Aldir Blanc em filmes

Por Maria do Rosário Caetano

Três filmes poderão aplacar as saudades que os fãs sentirão do compositor Aldir Blanc, autor dos versos de “O Bêbado e a Equilibrista” e “Mestre Sala dos Mares”, morto – vítima do coronavírus – na madrugada desta segunda-feira, 4 de maio.

O artista carioca, nascido na Tijuca, foi tema do média-metragem “Aldir Blanc – São Dois prá Lá Dois prá Cá”, teve significativa participação no ficcional “Praça Saenz Peña”, de Vinícius Reis, e é a personagem central de “Aldir Blanc – O Ourives do Palavreado”, longa documental em fase de finalização. De quebra, sua verve satírio-corrosiva dá o tom de “Santa de Casa”, debochada animação de Allan Sieber.

O média-metragem “Aldir Blanc – São Dois prá Lá Dois prá Cá”, de André Sampaio, Alexandre Ribeiro de Carvalho e José Roberto Morais, nasceu graças à primeira edição do projeto DocTV, criado na gestão de Gilberto Gil à frente do MinC. Iniciado em 2003, foi concluído e exibido dois anos depois, em rede nacional, pela TV Brasil.

Ao saber da morte do compositor, Alexandre lembrou que, em 2003, “nós três batemos na porta da casa de Aldir, esperamos com paciência e ele demorou para abrir”. Quando abriu, “recebemos muito mais do que histórias e causos de sua vida e carreira. Recebemos um turbilhão de emoções vivas, depositadas em lugares aonde só escafandristas podem e gostam de ir”. Aquele “mergulho em emoções profundas” deu origem “ao filme construído com imenso carinho por dois anos e meio, tempo exíguo para se conhecer um homem da altura de Aldir”. Pouco tempo – pondera, com indignação – “para mergulhar nas profundezas da alma sensível de um povo sofrido-criativo, diga-se agora, se comparado às profundezas da perversão e amargura dos odientos destes dias atuais”. Aldir “não partiu, fugiu da irracionalidade antipoética de nossos dias.”

Para André Sampaio, que se define essencialmente como um “coordenador técnico” do projeto, “Aldir Blanc – São Dois prá Lá Dois prá Cá” é uma “biocinegrafia de um dos compositores mais incríveis do Brasil, além de poeta e cronista”. E mais: “um vascaíno de Vila Isabel, um cariocaço!”

O documentário, que dura 52 minutos, mobilizou, além dos três diretores, o fotógrafo Fabrício Tadeu, o experiente montador Severino Dadá (colaborador de Nelson Pereira dos Santos e pai de André Sampaio) e o som de Luís Eduardo Carmo. “Uma equipe pequena” – lembra Sampaio –, “mas felizmente tudo chegou a bom termo e contamos com ótimas participações de João Bosco, Moacyr Luz, Guinga, Sueli Costa, Melo Menezes e, aos 80 anos, o Senhor Ceceu Rico, pai do Aldir”. E mais: “com direito a discurso do Fausto Wolf, num filme muito Zona Norte, com tomadas aéreas da mais linda das igrejas cariocas, a de Nossa Senhora da Penha”. O filme pode ser visto no Youtube.

Em “Praça Saenz Peña”, estreia do carioca Vinícius Reis no longa ficcional, o verdadeiro Aldir, médico psiquiatra e artista tijucano, contracena com o professor Paulo, personagem interpretada pelo ator mexicano-brasileiro Chico Diaz.

O cineasta conta que Aldir Blanc sempre foi uma inspiração para o projeto “Praça Saens Peña”. Em algum momento do processo – relembra –, “senti vontade de chamá-lo para participar do filme. O jornalista e pesquisador Hugo Sukman, que tinha acabado de escrever um livro com Aldir, me ajudou a contatá-lo”.

“Havia no meu roteiro” – detalha – “algumas indicações-recomendações de falas para o Aldir, que eu havia anotado a partir de entrevistas que ele dera sobre a Tijuca. Ele me ligou e foi logo avisando ‘topo fazer, só não me dê falas para decorar’. Reescrevi, então, a cena que passou a ter poucas linhas de rubrica: o professor Paulo (personagem do Chico Diaz), que está escrevendo um livro sobre a Tijuca, entrevista Aldir Blanc no bar da Dona Maria, na Muda. Sobre a mesa, dois chopes, o bloco de anotações de Paulo e um gravadorzinho”.

