Fest Latino SP realiza edição virtual com 36 filmes da América Latina

Por Maria do Rosário Caetano

O Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo realiza, por causa das imposições sanitárias da pandemia do coronavírus, sua décima-quinta edição no streaming da Spcine, Looke e Sesc Digital. Dessa quarta-feira, 9 de dezembro, até o dia 16, serão exibidos – gratuitamente e com acesso de brasileiros de todas as regiões – 36 filmes oriundos de quinze países. E com destaque, esse ano, para o cinema da América Central, colocado em foco, com títulos produzidos na Costa Rica, El Salvador, Honduras e Cuba.

Duas das mais tradicionais promoções do festival – homenagem a um grande nome do cinema latino-americano (como Fernando Birri, Paul Leduc e Fernando Solanas) e um núcleo histórico com títulos clássicos – foram temporariamente suspensas. Mas voltarão em tempos pós-pandêmicos. Para atenuar a falta de grandes momentos do cinema hispano-e-luso-americano, o SP Latino apresentará ao público potente mostra de longas-metragens que contaram com a sigla BrLab em seus créditos.

O Laboratório Brasileiro de Desenvolvimento de Projetos (BrLab) está comemorando 10 anos de atividade. Para festejá-los, foram escolhidos dez filmes realizados ao longo da última década. Criado para potencializar a qualidade e o fomento de produções brasileiras (em especial aquelas realizadas em parceria com países ibero-americanos), a experiência deu bons resultados. E encontrou, no Fundo Ibermedia, parceiro fundamental.

Os dez títulos escolhidos merecem ser vistos (por quem ainda não os assistiu) ou revistos. Afinal, são obras que obtiveram marcante aceitação em festivais, chamaram a atenção da crítica e, alguns deles, mantiveram bom diálogo com o público.

Os mais bem-sucedidos, entre os brasileiros, são “O Lobo Atrás da Porta”, de Fernando Coimbra, atmosférica recriação da tragédia policial protagonizada pela chamada “Fera da Penha”, e o híbrido “Sinfonia da Necrópole”, de Juliana Rojas. Ambos dialogam com o cinema de horror. “Lobo”, de forma muito sutil e perturbadora. “Necrópole”, com instigante soma de gêneros (zumbis, musical e cinema social). Duas pequenas obras-primas, dignas de figurar no repertório de todos cinéfilo digno do nome.

O Brasil segue forte na programação da Mostra Homenagem ao BrLab, pois dois de seus enfants terribles – o baiano Edgard Navarro e o gaúcho Otto Guerra – marcam presença com filmes também obrigatórios. O primeiro com “Abaixo a Gravidade” e o segundo com a animação “Cidade dos Piratas”.

“Abaixo a Gravidade” é o terceiro longa-metragem do inquieto Navarro. O quarto, se dermos ao genial “Superoutro” o status de filme longo. Há quem veja “Gravidade” como uma sequência tardia da desatinada saga do super-herói subdesenvolvido (“Superoutro” é de 1989, e “Abaixo a Gravidade”, de 2018). Navarro rejeita com veemência tal ideia.

Em versão “live” do projeto Cinema da Vela (quinta-feira, 20h), ele lançará mão de sua verve baiana para enunciar os princípios estéticos que fundamentam (afastam ou aproximam) estas que são suas realizações mais dilaceradas, desesperadas. Perto destes dois filmes, o premiadíssimo “Eu me Lembro”, seu Amarcord soteropolitano, parece até suave.

“Cidade dos Piratas”, quarto longa-metragem de Otto Guerra (que estará no Cinema da Vela virtual, junto com Navarro), é uma recriação conturbada e cheia de vida das tiras de Laerte (“Piratas do Tietê”). Um filme anárquico, instigante, que nos deixa, às vezes, sem chão. O acidentado processo de criação deste longa animado começou quando Laerte, um dos maiores e mais ousados cartunistas do país, era identificado com o sexo masculino. Em pleno processo de criação, o artista gráfico assumiu-se trans e passou a rejeitar os “Piratas do Tietê”, desbocados machões. Otto reformulou seu projeto dando a ele uma camada metalinguística. Do resultado, emana incontrolável pulsão de vida. É possível amar ou odiar a “Cidade dos Piratas”. Jamais assumir postura blasé ou de indiferença.

Os outros seis títulos da Mostra Homenagem BrLab são de origem hispano-americanos. Um deles é imperdível: o thriller político “Matar a un Muerto”, do paraguaio Hugo Giménez. Outro, o uruguaio “Chico Ventana Também Queria Ter um Submarino”, de Alex Piperno, vem chamando atenção no circuito festivaleiro.

“Matar a um Morto” causou sensação no último Festival de Gramado. Com raro poder de síntese, um poderoso trio de atores, diálogos secos e incisivos (falados em guarani, na maior parte do tempo), o filme evoca os tempos da ditadura Stroessner sem nenhuma apelação retórica. Em covas clandestinas, em meio a um distante matagal, um homem e seu auxiliar enterram os presos políticos mortos em sessões de tortura. O que acontecerá quando, da pilha de corpos, surgir um ser que ainda respira?

