Um western argentino, um drama sobre suicídio e dois curtas abrem Festival de Gramado
Por Maria do Rosário Caetano
O Festival de Cinema de Gramado estreou, no Canal Brasil, sua primeira edição virtual, com um western argentino, um drama sobre o suicídio e dois filmes com protagonistas infanto-juvenis. Os quatro competidores – dois curtas e dois longas – foram apresentados, on-line, por seus diretores, cada um de sua residência.
De Minas Gerais, falou Marco Antônio Pereira, diretor de “4 Bilhões de Infinitos”, quarto curta de pentalogia que será reunida no longa-metragem “Era Uma Vez em Cordisburgo”.
Ao participar, pela terceira vez, da competição do badalado festival gaúcho, o mineiro confirma a inventividade de seus curtas e sua originalíssima forma de produção. Ele é um “faz-tudo” (dirige, roteiriza, fotografa, edita e sonoriza seus filmes). E prepara quatro longas-metragens, que, espera, possam contar com apoio de editais públicos e melhores condições de realização.
De São Paulo, Issis Valenzuela apresentou “Receita de Caranguejo”, um curta de delicada alma feminina, protagonizado por duas atrizes afro-brasileiras – a menina Taís Melo, pré-adolescente, e sua “mãe” ficcional, a atriz Preta Ferreira. Issis contou que, num passeio a Pernambuco, aprendeu a preparar (e a saborear) caranguejos.
De Brasília, Cibele Amaral apresentou seu novo longa-metragem, “Por que Você Não Chora?”. Ela deixou de lado os segredos escondidos em sintética sinopse do filme e abriu o jogo. No centro de sua trama, estaria questão que não pode, nem deve, ser negligenciada: o suicídio.
Para encerrar a noite, um filme argentino: “O Silêncio do Caçador”, de Martin Desalvo. O diretor apresentou seu longa, de Buenos Aires, e externou sua satisfação ao vê-lo selecionado por Gramado. De oito da noite até o início da madrugada, brasileiros de todos os cantos do país puderam, pela primeira vez e pela telinha do Canal Brasil, acompanhar os quatro primeiros candidatos aos troféus Kikito.
Os curtas chamaram atenção pela originalidade e inventividade. Marco Antônio confirmou que é um “bicho cinematográfico”, capaz de construir planos de imensa beleza plástica, elaborar as potencialidades do som, contar histórias inesperadas e mobilizar cativantes atores naturais (ou não-profissionais). Depois de “A Retirada para um Coração Bruto”, “Alma Bandida” e “Teoria sobre um Planeta Estranho”, o realizador mineiro engendrou uma curiosa história: um menino deseja levar a irmã ao cinema, já que ela só conhece a telinha TV. Eles moram na periferia de uma cidade sertânica (Cordisburgo) e há falta de luz elétrica. O menino tenta, de todo o jeito, solucionar o problema. Em cena documental, vemos uma senhora presa a uma estática cadeira de rodas. Com a chegada de baterias novas, ela pode se locomover, com a felicidade estampada no rosto. E, como acontece nos filmes de Marco Antônio, há um fundo lendário, uma bola de fogo que eletriza o ambiente (lembremos que a produtora do cordisburguense chama-se Abdução). É assim, de forma fragmentária, e com duas crianças cativantes, que ele constrói sua narrativa.
No debate do filme, pelas redes sociais, Marco Antônio contou que deixou Cordisburgo aos 18 anos, quando, graças ao Prouni, pôde estudar Jornalismo em BH. Depois de formado, regressou à sua terra natal e, com uma espécie de “Dogma muito particular” (referência ao Dogma dinamarquês), realizou, em apenas seis meses, seus três primeiras curtas. O quarto, este que compete agora em Gramado, levou mais tempo. “4 Bilhões de Infinito” – testemunhou – “passou por 60 cortes, até chegar à versão final, pois monto e remonto, quase enlouqueço, até achar que ficou bom”.
O debate de “Receita de Caranguejo” reuniu, on-line, a diretora Issis Valenzuela e a atriz Preta Ferreira. Issis, que não é de falar muito, conviveu, tranquilamente, com a exuberância narrativa de Preta.
A diretora lembrou que quis fazer um filme no qual uma menina, tímida e retraída (como ela), convive com a mãe, extrovertida (como Preta Ferreira, na vida real). Por isso, “quis que os sentimentos fossem externalizados por silêncios, olhares e toques”. E que, quando as duas, mãe e filha, se entendessem (a pré-adolescente, ao menstruar, torna-se ainda mais interiorizada) as palavras ganhassem relevo.
