Edição virtual do Festival de Gramado terá Ruy Guerra, Alcione e King Kong en Asunción
Por Maria do Rosário Caetano
A primeira edição virtual (todos os filmes serão exibidos pelo Canal Brasil) do Festival de Cinema de Gramado promete – além de atingir seu maior público histórico – causar alvoroço e badalação costumeiros. Mesmo sem o tapete vermelho e a presença física dos artistas. Afinal, foram escalados nomes consagrados (Ruy Guerra, Alcione, Denise Fraga, Marco Nanini, Sidney Magal) e diretores e atores jovens (mas com elencos recheados de estrelas). Como o festival gaúcho gosta.
A nova curadoria de Gramado, formada com a atriz argentina Soledad Villamil, o crítico Marcos Santuário e o cineasta Pedro Bial, selecionou sete longas brasileiros e sete latino-americanos. Ruy Guerra volta à competição pelo Troféu Kikito com “Aos Pedaços”. O moçambicano-brasileiro, que ano que vem tornar-se-á nonagenário, segue ativo e inquieto. Seu novo filme tem trama rarefeita e conta com Simone Spoladore, Emílio Mello e Júlio Adrião no elenco. O diretor de “Os Fuzis” e “Estorvo” preocupa-se cada vez mais com a linguagem que com entrechos narrativos e reviravoltas.
Os outros seis concorrentes da competição brasileira são integrantes da Jovem (e Média) Guarda. O pernambucano Camilo Cavalcante, que o Festival de Paulínia consagrou com “A História da Eternidade” (2014), chega com “King Kong en Asunción”, um mix de falares e territórios latino-americanos (Bolívia, Paraguai e Brasil). Seu protagonista, o ator candango Andrade Júnior, falecido ano passado, não terá a alegria de ver seu road movie iniciar trajetória festivaleira. O gorila, que fez história no cinema hollywoodiano, chegará transfigurado ao público e embalado na pulsão terceiro-mundista de seu criador, um cineasta dos mais inquietos. Uma atriz paraguaia, Ana Ivanova, do cult “Las Herederas”, empresta sua voz aliciante ao longa pernambucano.
A dupla paulistana Marco Dutra e Caetano Gotardo promove a estreia brasileira de “Todos os Mortos” – representante do Brasil na competição de Berlim – no festival gaúcho (aliás, todos os filmes selecionados são 100% inéditos em nosso país). No elenco, Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Thomás Aquino (de “Bacurau”), Gilda Nomacce, Teca Pereira e, em participações especiais, a lusitana Leonor Silveira (atriz-fetiche de Manoel de Oliveira) e a cantora Alaíde Costa. Dutra definiu “Todos os Mortos”, para a Revista de CINEMA, quando o levou a Berlim: “nesse filme, Caetano Gotardo e eu, que somos admiradores de Tchecov, nos aproximamos um pouco dele, do seu jeito de abordar o mundo; a história surgiu de uma espécie de estudo da vida doméstica das personagens num momento social (no caso, o fim do século XIX em São Paulo)”. Ou seja, num trecho da história de um Brasil que acabara de realizar problemática abolição da escravatura.
Três dos longas brasileiros selecionados são comandados por mulheres: “Por que Você Não Chora?”, da brasiliense Cibele Amaral, “O Samba é Primo do Jazz”, da carioca Angela Zoé, e “Me Chama que Eu Vou”, da paulistana Joana Mariani. O primeiro tem temática feminina explícita. Atrizes como Elisa Lucinda, Bárbara Paz, Cristiana Oliveira, Luciana Martuchelli e Maria Paula testam os limites comportamentais do universo feminino (registre-se que há personagens masculinos no filme). Cibele tem um Kikito em casa, pois seu (hilário) curta “Momento de Decisão” foi o grande vencedor em Gramado, anos atrás.
Os documentários de Angela Zoé e Joana Mariani são cinebiografias. “O Samba é Primo do Jazz” traça o perfil artístico da maranhense Alcione, que além de grande cantora, é trumpetista. Houve um tempo em que ela explorou, e bem, seus dons jazzísticos. Depois, o imenso sucesso de seus sambas mais populares a levou para as paradas de sucesso e ao comando de programa semanal na Rede Globo. Mas a cantora e instrumentista segue convicta de que samba e jazz, gêneros musicais de raízes negras, são parentes legítimos.
