“Todos os Mortos” desponta como o mais forte dos competidores brasileiros do Festival de Gramado

Por Maria do Rosário Caetano

A quadragésima-oitava edição do Festival de Cinema de Gramado, que acontece até o próximo dia 26 nas telinhas do Canal Brasil e do Canal Brasil Play, teve uma segunda noite com problemas técnicos e ótimos filmes.

O título mais prejudicado foi o longa-metragem paulistano “Todos os Mortos”, de Caetano Gotardo e Marco Dutra. Ao ser formatado para a TV, grave problema se fez notar – a trilha sonora e os diálogos entraram em choque. Os sons musicais se configuraram em alto volume e dificultaram a compreensão das falas dos personagens.

Para agravar, ao final, houve alucinada aceleração dos créditos, procedimento que impediu o público de ouvir música importante, essencial, para o desfecho da narrativa e ler os nomes de atores e técnicos. Impediu, também, o conhecimento da lista de composições musicais que pontuam os 120 minutos do filme (com os respectivos nomes de seus compositores e intérpretes).

No debate que reuniu, on-line, a equipe de “Todos os Mortos”, um dos diretores, Caetano Gotardo, lamentou o ocorrido e esclareceu que trilha sonora e diálogos, ambos essenciais ao projeto, foram muito prejudicados.

“Nosso filme” – ponderou – “foi concebido como obra sensorial”. Mais que como narrativa intelectual. A distorção presente na exibição incomodou o público (em especial a quem o assistira, antes, na competição ao Urso de Ouro, em Berlim, com projeção de altíssima qualidade). Na internet, multiplicaram-se os protestos.

Apesar dos problemas e perturbações causados ao filme, há que se registrar: dificilmente – arrisquemos – se verá concorrente com tantas qualidades estéticas, éticas e históricas. Estamos ainda no início da maratona e falta conhecer cinco longas brasileiros, todos 100% inéditos. Mas a trajetória dos realizadores (do Grupo Caixote), a seleção para a Berlim e o que pudemos ver na telinha do Canal Brasil são indícios de que o favorito já despontou.

Como “Todos os Mortos” não ganhou o Urso de Ouro na Berlinale, houve quem pensasse tratar-se de filme de difícil comunicação, talvez até hermético, incapaz de ser compreendido fora do Brasil. Incapaz, também, de sensibilizar plateias cinéfilas europeias.

Quem viu o filme no Festival de Gramado virtual, mesmo com os graves problemas técnicos, assistiu a um longa-metragem fascinante, de grande e complexa ousadia. E de fruição estimulante. Suas duas horas que instigam, estimulam e levam à reflexão. O filme é, sim, de tessitura sofisticada, refinada, mas nada tem de cabeçudo.

A abertura de “Todos os Mortos” é uma das mais belas da história, já centenária, de nosso cinema. Os créditos principais aparecem sobre saco de juta, tradicional embalagem para pesados fardos de café. Estamos no ano de 1899, a Lei Áurea “libertara” os escravizados havia 11 anos. A República celebrava sua primeira década. No quintal de um casarão, Josefina (Alaíde Costa), criada de senhora branca, Dona Isabel (Thaia Perez), torra grãos de café em fogo que brota de tocos de lenha e pedras. Ela vai ao moedor artesanal e tritura o grão. Na cozinha, prepara o café e entoa um canto afro, herança de seus ancestrais. Depois, levará, numa bandeja, o café fresquinho à patroa. A sequência inteira é arrebatadora.

O filme, uma coprodução Brasil-França, soma a força criativa da Turma do Caixote, a ousadia das produtoras Sara Silveira e Maria Ionescu (Dezenove Filmes) e empresa parisiense (Good Fortune). As personagens são defendidas por elenco pouco conhecido do grande público (muitos dos atores – mais certo dizer atrizes, já que elas são as protagonistas absolutas – foram buscados em coletivos teatrais paulistanos). Há uma estrela lusitana, Leonor Silveira, a Bovarinha de “Vale Abraão”, obra-prima de Manoel de Oliveira. Mas, mesmo ela, acaba sendo um nome familiar apenas entre cinéfilos.

Ao construir a trama de “Todos os Mortos”, título que evoca os filmes banhados em horror metafísico de Juliana Rojas e Marco Dutra, a participação de Gotardo se faz marcante. Afinal, como ele mostrou no ótimo “O que se Move” (2012), nutre-se de imenso interesse por vidas domésticas enredas por fios que parecem invisíveis.