Preta, sempre efusiva, contou que, na condição de diretora de elenco, escolheu a menina Taís Melo “pela expressividade” e por ver nela “algumas semelhanças físicas” com a garota que ela fora. Escolhida para interpretar a mãe de Larissa (a introvertida) desde o início do projeto, Preta continuará trabalhando com Issis. Já está convocada para o primeiro longa da realizadora afro-brasileira.
As duas estão envolvidas com o empoderamento de mulheres negras na direção e no elenco de curtas e longas-metragens brasileiros. A pedido do cineasta Fábio Rodrigo, contaram que estão engajadas no projeto Empoderadas – Encontro Nacional de Cineastas Pretas, que, em dezembro, apresentará mostra de filmes black.
Preta arrematou sua participação no debate contando que lançará, em outubro, pela Boitempo Editorial, o livro “Minha Carne”. Trata-se de diário dos 108 dias em que esteve presa em cárcere paulistano. Militante do MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro), ela foi acusada de ser “uma pessoa que representava perigo para a sociedade”. Isso aconteceu – relatou – “em momento (junho de 2019) de aguda criminalização dos Movimentos Sociais”. Por isso, “passei quase quatro meses presa. Aproveitei cada dia para escrever um diário sobre o que vivi ali, sem esquecer de ouvir todas as pessoas que estavam encarceradas comigo. Meu diário da prisão falará das experiências vividas por todas nós”.
O livro “Minha Carne” (como canta Elza Soares, “a carne mais barata do mercado é a carne negra”) deverá transformar-se em longa-metragem ou série de TV. “Vários produtores e cineastas, incluindo Eliane Caffé, com quem minha mãe (Carmem Silva) e eu trabalhamos em ‘Era o Hotel Cambridge’, estão envolvidos com o projeto”.
O primeiro concorrente da competição latino-americana – “O Silêncio do Caçador” – se fez representar por seu diretor, Martin Desalvo, e por seu trio de protagonistas – Pablo Echari, Alberto Ammann e Nora Recalde. De Buenos Aires, o quarteto deu um show de simpatia e articulação de ideias.
Desalvo não escondeu o projeto de seu filme: “fazer entretenimento que, também, faça pensar”. Daí o diálogo com o cinema narrativo de corte clássico. O filme soma ao western (com direito a “duelo” final), o cinema de aventura e o drama calcado no triângulo amoroso. A esta mistura são acrescentados ingredientes sociais. E, até, um final trágico (que eles fizeram questão de não revelar, zero spolier).
“O Silêncio do Caçador” antagoniza dois homens, o guarda florestal Ismael Guzmán (Pablo Echari) e o caçador Polaco (Alberto Ammann). Os dois amam a mesma mulher, Sara (Mora Recalde). Guzmán vem de família pobre. O pai, de origem paraguaia, trabalhava na fazenda do rico terrateniente Senhor Vennek, pai de Polaco. Este se sente dono de tudo que há na selva, animais, vegetação e, até, de serviçais de origem indígena. Transformada em Reserva Florestal, “El Monte” está sob vigilância. Uma jaguaretê (onça) ronda a mata e ameaça novilhos de Dom Vennek. Polaco, com “Sordo” (canhoto), um menino indígena, vai à caça, para ira de Guzmán. Ao longo de 114 minutos, os dois se enfrentarão e lutarão (inclusive pelo amor de Sara).
O roteiro, de Francisco Kosterlitz, teria resultado em mais um genérico filme de aventura, se não houvesse subtramas que nos levam a refletir sobre a cobiça humana, a discriminação de povos originários, o sentimento de posse, que leva alguns (caso do personagem Polaco) a se sentirem donos de tudo, inclusive da natureza (flora e fauna). Aqueles que acham que preservação ambiental é conversa para boi dormir. Outro trunfo do filme é o desempenho dos atores. Pablo Echari, o El Cuervo, de “Plata Quemada” (Marcelo Piñeyro, 2000), e Alberto Ammann (da série “Narcos – México”) entregam-se a seus papeis e convencem (dividiram, no Festival de Málaga, o prêmio de melhor ator). Mora Recalde e os coadjuvantes têm desempenhos que não destoam. O menino “Sordo” é encantador. E Juana, jovem de origem indígena e imensa beleza (explorada, inclusive sexualmente, por Polaco), aparece pouco, mas se faz notar (inclusive em cena catártica que protagoniza).
O filme, rodado na província de Misiones, capta a beleza da selva e se deixa ver com interesse. Martin Desalvo pretendia lançá-lo no primeiro semestre, depois do Festival de Málaga. Só que, com a pandemia da Covid 19, o festival espanhol foi adiado e os cinemas fechados.
