Ontem, sob aplausos calorosos, ele contou que jamais imaginara um dia estar no palco do Palácios dos Festivais, sendo reconhecido por sua trajetória como ator. E citou os diretores que transformaram este sonho de menino, nascido em humilde família baiana. Entre eles, os cineastas Karim Aïnouz, Jorge Furtado, Sérgio Machado, Paulo Betti e Hector Babenco. Falou de sua alegria em realizar, há 15 anos, no Canal Brasil, o programa “Espelho”, que abre espaço a todos, mas tem na representativa negra sua causa maior. Contou que o pai estava ali, para ver e festejar o reconhecimento do filho. Assim como sua mulher, a atriz Taís Araújo. E dedicou o prêmio aos dois filhos e, principalmente, à atriz Ruth de Souza. Com lágrima nos olhos, contou que a veterana atriz foi como uma mãe para ele.
A noite foi composta com quatro filmes. Os curtas “E o que a Gente Faz Agora?”, da baiana Marina Pontes, e “Menino Pássaro”, de Diogo Leite. E dois longas: o boliviano “Muralha”, de Gory Patiño, e o brasileiro “Vou Nadar Até Você”, de Klaus Mitteldorf.
Os dois curtas têm temática ligada ao universo afro-brasileiro. O baiano “E o que a Gente Faz Agora?” é fruto da escola de cinema da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, de onde saíram os longas “Café com Canela” e “Ilha”. Três jovens aspirantes a cineastas geram imagens da cidade de Cachoeira, com sua bela ponte que leva à vizinha São Felix, enquanto brota uma história de amor homoafetivo entre personagens negras. Uma jovem gosta de mirar belo desenho, de nomes “Amoras”, no qual dois corpos femininos se enlaçam. O curta, que disputa o Kikito, fecha trilogia aberta com “O Cego Saiu do Armário” e “Lésbica”.
“Menino Pássaro” é um filme-manifesto. Seu diretor, o jovem paulistano Diogo Leite, subiu ao palco com sua atriz Larissa Ballarotti, branca, e com convidadas negras, como a atriz Dandara de Morais, que leu manifesto em defesa das populações afro-brasileiras e do segmento LGBTQI. O texto, contundente, evoca “o extermínio de jovens negros e as preocupantes decisões (e ataques)” do chefe do Estado brasileiro “pautadas pelo racismo, lesbofobia, homofobia e transfobia”. E conclui: “em momentos como esse, a reparação histórica de grupos oprimidos (tão necessária e que vinha sendo conquistada aos poucos) é a primeira a ser atacada”.
Diogo Leite, de pele preta, avisou ao público que veria “um filme sobre a branquitude” (não a negritude), portanto, protagonizado por atores brancos. Pois estes seriam vistos pelo olhar de um negro. “A quantos filmes já assistimos com personagens negras vistas pelo olhar do branco?”, indagou. “Menino Pássaro” traz o ponto de vista de realizador negro.
O que se viu em “Menino Pássaro” é notável: em sintéticos 15 minutos, Diogo mostra um garoto negro, Gabriel, que se instala num colchão improvisado, sob uma árvore, numa calçada do sofisticado bairro de Higienópolis, aquele cujos moradores rejeitaram uma estação de metrô. Clarissa, jovem branca, não se aproxima dele, mas, para aplacar seus remorsos, deixa alimento sobre o colchão. Outros moradores, porém, estão profundamente incomodados. Em reunião de condomínio, cujo síndico é representado por Jean-Claude Bernardet, todos querem ver o “menino passarinho longe dali”. O síndico pergunta, indignado: “e os meus Direitos Humanos”?
O longa “Vou Nadar Até Você” foi apresentado por seu diretor, Klaus Mitterdorf, um dos grandes nomes da fotografia de moda no Brasil, como a realização de um sonho. Afinal, dedicou muitos anos a este que é seu primeiro longa-metragem e nasceu com o nome de “Rio-Santos”, a rodovia que liga a Baixada Santista ao Rio de Janeiro.
A trama é rarefeita. Uma jovem moradora de Santos, de nome Ophelia (Bruna Marquezine), desconfia que o grande artista visual Tedesco (o germânico Peter Ketnath, de “Cinema, Aspirinas e Urubus”) é o pai que ela não conhece. Ele está no Brasil, em Ubatuba, e ela, depois de discutir com a mãe (Ondina Clais), decide fazer o que o novo título do filme anuncia (“nadar até você”, a figura paterna). Em seu caminho por mar (e terra, de carona), há um fotógrafo de olho em cada um de seus movimentos, interpretado por Fernando Alves Pinto.
As imagens são de beleza fashion. Planos feitos com drones mostram paisagens verdes ou azuis e arrebatadoras. Homens do povo (inclusive um grupo de albinos) fazem mera figuração. O corpo nu de Ophelia (Marquezine no frescor de seus 20 e poucos anos anos) é explorado com olhar fetichista.
