Festival Varilux apresenta 17 filmes franceses recentes
Por Maria do Rosário Caetano
A França não se dobra. Tudo indica que, enquanto puder, defenderá as salas de cinemas com obstinação e sem descanso. Em plena pandemia, enquanto a maioria dos eventos cinematográficos acontece no espaço virtual, a nova edição do Festival Varilux de Cinema Francês será totalmente presencial. Dessa quinta-feira, 19 de novembro, até 3 de dezembro, mais de 40 cidades brasileiras exibirão 17 longas-metragens franceses recentes (entre eles “O Capitalismo no Século XXI”, baseado no livro de Tomás Piketty), um clássico (“Acossado”, de Jean-Luc Godard), além de mostra especial de filmes em tributo à Nouvelle Vague.
A escolha do primeiro longa de Godard – “A Bout de Soufle”, protagonizado por Jean Seberg e Jean-Paul Belmondo – tem dupla razão: o filme completa 60 anos e seu criador, 90. O mais famoso – junto com “Os Incompreendidos”, de Truffaut – longa-metragem da Nouvelle Vague se fará acompanhar dos curtas “Todos os Rapazes se Chamam Patrick” (Godard, 1959, 21′) e “Os Panteras Negras” (Agnès Varda, 1968, 28′). E de pequena mostra de longas- metragens: “Ascensor para o Cadafalso”, de Louis Malle (1958, 88′), “Paris nos Pertence”, de Jacques Rivette (1961, 135′), “Cleo das 5 às 7”, de Agnès Varda (1962, 90′), “O Desprezo”, de Godard (1963, 105′) e “Os Guarda-Chuvas do Amor”, de Jacques Demy (1964, 90′).
Faltam, claro, filmes de Claude Chabrol, Eric Rohmer e François Truffaut. E também as aventuras fílmicas de Jacques Doniol-Valcroze e Jean Douchet, mesmo que estes fossem mais teóricos nouvelle-vaguianos que cineastas.
Registremos, porém, que a pequena mostra se fará acompanhar de palestra e debates, o que é sempre importante. E que, sendo a intenção primeira do Festival Varilux servir de vitrine à nova produção francesa, a pequenina retrospectiva, incrustada num simpático núcleo histórico, resulta de bom tamanho.
No campo da reflexão, o momento mais luminoso do Varilux contará com palestra on-line do crítico e ex-diretor da revista Cahiers du Cinéma, Jean-Michel Frodon. Ele vai, claro, analisar a Nouvelle Vague, onda cinematográfica que renovou o cinema francês no final dos anos 1950.
Se Malle e Demys não são integrantes do núcleo duro da Nouvelle Vague, o mesmo não se pode dizer de Agnès Varda. Esta, sim, tinha a alma do movimento, do qual foi inclusive precursora (com o longa “La Pointe Courte”, 1955). E fez um curta – o delicioso “Les Fiancés du Pont Mac Donald ou Méfiez-Vous des Lunettes Noires”), que ela inseriu em “Cleo de 5 à 7”. O filme que propunha que desconfiássemos de portadores de óculos escuros, tinha (tem) os jovens Jean-Luc Godard e Anna Karina à frente do elenco. Se Varda não figura na linha de frente da Nouvelle Vague, isso acontece porque o machismo é algo entranhado na história de todas as manifestações artísticas, o cinema, arte e indústria, à frente. Mas a história vem fazendo, a cada novo dia, mais justiça a essa gigante do audiovisual planetário.
Os dois curtas escolhidos pelo comando do Festival Varilux para sua edição 2020 são ambos notáveis. O de Godard (“Todos os Rapazes se Chamam Patrick”) é uma raridade imperdível. O de Varda é obrigatório. Ainda mais num festival que acontece no momento em que o Brasil comemora o Mês da Consciência Negra.
“Black Panthers” foi realizado no efervescente verão de 1968, em Oakland, na Califórnia. Varda, sempre dedicada ao documentário (com poderosas incursões na ficção), estava viajando pelos EUA municiada com uma câmera e imensa curiosidade pelo mundo. Como o partido dos Panteras Negras botava nitroglicerina na vida da cidade californiana de 400 mil habitantes (32% deles negros), ela resolveu registrar as ideias dos revolucionários e, principalmente, a luta pela libertação de Huey P. Newton, encarcerado sob a acusação de ter matado um policial.