No debate promovido pelo Festival de Gramado, Gotardo contou que o argumento nasceu de ideia de Marco Dutra. Juntos, então, escreveram o primeiro tratamento de roteiro. Por serem cineastas brancos e de classe média, que contariam histórias de ex-escravizados e seus descendentes (e de seus ex-senhores de origem europeia), resolveram consultar vozes afro-brasileiras como Goli Guerreiro, da Bahia, e o historiador e músico Salloma Salomão, de São Paulo.

A dupla ouviu, atenta, as críticas mais duras e iniciaram processo de reescritura do roteiro. Salloma assumiu, ainda, a trilha sonora do filme, de imensa complexidade, pois soma música europeia, simbolizada em piano onipresente na trama, a ritmos africanos, que no final do século XIX, emergiram com força seminal e incontornável. E foram simbolizados, de forma simplificada por nossa historiografia musical, “nos tambores”.

Para subverter conceitos e preconceitos, Salloma Salomão fez imensa pesquisa musical e chegou a praticar uma espécie de “luthieria ao contrário”. Ou seja, buscou no passado instrumentos já desaparecidos, como a kalimba. Quando o público puder assistir ao filme nos cinemas, poderá fruir de todas as camadas musicais que compõem sua trilha sonora. Inclusive ruídos contemporâneos (barulho de skates no cimento, de helicópteros e carros em movimento etc). Eles foram inseridos, intencionalmente na narrativa, não por transgressão anacrônica, mas pela intenção de mostrar que graves problemas do passado seguem graves em nosso presente.

“Todos os Mortos” centra-se em quatro personagens femininas: a jovem Iná (Maiwsi Tulani), que chega a São Paulo com o filho pré-adolescente, vindo do interior. Ou seja, da fazenda que era o orgulho da família de Dona Isabel e suas filhas Maria (Clarissa Kiste) e Ana (Carol Bianchi). Só que a propriedade já pertence a novos donos, pois o patriarca, o Sr Jorge (Luciano Chirolli) não conseguiu administrá-la. Maria tornou-se freira. Ana vive, ao piano, assombrada por medos do passado, cravando as unhas na terra e enterrando tudo que possa exorcizar seus pesadelos. Iná, cheia de vida, procura pelo marido Antônio (Rogério Brito) e busca novas amizades em grupos afro-brasileiros.

Presentes ao debate, as atrizes Mawsi Tulani e Thaia Perez contaram da rica experiência vivida nos sets de “Todos os Mortos”, da colaboração que foi estabelecida com diretores e equipe técnica (ótima fotografia da francesa Hélène Louvart).

Em entrevista à Revista de CINEMA, quando estava a caminho de Berlim, Marco Dutra evocou o imenso interesse que ele e Gotardo têm pela dramaturgia do russo Anton Tchekhov. “Nesse filme, nos aproximamos um pouco dele, do seu jeito de abordar o mundo. A história surgiu como uma espécie de estudo da vida doméstica das personagens num momento social crítico (no caso, o fim do século XIX em São Paulo)”.

Quem viu o drama histórico (que não se escraviza às regras e convenções do gênero) da dupla, sentiu, sim, um ar tchekoviano pairando sobre as cenas domésticas. E diálogos de alta qualidade. Um dele, citado de memória, evoca almas, aquelas “forças que tentam turvar as nossas vistas para nos afastar da luz de Deus”. Um filme para ser visto e revisto e que deve sair dessa edição virtual de Gramado com muitos Kikitos.

O segundo longa exibido na competição latino-americana do festival foi “La Frontera”, de David David, jovem caribenho (de Barranquilha), formado pela Universidade da Colômbia, com aperfeiçoamento em Barcelona, na Espanha.

Quem assistiu ao apaixonante “Pássaros de Verão” (Ciro Guerra e Cristina Vallejo, 2019), conhece o grupo étnico ao qual pertencem os protagonistas de “La Frontera”, os Wayuu. Só que, na ficção de Cristina e Ciro, o foco recai sobre a violência advinda do tráfico de drogas no seio dessa comunidade indígena. Já a narrativa ficcional (de forte base documental) de “La Frontera” situa-se no mesmo território, mas em suas beiradas, ou seja, naquela franja que divide a Colômbia da Venezuela.

Quando o sintético longa ficcional de David começa, a fronteira entre os dois países caribenhos está fechada. Três personagens – a jovem Diana Ipuana, grávida de muitos meses, e seu marido, Chevrolet, acompanhados do irmão dela, Jorge – estarão vivendo justo na zona de conflito. Carentes de tudo, começam a roubar proprietários de carros que passam com estoques de mantimentos.