No debate, todas as atenções se voltaram para a atriz, atenciosa e feliz com sua estreia no cinema, depois de anos dedicada à TV. A Revista de CINEMA perguntou a Bruna Marquezine se seus agentes, ou ela mesma, tiveram preocupação com as muitas sequências em que aparece nua. Ou, com momento em que sua personagem fuma maconha com o personagem de Fernando Alves Pinto.
Ela respondeu que não houve esta preocupação nem por parte dela, nem de pessoas ligadas a ela, pois aceitou o convite para interpretar a fotógrafa e nadadora Ophelia só depois de “ler cuidadosamente o roteiro”, que lhe fora entregue pelo cineasta e por um dos produtores, Luciano Patrick.
“Estar nua ou experimentar maconha”— ponderou — “não são atos gratuitos” na trama do filme. Apaixonada por fotografia, ela viu em seu primeiro longa-metragem a possibilidade de contar uma história fascinante. E revelou sua paixão por um dos mais famosos ensaios fotográficos (A Morte de Ophelia) de Klaus Mitteldorf, inspirado por sua vez em “Ophelia”, pintura clássica de Millais (1829-1896), conterrâneo de Shakespeare.
Marquezine filmou boa parte de suas sequências dentro d’água. Ela garantiu que se preparou muito, treinou natação no Pacaembu, em São Paulo, conversou com muitos nadadores e que só recorreu a dubladora quando havia risco. “A primeira sequência que filmamos”— contou o diretor — “foi feita na Ponte Pênsil, em São Vicente. A personagem pula de uma imensa altura. Já pensou se Bruna pulasse e se machucasse no primeiro dia de filmagem?” A atriz deu outra justificativa: “eu estava disposta a pular, mas sabia que, não tendo a técnica de um mergulhador, meu pulo não daria o resultado desejado”.
Em momento algum Mitteldorf escondeu sua busca pela beleza, similar à de seus ensaios de moda. “Comecei minha carreira como fotógrafo de surf, sou surfista até hoje. Depois, me tornei fotógrafo de moda, trabalhei anos para a Fiorucci e Glorinha Kalil me permitiu fazer todos os meus ensaios de moda na Rio-Santos. Sou apaixonado pela estrada, pelo mar, por Ubatuba, Praia da Fazenda, Piaçanguaba, já perdi a conta de quantas vezes fiz aquele percurso”.
E foi ainda mais explícito: “eu quis mostrar as belezas da Mata Atlântica e do mar, de praias e parques estaduais muito bem preservados. Por isto, me concentrei mais na parte que vai de Ubatuba ao Rio, já que, de Santos a São Sebastião, há excesso de condomínios. Meu diretor de fotografia, Alexandre Hermel, captou imagens exuberantes, coloridas, imagens como nunca vimos numa ficção grandiosa brasileira, há planos vistos de cima, do lado, enfim, por ângulos que revelam apaixonantes verdes e azuis”.
Sobre a mudança do nome do filme, de “Rio-Santos” para “Vou Nadar Até Você”, Mitteldorf justificou: “no começo, o nome da estrada nos parecia o ideal, mas à medida que o filme foi se fazendo, vimos que mais que o espaço físico, sua essência era a história de uma jovem em busca do pai, percorrendo, a nado, longo caminho. ‘Vou Nadar Até Você’ nos pareceu muito mais adequado”.
O terceiro longa da mostra competitiva latino-americana veio da Bolívia: “Muralha”. O longa, dirigido por Gory Patiño, é protagonizado e coescrito pelo ator Fernando Arze Echalar, que Gramado conheceu, em edição recente, como um dos protagonistas de “Carga Sellada”. Patrício interpreta o ex-goleiro Muralha, que depois de anos de glória, quebra a clavícula e vai viver na obscuridade, como motorista de van.
Muralha vive na parte pobre de La Paz, com dinheiro contado. Quando o filho necessita de urgentíssimo transplante, ele se desespera. Não dispõe de recursos para pagar a cirurgia. E a fila no hospital público é imensa. Ele aceita fazer trabalho sujo (sequestro de pessoas para entregar a rede de tráfico de órgãos, jovens para a prostituição e drogas). Em ritmo de thriller policial, com grande carga social, “Muralha” convence, pois parte de um bom roteiro. Às vezes, cede ao melodramático e falta-lhe sutileza. Mas o bom senso acaba se impondo, graças a uma trama plena de reviravoltas, fruto de intensas pesquisas do diretor e do protagonista, auxiliados pela escritora Camila de Urioste. Nada é edulcorado. A realidade das grandes periferias urbanas aparece em registro realista e duro.
O produtor do filme, Leonel Fransezze, que é também apresentador de noticiário na TV boliviana, trouxe para o elenco de “Muralha” um astro argentino, Pablo Echarri (o El Corvo, de “Plata Quemada”). Ele interpreta um médico que, depois de perder o direito de clinicar em seu país, vai para a Bolívia prestar serviços a uma rede de traficantes de órgãos. O filme tem distribuição garantida na Argentina e foi vendido para a HBO, nos EUA. Mas o melhor de tudo — contou Fransezze — foi o sucesso alcançado na Bolívia, pequeno país andino: quase 50 mil ingressos vendidos, o que fez dele a maior bilheteria nacional nos últimos cinco anos.