Um Dia de Chuva em Nova York
Por Maria do Rosário Caetano
Em sintonia com a Europa, e na contracorrente dos EUA, o Brasil lança nesta quinta-feira, 21, o quinquagésimo-quinto longa-metragem de Woody Allen, a comédia romântica e irônica “Um Dia de Chuva em Nova York”.
Sorte dos brasileiros. Ao lançar o filme, a distribuidora Imagem Filmes permite ao espectador avaliar este trabalho concluído ano passado pelo cineasta novaiorquino, que fará 84 anos neste primeiro de dezembro. Produtivo como John Ford e Claude Chabrol, Allen já está finalizando “Rifkin’s Festival”, rodado em San Sebastián, na Espanha, com europeus na produção e, no elenco, o francês Louis Garrel, o austríaco Christhoph Waltz, e os espanhóis Elena Anaya e Sergí Lopes. Mais uma vez, ele se vê obrigado a filmar fora de seu país. Da primeira vez (em Londres, Paris, Roma e Barcelona), foi por falta de produtores estadunidenses. Agora, por falta de – digamos – clima, já que o cineasta caiu em desgraça devido ao reavivamento de denúncias de que teria assediado a filha de sete anos. Não há processo penal instituído contra Woody Allen, mas ele foi indexado pelo MeToo e renegado por alguns seus atores norte-americanos (inclusive deste filme e outros, como Mira Sorvino, de “Poderosa Afrodite”).
A imprensa francesa recebeu “Um Dia de Chuva em Nova York” com entusiasmo. A politizada revista Positif atribuiu 5 estrelas ao filme. Bande à Part, Les Inrock e Libé, os moderninhos, quatro. A Cahiers du Cinéma, bíblia da cinefilia, três. Claro que a perseguição ao octogenário e prolífico realizador novaiorquino influiu/inflou algumas destas avaliações.
A nova comédia de Woody Allen, afinal, não está à altura do magnífico “Blue Jasmine” e dos notáveis “Manhattan”, “Annie Hall”, “Match Point”, “Rosa Púrpura do Cairo”, “Zelig” ou “Dirigindo no Escuro”.
Protagonizado pelos jovens Elle Fanning (Ashleigh) e Timothée Chalamet (Gatsby Welles), o filme conta com formidável elenco de apoio, no qual se destacam o mexicano Diego Luna (“Y Tu Mamán También”), na pele de um “Zorro” canastrão, o britânico Jude Law (o roteirista Ted Davidoff) e, num solo que justifica a ida ao cinema, a norte-americana Cherry Jones.
Cherry interpreta a Sra. Welles, a mãe judia de Gatsby Welles, um alter-ego juvenil de Woody Allen (com nomes que evocam a paixão literária e cinematográfica do realizador). O rapaz, estudante universitário, leva a namorada Ashleigh, muito rica, mas caipira (de Tucson), para um final de semana em Manhattan. Aproveitará o passeio romântico para ilustrá-la em clubes de jazz e museus. Estudante de jornalismo, a mocinha, de 21 anos, tem uma tarefa: entrevistar o badalado cineasta Roland Pollard (Liev Schreiber) para o jornalzinho escolar.
O acaso, um dos esteios do cinema de Woody Allen, separará os namorados. Ele reencontrará Shannon (a texmex Selena Gomez), irmã de uma ex-namorada, que ocupará boa parte de seu tempo. Ashleigh, ao buscar o cineasta famoso (e de nome metalinguístico), acabará envolvida pelo fascinante mundo do cinema, com suas celebridades. A principal delas será Francisco Vega, um latin-lover mexicano, que a levará até seu “covil”.
Uma série de encontros (e desencontros) ocupará o fim de semana dos dois jovens. Dos encontros, o mais notável é, relembremos, o de Welles filho com Mamãe Welles, num espaço privado, durante festa milionária, da qual o jovem tentará, sem êxito, fugir. O que ouviremos (revelação surpreendente e diálogos cortantes) constitui instante único, digno de antologia.