A câmara de Varda nunca é panfletária. Ela está realmente interessada em conhecer os dez mandamentos programáticos do Black Panther, enunciados com calma por um militante. Quer, também, registrar, com imensa atenção, as mulheres e seus cabelos volumosos e sem alisamento. Mulheres que refletem sobre seu papel no partido black. A cineasta entrevista Huey P. Newton na prisão e abre generoso espaço para Stokely Carmichael, então no auge de sua fama revolucionária (depois ele se casaria com a cantora Miriam Makeba e iria viver na África, onde morreria, aos 57 anos, em 1998).
Dois entre os 17 longas inéditos (no circuito comercial brasileiro) reunidos pelo Festival Varilux chamam atenção por razões diversas. O primeiro – “O Capitalismo no Século XXI” – por recriar o mais famosos dos livros do economista Thomas Piketty. O segundo – “Mais que Especiais” (“Hors Normes – Fora das Normas”) – por ser fruto da quarta parceria da dupla Eric Toledano e Olivier Nakache, diretores do maior blockbuster da história do cinema francês – “Intocáveis”. Este filme vendeu 20 milhões de ingressos na França, correu mundo, ganhou alguns remakes (um deles nos EUA) e, no Brasil, vendeu um milhão de ingressos. Algo inimaginável para um filme vindo da pátria dos Lumière e Méliès.
A dupla prosseguiu com “Samba” e “Assim é a Vida”, sucessos bem mais modestos. E segue, mais uma vez, unida e de volta ao tema dos portadores de deficiência. No arrasa-quarteirão de 2011, François Cluzet interpretava um milionário paraplégico, cuidado por um negro enorme e atrevido (Omar Sy). Agora, com “Mais que Especiais”, chegou a vez dos autistas.
Dois homens, um judeu (Vincent Cassel) e um muçulmano (Reda Kateb, o Django Reinhardt de celulóide) dedicam-se, há mais de 20 anos, ao trabalho em instituições voltadas à formação de jovens autistas vindos de bairros problemáticos.
Em conversa virtual com jornalistas brasileiros, Eric Toledano respondeu a uma pergunta da Revista de CINEMA. O que permitia a eles – indagamos – continuar trabalhando em duo, depois do mega-sucesso planetário de “Intocáveis”. Como domavam os egos para seguir juntos?
A resposta veio em tom bem-humorado: “Não temos ego. Foi muita sorte, uma loucura, dois rapazes da periferia, que sonhavam, aos 16 anos, fazer filmes, viajar, viver disso. Conseguimos e mantemos os pés no chão. Fazemos o que queremos, da maneira mais sincera possível”.
Depois de lembrar que “Vincent Cassel é praticamente brasileiro” e que esta é a primeira vez que ele e Reda Kateb atuam juntos, Toledano mostrou familiaridade com o Brasil e com sua distribuidora, a Califórnia. “O Júnior” (referência ao proprietário da empresa, Euzébio Munhoz Júnior) “trata nossos filmes com o maior carinho e atenção”.
O longa documental “O Capital no Século XXI” (“Le Capital au XXIe Siècle”), de Justin Pemberton, é uma produção franco-neo-zelandeza. O filme tem o livro de Piketty, que vendeu mais de três milhões de exemplares, como base, mas recorre a várias vozes (além da dele, as de Joseph Stiglitz, Francis Fukuyama, Suresh Naidu, Bryce Edwards, Faiza Shaheen, Paul Mason, Rana Foroohar, entre outros). Ao longo de 102 minutos, somos submetidos a uma sofisticada lição de história econômica, que vem do passado até nossos dias. Como qualquer pessoa bem-informada sabe, Piketty preocupa-se muito com a concentração da renda na mão de poucos e com a resistência dos ricos (e hiper-ricos) à taxação de suas fortunas.