“Me Chama que Eu Vou” é a cinebiografia do agora septuagenário Sidney Magal, nome da linha de frente da música dançante com tempero brega. Seus maiores sucessos – “Meu Sangue Ferve por Você”, “Sandra Rosa Madalena” e “Me Chama que eu Vou” – vivaram “chicletes auditivos”. Mas, com o passar dos anos, o cantor rebolante acabou esquecido. Até que sua carreira foi reaquecida pelo cinema. Nos anos 1970, ele havia atuado em “O Sexo das Bonecas” e “Amante Latino”. Nos 90, faria uma pequena participação em “O Inspetor Faustão e o Malandro”. Sua carreira de ator não se consolidara. Em 2003, porém, Vicente Amorim o convocou para participação especial em “O Caminho das Nuvens”, protagonizado por Wagner Moura e Cláudia Abreu. A aparição de Magal causou sensação. Dali em diante, o cantor seria convocado para participações em telenovelas e faria um sacerdote inca no ‘terrir’ “Um Lobisomem na Amazônia”, de Ivampiro Cardoso e “ele mesmo” em “Jean Charles”, de Henrique Goldenberg. Transformou-se, até, no “astro” de “Magal e os Formigas” (2016), de Newton Cannito. Agora ganha um filme inteirinho para chamar de seu.
Três anos atrás, Felipe Bragança, selecionado por Gramado (com “Não Devore meu Coração”), trocou a competição gaúcha pela noite inaugural do Festival de Brasília. Mas, pelo visto, não deixou mágoas. Tanto que “Um Animal Amarelo”, seu mais novo longa, é um dos escolhidos para a edição número 48 da festa riograndense.
O realizador carioca define “Um Animal Amarelo” como “uma tragicomédia, uma fábula tropical”. A trama é das mais instigantes. Um cineasta falido, de 33 anos, empreende jornada por três territórios – o brasileiro, o português e o moçambicano. Territórios plantados em três continentes muito diferenciados (América Latina, Europa e África). O cineasta fictício, um pouco mais novo que Felipe que fará 40 anos em dezembro, busca pistas do passado do avô. Um passado marcado pela violência.
A seleção latina, graças à participação (e prestígio) da atriz e cantora Soledad Villamil, do oscarizado “O Segredo dos seus Olhos”, ganha peso inclusive geográfico. Registre-se a volta do México à competição. O país, que forma com Brasil e Argentina a trinca mais potente do cinema latino-americano, andava distante da vitrine gramadiana. O filme que representará a segunda pátria de Luis Buñuel é “Dias de Invierno”, de Jaiziel Hernández.
Não há diretores estrelados entre os longas da América Latina. São todos, sem exceção, nomes a serem descobertos por todos os espectadores que sintonizarem o Canal Brasil (e o Canal Brasil Play): a uruguaia Mariana Viñoles (“El Gran Viaje al País Pequeño”), o argentino Martin Desalvo (“El Silencio del Cazador”), o paraguaio Hugo Giménez (“Matar a Un Muerto”), o chileno Omar Zuñiga (Los Fuertes”), o boliviano Rodrigo Bellot (“Tu me Manques”) e o colombiano David Davi ( “La Frontera”).
O quarteto de homenageados do ano, que contará com o ator Marco Nanini (Trofeu Oscarito) e a cineasta Laís Bodanzky (Troféu Eduardo Abelin), completa-se com a atriz Denise Fraga (Troféu Cidade de Gramado) e com o ator uruguaio Cesar Troncoso (Kikito de Cristal). Troncoso, registre-se, tornou-se conhecido no Brasil quando “O Banheiro do Papa”, delicioso filme dirigido por Cesar Charlone e Enrique Fernández, estourou em Gramado. Ele se sente uruguaio e brasileiro, faz novelas na Globo e tem mais de uma dezenas de filmes realizados em nosso país, em língua portuguesa (ou em portuñol).
O Festival de Gramado acontece de 18 a 26 de setembro.
LONGAS BRASILEIROS
. “Aos Pedaços”, Ruy Guerra (RJ)
. “King Kong em Asunción”, Camilo Cavalcante (PE)
. “Todos os Mortos”, Marco Dutra e Caetano Gotardo (SP)
. “Por que Você Não Chora?”, Cibele Amaral (DF)
. “O Samba é Primo do Jazz”, Angela Zoé (RJ)
. “Me Chama que Eu Vou”, Joana Mariani (SP)
. “Um Animal Amarelo”, de Felipe Bragança (RJ)
LONGAS LATINOS
. “El Silencio del Cazador”, Martin Desalvo (Argentina)
. “Matar a Un Muerto”, Hugo Giménez (Paraguai)
. “Los Fuertes”, Omar Zuñiga (Chile)
. “El Gran Viaje al País Pequeño”, Mariana Viñoles (Urug.)
. “Tu me Manques”, Rodrigo Bellot (Bolívia)
. “Dias de Invierno”, Jaiziel Hernández (México)
. “La Frontera”, David David (Colômbia)