Um filme sobre a infância de Polanski e Kosinski?

Por Maria do Rosário Caetano

O filme “O Pássaro Pintado”, que ano passado causou repulsa em parte da plateia do Festival de Veneza, seria uma recriação da infância de Roman Polanski? Ou uma autobiografia do escritor Jerzy Kosinski? Ou uma soma de memórias desses dois famosos judeus-poloneses?

Difícil de responder com precisão. Para tentar jogar alguma luz sobre tais indagações, o primeiro passo a seguir é encher-se de coragem e assistir ao longuíssimo “O Pássaro Pintado”, dirigido pelo tcheco Václav Marhoul (170 minutos, disponível na plataforma Cinema Virtual). Depois, quem sabe, ler o romance homônimo, publicado por Jerzy Kosinski, nos EUA, em 1965. Afinal, trata-se da matriz do filme que acaba de chegar ao streaming.

“O Pássaro Pintado” é um longa-metragem para quem tem nervos de aço. Quem sofre ao ver crianças (e animais!) submetidos a condições bárbaras e aflitivas, deve ignorar esta produção de nome (pelo menos na aparência) tão atraente.

O filme, que rachou a crítica, tem como personagem central um garotinho judeu (o carismático Petr Kotlan). Ele viverá via-crúcis paroxística, vagando pelo Leste Europeu conflagrado pela Segunda Guerra Mundial. A região está ocupada pelos nazistas. Por isso, famílias judaicas, desesperadas, entregam seus filhos a pessoas caridosas (muitas vezes com ajuda de padres) na tentativa de salvá-las do extermínio.

Para colocar a adaptação do romance de Kosinki de pé (ao custo de quase U$8 milhões), Václav Marhoul somou forças financeiras tchecas, eslovacas e ucranianas (notem a ausência da Polônia). E mobilizou elenco internacional: o sueco Stellan Skarsgard (de “Ondas do Destino”), os estadunidenses Harvey Keitel e Barry Pepper, o alemão Udo Kier (de “Bacurau”) e o britânico Julian Sands. Eles se somam a grandes atores do Leste Europeu. Isto não significa que o filme seja falado em inglês, o esperanto do celuloide (e agora do digital). Aliás, falas no filme, se somadas, não passarão de dez minutos (em 2h50 de narrativa).

Ao construir seu intrigante – e violentíssimo – filme, Václav Marhou lançou mão do “esperanto eslavo”, idioma utópico criado em 2006. Lançou mão, também, de arrebatadora fotografia em preto-e-branco (do craque Vladimir Smutny), de cenários de perturbadora beleza (zonas rurais povoadas por gente brutal), e nos poupou de símbolos nazistas (são raros) e de batalhas e explosões (foi comedido nesse item). A brutalidade está na ação humana. Um “bestiário” que soma pedofilia, incesto, estupros, tortura (o personagem de Udo Kier, um velho camponês ciumento e possessivo, arranca os olhos de outro camponês, mais jovem, pois este estaria olhando cobiçosamente para a esposa daquele). As personagens de Kosinski (e, por extensão, de Marhoul) estão mais próximas de bestas-feras que de seres humanos.

Voltemos, pois, às perguntas iniciais. O que a infância de Polanski e Kosinski têm a ver com “O Pássaro Pintado”? Muito (ou pouco, dependendo do ponto de vista). Jerzy, que seria escritor e ator (“Reds”, Warren Beatty, 1981), nasceu em Lodz, na Polônia, em junho de 1933. Dois meses depois, em Paris, nascia Roman Polanski. Ambos em famílias judias (e polonesas). Os dois sofreriam, dos seis aos onze anos, os horrores da Segunda Guerra Mundial. Com a Polônia ocupada por Hitler, viveriam sob nomes falsos, em casas de gente caridosa, sob a benção de religiosos católicos.

Jerzy e Roman se conheceriam no outono de 1954, na Universidade de Lodz. O primeiro estudava Ciências Sociais e o segundo, uma espécie de ambicioso “diretor-estagiário”, estudava Cinema. Nas lembranças de Kosinski (em “Polanski, uma Vida”, de Christopher Sandford, Nova Fronteira, 2011), o “duende de 21 anos, dono de uma dádiva de nariz”, derrubou propositalmente chá quente em seu terno marrom. O futuro escritor e o futuro cineasta, mesmo assim (ou por isso), tornaram-se amigos.

Muitos anos depois da Grande Guerra, Kosinski enrolaria as autoridades da Polônia (agregada ao bloco soviético) e conseguiria radicar-se nos EUA, país que lhe concederia uma segunda nacionalidade e publicaria seus livros. Inclusive o “Pássaro Pintado”. Polanski escaparia da Polônia rumo a Paris, onde nascera. Ambos viveriam existências que somariam talento, polêmicas e tragédias.

O livro “O Pássaro Pintado” (1965), vendido como uma autobiografia de seu autor, fez enorme sucesso no Ocidente (na Polônia foi proibido, pois seria “um amontoado de mentiras”). Parte de seus leitores tomou o romance como “uma narrativa inspirada na infância de Polanski”, que tornara-se famoso quatro anos antes, com seu primeiro longa (“A Faca na Água”, 1962) e badaladíssimo, com o filme seguinte, “Repulsa ao Sexo”, com a jovem Catherine Deneuve (1965).

Christopher Sandford garante, na página 75 de “Polanski, uma Vida”, que cineasta e escritor, “provavelmente conscientes dos dividendos que isso (terem vivido infância tão brutal) poderia render para suas carreiras”, não fariam “qualquer esforço para negar esta teoria”. Afinal, “Roman sentia a necessidade de ser sempre o centro das atenções”.