No dia das filmagens, “Aldir chegou com Mary, sua mulher, e um grupo de amigos. No final da filmagem, bebemos algumas cervejas e Aldir, cercado pela equipe, elenco e seus amigos, cantou o samba-canção ‘Molambo’, acompanhado por Pratinha no violão de 7 cordas. Nesse dia, ele me contou que quando ouviu ‘Molambo’ pela primeira vez, ainda adolescente em Vila Isabel, quis ser compositor”. Por causa do Aldir – conclui Vinícius Reis – “por causa desse encontro, ‘Molambo’ (Jaime Florêncio e Augusto Mesquita, 1953) viria a tornar-se uma canção fundamental na trilha sonora de ‘Homem Onça’, filme que realizei dez anos depois do ‘Praça Saens Peña’, ainda inédito e também protagonizado por Chico Diaz”.

O ator, como Vinícius, guarda as melhores recordações das filmagens de “Praça Saenz Penã”. “Foi um encontro mágico para mim”, relembra. “Fora estar ali frente à grandeza, à gentileza e à delicadeza do Poeta, uma pessoa, em todos os sentidos, ímpar, ainda pude ver cruzar, naquela sequência, as duas linhas narrativas do filme”. Ou seja, “na pessoa do Aldir, o documentário, na do meu personagem, a ficção. Ambos se cristalizavam, ali, nas palavras do Aldir, naquele boteco, com aquelas duas tulipas de chope… Ele era a síntese do bairro e aquela sequência era a síntese do filme”.

Chico Diaz entende que “Aldir recorria, naquele momento, à criança tijucana que ele fora. Apresentava-se como o fundador de seus argumentos, expressava sua forma de ver o bairro onde nascera e se criara. Evocava aquele garoto formado ali naquela área, base fertilizadora de sua sensibilidade e testemunho”.

“Para ele” – relembra o ator –, “quem criava as letras das canções era aquele garoto de Vila Isabel… O tal do Aldir Blanc não letrava porra nenhuma, mas aquele garoto, o Aldir Blanczinho, sim. A Tijuca profunda era aquela Tijuca do bar pequeno, da solidariedade, do jogo de porrinha, do samba”.

O intérprete do professor e pesquisador da Tijuca conta que, depois de filmar a sequência que soma documentário e ficção, “houve uma cantoria longa que acabou não entrando na edição final do filme. Acabei bêbado claro (vai acompanhar pra ver!), mas encantado, me sentindo uma canoinha na frente de um transatlântico. O mestre sala dos mares, um bravo feiticeiro!”

O terceiro filme, “O Ourives do Palavreado” – um longa documental sobre a intensa trajetória de Aldir Blanc – trará a assinatura de Marcus Fernando (codiretor, com Eduardo Ades, de “Torquato Neto – Todas as Horas do Fim”), em parceria com Hugo Sukman, biógrafo de Aldir. As filmagens estão bem adiantadas e a produção contou, nesta primeira etapa, com “apoio essencial” do Canal Brasil. Marcus Fernando, que é também produtor musical, desfrutou de intensas convivência e amizade com o compositor da Muda (de Vila Isabel, da Tijuca, da Zona Norte, enfim).

Consternado com a morte do amigo, Marcus lembrou: “Nos últimos anos, o Aldir estava cada vez mais recluso, não saía de casa, quase nunca recebia alguém que não fosse da família, filhas, netos e bisnetos. Não dava entrevista em vídeo, só vez por outra algum depoimento por e-mail”. Mesmo assim, Marcus nutria o desejo de fazer um documentário sobre a trajetória dele. “Esta ideia rondava a minha cabeça há um bom tempo”. Afinal, “minha ligação com ele já somava mais de 20 anos de intensa convivência”.

“Tudo começou” – relembra – “quando, em 1996, participei da produção do show dos 50 anos de Aldir, no Canecão. Nessa época eu também morava na Tijuca, frequentávamos o Bar da Maria, na rua Garibaldi, e o bloco de carnaval nem Muda Nem Sai de Cima, que se concentrava no bar. Convivemos muito, frequentei sua casa, viramos madrugadas em sua casa, entre amigos. Fiquei amigo das filhas e da Mary, sua mulher”.