Para evitar que o filme se transformasse em uma intragável aula de Economia, Justin Pemberton recorreu à ajuda milionária do próprio cinema. Enriqueceu sua narrativa com trechos de “Os Miseráveis” (o filmusical hollywoodiano), “A Tales of Two Cities”, “Orgulho e Preconceito” (já que Jane Austen, Victor Hugo, Charles Dickens e Balzac são fontes literárias de Piketty), “Wall Street – Poder e Cobiça” (Oliver Stone), “Koyaanisqatsi” (Godfrey Reggio), “Vinhas da Ira” (John Ford), “Elysium” (Neil Blomkamp), “Utu Redux” (Geoff Murphy), “Gold Diggers of 1933” (musical de Busby Berkeley & Mervyn Leroy), “O Triunfo da Vontade” (Leni Riefensthal), “Home – Nosso Planeta, Nossa Casa” (Yonn Arthur-Betrand) e o curta-metragem “Organism” (Hillary Harris).
Há, também, no documentário trechos de “Os Simpsons” e “Family Guy – Lottery Forever” e uso recorrente de animações produzidas especialmente para dar dinamismo à narrativa. Mesmo assim, a dose de informação é imensa, impossível processá-la num primeiro (e único) encontro.
Os mais atentos terão material para reflexão sobre as crescentes desigualdades do mundo contemporâneo, depois de empreender esta complexa viagem por nossa história social e econômica. História na qual a riqueza e o poder postam-se de um lado. E os deserdados da terra, como diria Frantz Fanon, do outro, sempre em busca de (vão) progresso social. E em luta incansável pelo fim de desigualdades abissais.
Entre os filmes ficcionais, uma reprise festivaleira merece registro: o Varilux vai mostrar dois títulos com o ator (e cineasta de origem árabe) Roschdy Zem. Um, “Persona non Grata”, ele dirige e protagoniza. Já exibido e debatido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o filme tem tudo a ver com o Brasil. Afinal, trata-se de remake de “O Invasor”, de Beto Brant, escrito por Marçal Aquino. A produção brasileira é infinitamente melhor, mas torna-se curioso notar como a história do “invasor” periférico Anísio (Paulo Miklos) foi transportada para a realidade francesa. Roschdy está, também, em “A Garota da Pulseira” (“La Fille au Bracelet”), com Chiara Mastroianni e a promissora adolescente Melissa Guers.
Na verdade, alguns dos filmes anunciados como “inéditos” já passaram por outros festivais brasileiros. Mas são, sim, inéditos em nosso circuito comercial. Este é o caso de “Verão de 85” (“Eté 85”), novo longa-metragem de François Ozon, diretor muito cultivado pela cinefilia brasileira. Baseado em livro britânico de Aidan Chambers (“Dance on my Grave”), o vigésimo-primeiro longa do prolífico realizador (o vigésimo-segundo, “Tout s’est Bien Passé” já está pronto) tem um amor homoafetivo como razão de ser. “Eté 85” integrou a seleção oficial do Festival de Cannes desse ano, que não aconteceu por causa da pandemia. É um dos destaques da seleção do 28º Mix Brasil.
Da safra Cannes, destacam-se, também, “DNA” (“ADN”), da atriz-diretora Maïwenn, com Louis Garrel e Fanny Ardant no elenco, “Minhas Férias com Patrick” (“Antoinette dans les Cévennes”), de Caroline Vignal, “Slalom”, de Charlène Favier, e “Gagarine”, de Fanny Liatard e Jérémy Trouilh. De Berlim, chega “Apagar o Histórico” (“Effacer l’Historique”), de Benoît Delépine e Gustave Kervern, premiado com o Urso de Prata por ser um “filme que abre novas perspectivas”. Em pauta: a guerra aos gigantes da Internet, tema que cala fundo na sociedade francesa. O país europeu estuda, com seriedade, a taxação das poderosas empresas do mundo virtual.