O ponto de partida de “O Pássaro Pintado” tem, sim, a ver com a infância de Polanski e Kosinski. Meninos judeus, eles viveram as agruras da ocupação da Polônia pelos nazistas, foram escondidos em casas de famílias católicas, tiveram que revirar lixo em busca de comida, depararam-se com muitos cadáveres nas ruas de suas cidades. Polanski viu “velhas senhoras cortando a carne pútrida de um cavalo morto” (para comer). Quando a aviação nazista destruiu o abastecimento de água de Cracóvia – cidade para a qual regressaria a família Polanski (em 1936, Roman tinha três anos) –, a situação tornou-se de tal forma grave, que a água salgada usada para conservar picles foi sorvida até a última gota pelos pais do futuro cineasta. Em “O Pianista” (2002), ele reviveu esta dolorosa memória.

A infância dos meninos, futuros artistas de imensa projeção, não teve, porém, a dramaticidade do relato que deu origem a “O Pássaro Pintado”. Ter vendido o livro como uma recriação autobiográfica valeu muitos dissabores a Jerzy Kosinski. Consagrado nos EUA, país adotivo, o escritor transformar-se-ia em figura do jet-set. Escreveria outro livro famoso, “Being There” (“O Vidiota” ou “Bem-Vindo Mr Chance”, 1970), transformado no filme “Muito Além do Jardim” (Hal Ashby, 1979). Mas sucessivas reportagens na imprensa estadunidense (destaque para o Village Voice) o apontariam como “um mentiroso” e, pior, “um plagiário”.

O escritor foi definido como “uma voz uivando num deserto surrealista” para “fingir ser quem não era”. O livro sobre o vidiota interpretado por Peter Sellers seria plágio de “A Carreira de Nicodemus Dyzma”, best-seller polonês de Tadeusz Dotega-Mostowicz, publicado em 1932. Chegou-se a dizer que “O Pássaro Pintado”, que Kosinski teria escrito e publicado em inglês, contara com a providencial ajuda de editores ghost writers. O polonês não teria (ainda) domínio da língua inglesa a ponto de tê-la como instrumento de expressão literária.

A ideia mestra de Kosinski – de que narrava sua infância passada em aldeias remotas e fora vítima de camponeses bárbaros e fanáticos religiosos – ia sendo cada vez mais desmontada. O plágio de “A Carreira de Nicodemus Dyzma” só fez aumentar as dores de cabeça do badalado escritor. Ele teria, claro, defensores de grande prestígio, como o judeu-polonês, radicado nos EUA, Zbigniew Brzinski (1928-2017), alto conselheiro do Governo Jimmy Carter.

Depois de casamento com milionária estadunidense, de vida cercada de luxos e badalações, Kosinski recorreu ao suicídio um mês antes de completar 58 anos. Aceitemos que ele poderia ser “mentiroso” e “plagiário”, mas, admitamos, era dotado de fina ironia. No bilhete de despedida, escreveu: “Eu vou dormir agora por um tempo um pouco maior que o normal. Chame o tempo de Eternidade”. O calendário registrava o dia três de maio de 1991.

O amigo Polanski, que havia enfrentado rumoroso processo pelo estupro de uma adolescente, na Califórnia dos anos 1970, sofreria, já octogenário, duro processo de cancelamento. Feministas exigiram, em fevereiro último, que a Academia Francesa de Cinema lhe negasse o Prêmio Cesar, para o qual seu último longa-metragem, “O Oficial e o Espião” (J’Accuse”), recebera 14 indicações. Em agosto, ele completará 87 anos. Está lúcido, ativo e cercado pelo amor da mulher, a atriz Emanuelle Seigner e pelos filhos. Escolheu destino diferente do amigo de juventude.

Quem assistir a “O Pássaro Pintado” tcheco no Cinema Virtual poderá optar por um entre dois caminhos: vê-lo como filme que se propõe como narrativa realista ou como obra alegórica. Por esta vereda, a paroxística trajetória de uma única criança/corpo, sem nome e sem voz, condensar, simbolicamente, a barbárie nazista.

Se o caminho escolhido for o primeiro, a parada será indigesta. Difícil aceitar tanta brutalidade vinda de gente do campo (um dos raros personagens generosos do filme é o nazista interpretado por Stellan Skarsgard). Se a opção for a segunda, ver o filme consistirá em experiência algo similar ao contato com “O Tambor”, longa-metragem que Wolker Schlondorff realizou em 1979, ao recriar o romance de Gunter Grass (1959). Registre-se, porém e enfaticamente, que este filme alemão, premiado com a Palma de Ouro (dividida com “Apocalypse Now”, de Coppola) e com o Oscar de melhor produção estrangeira, é até “suave” se comparado ao do tcheco Václav Marhoul. Que, vale lembrar, tem um final até esperançoso.

O título “O Pássaro Pintado” carrega uma das metáforas mais fortes dessa brutal narrativa. Um camponês que caça passarinhos, pinta um deles e o “liberta”. Ao retornar ao próprio bando, que voa no firmamento, o pássaro causa estranhamento e é brutalmente atacado e morto. Ou seja, como os homens, as aves reagiam com brutalidade ao diferente. Mais claro, impossível.

O Pássaro Pintado
República Tcheca, Eslováquia, Ucrânia, 2h50, 2019
Baseado em romance homônimo de Jerzy Kosinski
Direção: Václav Marhoul
Elenco: Petr Kotlár, Stellan Skarsgard, Harvey Keitel, Barry Pepper, Udo Kier, Julian Sands, Aleksei Kravchenko, Jitka Cvancarova, Nina Sunevic, Petr Vanek, Filip Kankovsky, Lech Dyblik.
Disponível no streaming (na plataforma Cinema Virtual), com ingressos a R$24,90

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