Num dos roubos, Chevrolet (Nelson Camayo) mata uma pessoa com arma de fogo. Por isso, os três terão que se refugiar em local ermo. E continuarão buscando alimentos que lhes garantam a sobrevivência. A barriga de Diana (a estreante Daylin Vega Moreno) cresce a cada dia. Chevrolet e o cunhando desaparecem. Ela fica sozinha. Um dia, aparece Miguel (Alejandro Aguillar), um rapaz ferido. Notícias que chegam pelo rádio dão a entender que ele pode ser um homem procurado pela polícia. Enquanto Miguel convalesce e se faz passar por marido da grávida Diana, chega ao local a afro-colombiana Chalis (Sheila Monterola), que fala sem parar.

A moça tagarela, mãe de menino de seis anos, deixado com parentes, encosta-se no casebre, o que deixa Diana muito contrariada. Aos poucos, os mal-entendidos entre as duas irão diminuir. E Chalis se mostrará útil, pois entende tudo de parto. O final, surpreendente e realista, potencializa a narrativa de David David, um nome que fez com “La Frontera”estreia das mais promissoras.

No debate do filme, o ator Nelson Camayo contou que o estranho nome de seu personagem (Chevrolet), um indígena, é muito comum na Colômbia. “U.S. Navy, por exemplo, transforma-se em Usneive. Há um corrente uso deste tipo de apropriação para batizar crianças, inclusive indígenas, em meu país”.

David, por sua vez, assegurou que “Pássaros de Verão” não é um referência de seu filme, já que “ambos foram realizados na mesma época”. E citou algumas de suas influências, destacando o iraniano Asghar Farhadi, diretor de “A Separação”. Para acrescentar: “gosto muito das situações que ele cria em seus filmes, pois coloca um conflito no centro da narrativa e busca as circunstâncias, as razões de cada um ao tentar resolvê-lo”.

Dois curtas-metragens compuseram a programação da segunda noite do Festival de Gramado: o pernambucano “Inabitável”, de Matheus Farias e Enock Carvalho, e o gaúcho “Subsolo”, de Erica Maradona e Otto Guerra.

O primeiro é um drama banhando com as luzes da ficção científica. Uma mulher que mora na periferia pobre de uma grande cidade, Marilene (a notável Luciana Souza, do Grupo de Teatro Olodum, de Salvador), procura a filha desaparecida. Primeiro, vai buscá-la na casa de amiga dela, uma jovem transexual.

Nós, os espectadores, nada sabemos sobre a desaparecida. Sutilmente, durante a dolorosa busca da mãe, ajudada por uma amiga, intuiremos que a filha é transexual. De forma lacunar e com poucas palavras – “ela deve medir 1m80 e pesar uns 80 quilos” –, vamos compondo a figura da jovem. A mãe encontrará, nos guardados da filha, um artefato luminoso envolto em cilindro de vidro. A luz que dele emana transportará o filme de um registro (quase) documental para a dimensão da ficção científica.

Luciana Souza, a mãe evangélica de “Opaió” (Monique Gardenberg, 2007), arrasa com a poderosa sutileza de seus gestos e olhares. Sua Marilene é fortíssima candidata ao troféu Kikito de melhor atriz de curta-metragem.

“Subsolo”, da jovem Erica Maradona e do veterano Otto Guerra, é uma animação irreverente como tudo que é produzido pelo autor de “Rocky & Hudson”, “Woody & Stock” e “Cidade dos Piratas”. A ideia do curta foi desenvolvida por Erica, que, certo dia, resolveu frequentar uma academia de ginástica. Achou tudo muito estranho, muito over, muito doido, muito capitalismo-extremado. Deu asas à imaginação e engendrou o roteiro. E se as gorduras que as pessoas perdem nos aparelhos de ginástica da Academia – perguntou a si mesma – fossem carreadas para o subsolo, onde funcionaria fábrica de gordurosos embutidos?

A resposta está nesse delirante e delicioso curta de Otto Guerra e sua trupe de colaboradores.

2 thoughts on ““Todos os Mortos” desponta como o mais forte dos competidores brasileiros do Festival de Gramado

  • 24 de março de 2021 em 20:28
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    O filme é até interessante, mas não emplaca, não empolga. Pensei em desligar várias vezes. Além disso, com aproximadamente 1:05 de filme tem uma cena que aparece um muro todo pichado em pleno ano de 1899. Oi?

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  • 1 de abril de 2021 em 01:03
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    Achei muito vacilo os furos. Barulho de Helicóptero, carros modernos na rua, tijolos de alvenaria, fiação elétrica moderna deram muito mole nos detalhes infelizmente

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