Os Miseráveis
Por Maria do Rosário Caetano
“Os Miseráveis”, um filme contemporâneo construído sob inspiração de Victor Hugo, estreia nesta quinta-feira, 16 de janeiro, recomendado por indicação ao Oscar de melhor produção internacional e pelo Prêmio do Júri, em Cannes, láurea dividida com o brasileiro “Bacurau”.
Quem consultar o site Allo Ciné verá que o filme é, como há muito não se via, uma das maiores unanimidades da crítica francesa. Ganhou 5 estrelas da Cahiers du Cinéma, que lhe dedicou capa e 12 páginas da edição de novembro, da exigente Positif, do direitista Le Figaro, do católico La Croix, da Marie Claire e do guia Télérama. E quatro estrelas do respeitado Le Monde, dos descolados Les Inrock e Libération, do comunista L’Humanité, das revistas Le Point e Rolling Stones. Dos grandes, só Le Nouvel Observateur lhe atribuiu 3 estrelas. No dia 28 de fevereiro, na festa do Cesar, o Oscar francês, o filme deve brilhar. E olhe que terá concorrência forte, a começar pelo “J’Accuse”, de Roman Polanski, e “Gloria Mundi”, de Robert Guediguian.
Ao longo dos sintéticos 102 minutos de “Os Miseráveis”, acompanhamos, sem piscar, narrativa adrenalinada e convulsiva, que Ladj Ly construiu com fôlego de veterano. Cineasta negro, originário do Mali e criado em subúrbios parisienses povoados por imigrantes vindos da África, ele assina uma das mais impressionantes estreias do cinema europeu contemporâneo. Muitos dos episódios do filme foram vivenciados (ou testemunhados) por ele. O roubo de um filhote de leão, que movimenta parte da trama, foi efetuado por um dos amigos próximos do “Spike Lee francês”.
O filme parece fruto do labor de um profissional muito experiente. Ly mantém intenso diálogo com o cinema social de países periféricos, inclusive com o brasileiro “Cidade de Deus”. Pairando sobre tudo está a ira santa do autor de “Os Miseráveis”, Victor Hugo (1802-1885), embora o longa-metragem nada tenha a ver, diretamente, com o clássico da literatura francesa (publicado em 1862). A não ser o título, somado a fugaz referência em diálogo entre policiais (o poeta e romancista teria ambientado parte de seu livro no local, Montfermeil, onde se desenvolve a trama contemporânea). E, claro, no final, junto aos créditos, um letreiro traz transcrição de poderosa ideia huguiana, capaz de sintetizar o propósito do filme, servindo-lhe de régua e compasso: “Meus amigos, nunca digam que há plantas más ou homens maus. O que há são maus cultivadores”.
Em 2005, Paris entrou em convulsão. Ladj Ly fez um curta-metragem sobre a rebelião periférica que sacudiu a França com carros incendiados e fúria indômita. E, aí, construiu (com Alexis Manenti e Giordano Gederlini) o poderoso roteiro deste longa-metragem que, agora, chega aos cinemas brasileiros.
“Os Miseráveis” (Les Misérables), se lido superficialmente, narra a história de três policiais: o recém-chegado Stéphane (Damien Bonnard) passa a integrar o Esquadrão Anti-Crime de Montfermeil, nos subúrbios de Paris. Recebe as boas-vindas de uma chefe mulher (a compridona Jane Balibar) e assume seu posto em viatura comandada pelo esquentado Chris (Alexis Manenti) e guiada pelo agente e motorista Gwada (Djibril Didier Zonga), de pele negra. Chris e Gwada são experientes e conhecem todas as manhas da região. Conhecem o “prefeito” autonomeado (Steve Tientcheu), um negro esguio, que “administra” os problemas da comunidade, e também o líder Salah, ex-presidiário, de origem muçulmana, que regenerou-se pelo caminho da espiritualidade.
O policial Stéphane descobrirá, logo, que as tensões entre as gangues locais são brutais. Adolescentes que vivem como bichos soltos estão com a sensibilidade à flor da pele. Grave falha da trinca policial fará da segunda parte do filme, mais reflexiva e dura, narrativa das mais notáveis. Um dos policiais, justo o negro, vai atirar à queima-roupa num menino rebelde.
O que fazer? Socorrê-lo ou correr atrás de outro moleque black, que filmou, com um drone, o abuso de autoridade vindo de quem devia protegê-los?
Esta é uma das questões essenciais de “Les Misérables”. Ao sairmos do cinema, constataremos que o filme vai muito além de outros que abordaram temática semelhante. Caso, para ficar em exemplo francês, de “O Ódio” (1995), de Mathieu Kassovitz. E por que?
Porque Ladj Ly consegue algo raro no cinema social contemporâneo, desnudar (desvendar com imagens poderosas e roteiro preciso) as estruturas do poder político-policial. Ou seja, os grandes (e pequenos) poderes que, ao invés de assistir aos deserdados (aos miseráveis do mundo periférico) cultivam, a cada novo dia, a ira destes despossuídos. Um filme obrigatório.
Um registro: Fernando Meirelles encontrou a equipe de “Os Miseráveis” em um hotel de Los Angeles, nas vésperas da entrega do Globo de Ouro, prêmio ao qual ambos foram indicados. Foi apresentado a Ladj Ly e a dois atores pelo produtor Vincent Maraval, que, anos atrás, comprara “Cidade de Deus” (para o mercado francês). Opinião do brasileiro sobre “Os Miseráveis”: ‘filmaço’.
Os Miseráveis
França, 102 minutos, 2019
Direção: Ladj Ly
Roteiro: Ladj Ly, em parceria com o ator Alexis Manenti e com Giordano Gederlini
Elenco: Damien Bonnard, Djebril Didier Zonga, Alexis Manenti, Almamy Kanouté, Issa Perica, Steve Tientcheu, Jane Balibar
Distribuição: Diamond Films