“Belle Epoque”, de Nicolas Bedos, conquistou três troféus Cesar (melhor roteiro original, atriz coadjuvante e direção de arte). A animação “A Famosa Invasão dos Ursos na Sicília” (“La Fameuse Invasion des Ours en Sicile), longa do ilustrador e autor de histórias em quadrinhos Lorenzo Mattotti, inspira-se em livro de Dino Buzatti e foi laureado com o Prêmio da Fondation Gan pour le Cinéma.
O Festival Varilux faz questão de somar, em sua programação, filmes autorais e comerciais. Entre os sucessos de bilheteria da safra recente, destacam-se “Sou Francês e Preto” (“Tout Simplement Noir”), de Jean-Pascal Zadi e John Wax, visto por mais de um milhão de espectadores na França após a problemática reabertura dos cinemas. Sucesso também fizeram “A Boa Esposa”, de Martin Provost (600 mil ingressos), “Minhas Férias com Patrick”, de Caroline Vignal (500 mil) e “Meu Primo”, de Jan Kounen (300 mil). Nada mal para um tempo em que a Covid 19 tem mantido as pessoas longe das salas de cinema.
Astros do cinema francês também são festejados pelos programadores do Varilux. Juliette Binoche só perde em prestígio para Catherine Deneuve. A estrela de “A Liberdade é Azul” já foi tema, até, de vistoso cartaz do Varilux. Na edição desse ano, ela protagoniza “A Boa Esposa” e sequencia seu namoro com o cinema comercial (sem esquecer o cinema de empenho artístico, vide o papel transgressor que representou em “High Life”, de Claire Denis). Louis Garrel, “neto” da Nouvelle Vague, está em “DNA”. Daniel Auteuil, Fanny Ardant e Guillaume Canet participam de “Belle Epoque”. Vincent Cassel encabeça (com Rada Kateb) “Mais que Especiais”, de Eric Toledano e Olivier Nakache, os “intocáveis”. O intenso Vincent Lindon está em “Meu Primo”.
Os fãs de Catherine Deneuve terão que contentar-se em vê-la, no auge da beleza, em “Os Guarda-Chuvas do Amor”, de Jacques Demy, escalado para o núcleo histórico. Os cinéfilos conhecem o belga Jérémie Renier, adotado pela produção francesa, por seus trabalhos com os Irmãos Dardenne. Quem não se lembra dele em “A Promessa”, “A Criança”, “O Silêncio de Lorna”, “O Garoto da Bicicleta” e “A Garota Desconhecida”? No Varilux 2020, ele integra o elenco de “Slalom”.
Completam a programação os filmes “Donas da Bola” (“Une Belle Equipe”), de Mohamed Hamidi, que tem um time de futebol feminino no centro da narrativa, e “Notre Dame”, de Valérie Donzelli, que satiriza o cotidiano de uma arquiteta, mãe solteira, que, graças a um mal-entendido, conquista importante concurso promovido pela prefeitura de Paris para reformar o pátio da catedral de Notre Dame.
Festival Varilux de Cinema Francês 2020
Data: 19 de novembro a 3 de dezembro
Cidades confirmadas: Aracaju (SE), Araçatuba (SP), Balneário Camboriú (SC), Barueri (SP), Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Botucatu (SP), Brasília (DF), Campinas (SP), Campo Grande (MS), Caxias do Sul (RS), Cotia (SP), Cuiabá (MT), Curitiba (PR), Florianópolis (SC), Fortaleza (CE), Indaiatuba (SP), Jaboatão dos Guararapes (PE), João Pessoa (PB), Jundiaí (SP), Londrina (PR), Maceió (AL), Manaus (AM), Maringá (PR), Natal (RN), Niterói (RJ), Pelotas (RS), Petrópolis (RJ), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Ribeirão Preto (SP), Rio Branco (AC), Rio de Janeiro (RJ), Rio Grande (RS), Salvador (BA), Santos (SP), São Luís (MA), São José dos Campos (SP), São Paulo (SP), Sorocaba (SP), Teresina (PI), Vitória (ES) e, Vitória da Conquista (BA). Novas cidades e os cinemas participantes podem ser conferidos no site http://variluxcinefrances.com/2020
Os valores dos ingressos são os praticados por cada rede exibidora
Serão obedecidas todas as normas sanitárias
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