No dia em que Marcus Fernando decidiu que tinha que realizar um registro, nem que fosse só em áudio, ele ligou para Mary, esposa do compositor (afinal, ela tinha assistido ao documentário sobre o Torquato Neto e adorado). “Expliquei a ideia a Mary, pra saber se o Aldir toparia”, relembra. “Ele topou, então chamei o Hugo Sukman pra dividir a empreitada comigo, no roteiro e direção, já que ele é uma pessoa que, assim como eu, tem total entendimento do universo muito particular da obra do Aldir”.

A dupla passou, então, uma tarde na casa do compositor, em março do ano passado. “Colhemos um depoimento de mais de cinco horas. Voltamos em julho, dessa vez também com uma câmera, não para um ‘talking head’, mas para registrar detalhes do seu ‘bunker’ na Tijuca, seu escritório, seus livros e discos etc. É essa a ideia do filme, um mergulho profundo nesse universo do Aldir, revelando essa obra única na música popular brasileira”.

“Essa primeira fase foi possível graças ao Canal Brasil, que é coprodutor do filme”, conta Marcus Fernando. “Agora, nossa luta é conseguir finalizar o filme, etapa complexa e dispendiosa”. Mais complexa ainda “nesse momento tão difícil que o audiovisual vem enfrentando”. Se “já estava complicado antes mesmo da pandemia, imagine agora”.

Em 2005, o cineasta João Batista de Andrade realizou “Vlado – 30 Anos Depois”, documentário que reconstituiu a prisão e  assassinato do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975) em dependência militar paulistana. Entre os depoimentos colhidos pelo cineasta, destacam-se os de Aldir Blanc e João Bosco, que lembram e interpretam “O Bêbado e a Equilibrista”, composição imortalizada por Elis Regina e transformada em hino da Anistia. Em seus versos, escritos por Aldir, a canção evoca Carlitos (Charles Chaplin) e o irmão do Henfil (Betinho). E lembra que, no solo do Brasil, choram Marias e Clarices. No caso, Clarice Herzog, companheira de Vlado.

Por fim, há que se lembrar a irreverente animação do gaúcho-carioca Allan Siber, “Santa de Casa”, baseada em textos celebratórios-satíricos da gente tijucana, do carnaval e dos bares da Zona Norte. Aldir aparece, em desenho de Sieber, no final da narrativa, num botequim, espaço que ele cultivava e adorava. São 17 minutos de pura irreverência e picardia carioca.


Aldir Blanc – São Dois prá Lá Dois prá Cá (2003/2005) – Documentário de André Sampaio, Alexandre Ribeiro de Carvalho e José Roberto Morais. Produção do DOC TV-MinC. Com o testemunho de Aldir Blanc e depoimentos de João Bosco, Guinga, Suely Costa, Moacyr Luz, entre outros. Duração: 52 minutos.

Praça Saenz Peña (2009) – Primeiro longa-metragem ficcional de Vinícius Reis. Com Chico Diaz, Maria Padilha, Isabella Meirelles, Gustavo Falcão, Maurício Gonçalves, Guti Fraga, Regina Mello e participação especial de Aldir Blanc (em longa sequência). Duração: 100 minutos.

Aldir Blanc – O Ourives do Palavreado – Longa-metragem documental de Marcus Fernando e Hugo Sukman. Coprodução do Canal Brasil. Em fase de captação de recursos para finalização. Duração prevista: 90 minutos.

Santa de Casa (Histórias Inexplicavelmente Inexplicáveis) (2006) – Animação de Allan Sieber, com Paulo César Pereio e Tonico Pereira (vozes e imagem desenhadas), Neila Tavares, Jaguar, Fausto Wolf, Stepan Nercessian, entre outros. Baseado em textos de Aldir Blanc. Duração: 17 minutos.

Vlado – 30 Anos Depois (2005) – De João Batista de Andrade. Com depoimentos, entre eles os de Aldir Blanc e João Bosco, que registram a prisão e o assassinato de Vladimir Herzog em dependência militar, em São Paulo. Duração: 90 minutos.

 

FILMOGRAFIA DE VINÍCIUS REIS

2001 – “O Vício da Liberdade” (média-metragem)
2002 – A Cobra Fumou (longa documental)
2009 – “Praça Saenz Peña” (longa de ficção)
2012 – “Noite de Reis” (longa de ficção)
2014 – “Rio em Chamas” (documentário, codireção de Clara Linhart e Daniel Caetano)
2020 – “Homem Onça” (longa de ficção)

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