Woody Allen, mais uma vez, convoca para assinar as imagens de “Um Dia de Chuva em Nova York” um dos maiores diretores de fotografia do mundo, o italiano Vittorio Storraro, parceiro de Bertollucci, Coppola e Carlos Saura. E seu, em muitos de seus filmes recentes (inclusive na vindoura aventura em San Sebastián, no País Basco).
Vale repisar que “Um Dia de Chuva em Nova York” fazia parte de pacote de quatro filmes que a Amazon produziria para Woody Allen. Foi o primeiro e último. Processo judicial movido pelo novaiorquino, devido ao rompimento unilateral do contrato por parte da empresa, chegou (ao que tudo indica) a bom termo. O ator-cineasta encontrou abrigo na Europa e pôde adiar sua aposentadoria forçada.
Apoio total aos movimentos que representam minorias e lutam contra práticas abomináveis (como o assédio). Que façam suas campanhas! Isto é saudável e uma das grandes conquistas de nosso tempo. Mas que não se interditem obras de artistas como Woody Allen e Roman Polanski. O cineasta franco-polonês, por exemplo, vem enfrentando, aos 86 anos, uma série de contratempos. Por viver em Paris, consegue desfrutar de ambiente mais aberto e arejado.
Em setembro último, no Festival de Veneza, Polanski (mesmo ausente, pois não viaja temendo ser detido e conduzido à prisão nos EUA) foi constrangido por ato da cineasta argentina Lucrécia Martel, presidente do júri. A diretora de “O Pântano” avisou que não compareceria à sessão de gala de “J’Accuse” (novo Polanski, sobre o Caso Dreyfuss) em solidariedade à luta das mulheres. A declaração causou muita controvérsia.
Na hora de decidir os vencedores do festival veneziano, o Leão de Ouro de melhor filme coube ao “Coringa”, de Todd Phillips. E o Grande Prêmio do Júri (Leão de Prata) para “J’Accuse”.
A revista Cahiers du Cinéma de outubro (número 759, encapado com foto de Godard), ao fazer seu balanço da recém-concluída edição do festival italiano, lembrou que, mais uma vez, Polanski ganhava o “Poulidor” (prêmio para quem sempre fica em segundo lugar). Registrou, em texto de Cyril Béghin e Jean Philippe Tessé, “a histeria” que marcou a competição (e a premiação). E sobrou para Lucrécia Martel: “a presidente do júri suscitara bela confusão ostentando sua hostilidade em relação ao realizador (Roman Polanski) ao declarar que sentia-se incomodada com relação ao filme e que não assistiria à sua projeção oficial”. Para concluir: “Uma posição insustentável tanto para o júri, como para o festival, que deveria ter escolhido Martel ou Polanski”.
Frente à situação de constrangimento aos dois octogenários realizadores, resta aos que defendem a liberdade de expressão artística sugerir procedimentos menos radicais. Em recente matéria publicada no The Washington Post (traduzida pelo Caderno 2, do Estadão, 16-11-19), nos deparamos com solução digna de registro. Ao exibir, para as novas gerações, desenhos animados realizados em décadas passadas e marcados por procedimentos hoje inaceitáveis, a Disney Plus e a Warner tomaram posições diferentes. A primeira, fez valer um aviso “em cima do muro”. A segunda foi mais explícita.
A Disney registrou, lacônica, que alguns elementos de certos filmes programados em seu serviço de streaming estão “desatualizados”. Já a Warner avisou: “Os desenhos animados que você está prestes a ver são produtos de seu tempo. Eles podem representar alguns dos preconceitos étnicos e raciais que eram comuns na sociedade norte-americana. Essas representações estavam erradas na época e estão erradas hoje”.
Por que o MeToo não propõe, no território estadunidense, cartaz na entrada do cinema e cartela na abertura do filme com suas críticas ao que julga condenável em Woody Allen? Não seria mais democrático que bloquear a circulação do filme no país onde ele nasceu, vive e trabalha?
Um Dia de Chuva em Nova York
EUA, 94 minutos, 2018
Direção: Woody Allen
Elenco: Elle Fanning, Timothée Chalamet, Jude Law, Diego Luna, Cherry Jones, Liev Schreiber, Selena Gomez, Rebecca Hall, Kelly Rohrbach e Will Rogers
Fotografia: Vittorio Storaro