“Queremos mostrar nosso filme na tela grande” – avisou. “Só depois no streaming. Estamos em compasso de espera”. A jaguaretê, que terá papel fundamental no desfecho do filme – garantiu o diretor – “não é uma criação digital, é de carne e osso”. O ator Pablo Echari, que contracena com a onça, brincou: “vocês nem imaginam o medo que passei”.
Com calma, ele abandonou o tom jocoso para falar sério e contar que, além da carreira de ator, vem trabalhando como produtor. Está, por isso, engajado em projeto que vem recebendo boa acolhida do Governo de seu país (no comando do INCAA, está o cineasta Luiz “História Oficial” Puenzo): temos uma ótima Lei do Teatro e uma Lei do Audiovisual, idem. Agora, estamos formulando novos mecanismos para o fomento de produção para TV e novas mídias digitais”.
Como se vê, a situação no país vizinho é, em tudo, oposta à brasileira, que, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, é de explícito desprezo pelo audiovisual. Vale, ainda, um registro: Pablo Echari atuou, ao lado de Letícia Sabatella, no filme brasileiro “Happy Hour – Verdade e Consequências”, de Eduardo Albergaria (2017).
O debate do longa brasiliense “Por que Você Não Chora?” foi dos mais dinâmicos, mas em tudo diverso do filme argentino. A diretora Cibele Amaral, também roteirista do filme, convocou para estar com ela as atrizes Carolina Monte Rosa (a protagonista Jéssica) e Elisa Lucinda (uma respeitada terapeuta, na trama). Convocou, também, o companheiro Patrick de Jongh, produtor do filme e autor da trilha sonora. Na testa, ele trazia um enorme curativo. Roger Lerina, que moderava o debate, quis saber o que acontecera.
Patrick contou: regressava, sozinho e de carro, de São Paulo para Brasília, pois queria assistir ao filme junto com a família. Por uma fatalidade, seu carro foi atingido por outro veículo e captou várias vezes. Ele escapou com o ferimento na cabeça, mas o automóvel ficou em péssimo estado. Depois do relato do acidente, o músico e produtor falou dos procedimentos adotados na criação da trilha sonora. Antes, fez questão de lembrar que “75% da equipe técnica e artística do longa brasiliense é feminina”. E mais: “90% do elenco é composto de atrizes” (são delas os papeis de protagonistas, os homens são coadjuvantes ou figurantes). Frente a tal proposta – realizar um filme essencialmente feminino –, Patrick viu que tinha que “compor uma trilha na qual vozes femininas se destacassem”. Foi o que ele fez.
Cibele lembrou que é, além de cineasta e atriz, psicóloga (formou-se em 2017) e sempre recorreu à terapia. Ela alimentou imenso interesse pelo tema “borderline”, transtorno psíquico que atormenta a coprotagonista do filme, Bárbara (Bárbara Paz). Por seus procederes desmedidos, ela perde a guarda do filho e é hostilizada pelo ex-marido (Rodrigo Brassoloto) e pela sogra (Priscila Camargo). Em busca de tratamento (que às vezes aceita e às vezes rejeita), Bárbara conta com equipe de terapeutas liderada pela personagem de Cristiana Oliveira (a Juma Marruá, de “Pantanal”). Para acompanhá-la de perto, é designada a estagiária Jéssica, que está se formando em Psicologia, trabalha como recepcionista em um hospital e cria a irmã, de oito anos, longe da família, que vive em Goiás.
Num trecho de sua intervenção, o produtor Patrick de Jongh revelou o segredo do filme, baseado em caso real: a estagiária, responsável pelo acompanhamento de Bárbara, recorrerá ao suicídio. Cibele, que confessou ter “traços de transtorno bordeline”, não protestou contra o spoiler, decerto por entender que o filme vai bem além desta situação-base do roteiro. Preferiu elogiar suas atrizes e equipe, em especial Elisa Lucinda e Carolina Monte Rosa, e, especialmente, os terapeutas da Casa Olhos da Alma Sã, que a ajudaram muito em suas pesquisas sobre o suicídio.
“Há muitos psicólogos assistindo a esse debate” – avisou. “E eles são essenciais em nossa luta contra a ignorância e o tabu que cercam o suicídio”. Para concluir: “fui estagiária voluntária no Instituto de Saúde Mental, em Brasília, e posso testemunhar o quanto é terrível o silêncio que cerca aquela, ou aquele, que convive com a ideação do suicídio. Ninguém quer ouvir falar desse assunto”.
Depois de “Por que Você Não Chora?”, um drama no campo da saúde mental, Cibele Amaral está de volta à comédia, gênero ao qual se dedicou com assiduidade. Ela está concluindo “Rir para Não Chorar”, seu quarto longa. Em 2003, seu curta “Momento Trágico”, temperado com muito humor, ganhou vários prêmios em Gramado.