O híbrido “Chico Ventana” soma fantasia, humor e romance em uma história mágica (aliás, três) falada em espanhol e filipino. Um cruzeiro de luxo navega pelas águas da Patagônia. Um portal levará a uma cabana misteriosa nas Filipinas. E, também, a um apartamento habitado por jovem latino-americana. Espaços misteriosos e distantes se comunicam nessa fantasia que iniciou sua trajetória em Berlim e já passou por diversos festivais (inclusive a Mostra Internacional de SP).

A Homenagem BrLab complementa-se com o peruano “Todos Somos Marinheiros”, de Miguel Angel Moulet, o argentino “Caminho de Campanha”, de Nicolás Grosso, o costarriquenho “A Dança da Gazela”, de Ivan Porras Meléndez, e o uruguaio “Clever”, da dupla Federico Borgia e Guillermo Madero.

Os cineastas João Batista de Andrade, Francisco César Filho e Jurandir Muller, criadores e curadores do SP Latino, montaram a programação dessa edição emergencial e fora de época (a data histórica do festival é o mês de julho) com a ousadia possível. Ampliaram os títulos contemporâneos (foram selecionados 21 filmes recentes, sendo 19 deles inéditos em nosso país) e continuaram apostando na reflexão. Por isso, haverá, além do Cinema da Vela, mais quatro debates virtuais.

Cinco dos 21 filmes contemporâneos são brasileiros e inéditos. Eles farão, portanto, sua em pré-estreia no Fest Latino SP: “Um Dia Qualquer”, “Filmefilia – Um Fax para Godard”, “Ozu Piroclástico”, “Rompecabezas” e “Domicílio Incerto”.

“Um Dia Qualquer”, de Pedro von Krüger, tem no elenco Mariana Nunes, Augusto Madeira e Vinícius de Oliveira (o Josué, de “Central do Brasil”). A narrativa, que se ambienta num subúrbio carioca dominado pelas milícias, traz em seus créditos o nome do agitado Denis Feijão, produtor de, pelo menos, dois filmes notáveis – “Raul: O Início, o Fim e o Meio”, de Walter Carvalho, e “Sabotage: Maestro do Canão”, de Ivan 13P. Von Krügerdirigiu os longas “Pulmão da Arquibancada”, “Estrada de Sonhos” e “Memória em Verde e Rosa”.

“Filmefilia – Um Fax para Godard” é um projeto coletivo, que se constrói com vídeos publicados em página do Instagram. Entre seus realizadores, estão Stela Ramos, criadora de experimentos cinematográficos, Eduardo Bonzatto, responsável pela trilha de diversos filmes, Sérgio Gag, montador de obras de Helena Ignez, e Well Darwin, produtor do longa-metragem “Selvagem”.

Em trabalho solo, o mesmo Well Darwin assina “Ozu Piroclástico”, obra que se propõe a estabelecer diálogo com o Cinema Marginal brasileiro e um de seus ícones, Ozualdo “A Margem” Candeias (1922-2007).

O paraibano Dellani Lima, que vive e trabalha como multiartista em Belo Horizonte e São Paulo, é o autor de “Rompecabezas”, um longa que parte de empreitada insólita e de risco: militantes decidem sequestrar um ex-torturador. Em sua filmografia, estão “Queda de Conexão”, “Apto. 420”, “Planeta Escarlate”, “Trago seu Amor” e “O Tempo Não Existe no Lugar em que Estamos”.

Outros cinco filmes brasileiros, que já passaram por outros festivais, completam a representação nacional no Fest Latino. Um deles, o baiano “Filho de Boi”, de Haroldo Lopes, chama atenção por somar ingredientes irresistíveis: infância desassistida, o mundo do circo, a aridez e abandono de pequenos vilarejos do sertão brasileiro. Três personagens fortes se destacam: o menino João (João Pedro Dias), seu pai embrutecido pela vida (Luiz Carlos Vasconcelos) e um circense homoafetivo (Vinícius Bustani, em sensível composição). Em determinado momento, embates dolorosos perturbarão suas modestas vidas. O filme dialoga com o cinema documental e tem um visual (além do trabalho de som) notável.

“Batalha”, novo filme do prolífico cineasta Cristiano Burlan (“Mataram meu Irmão”, vencedor do Festival É Tudo Verdade), documenta as batalhas de rimas (“slams”) na periferia leste da cidade de São Paulo. Já “Música para Ninar Dinossauros” traz na direção o dramaturgo, encenador teatral e ator Mário Bortolotto, fundador do Grupo Cemitério de Automóveis Brasil. Na tela, a história de três amigos cinquentões, incapazes de ter relações convencionais com mulheres. Bortolotto mobilizou elenco singular para sua estreia na direção de longa-metragem: Lourenço Mutarelli, Paulo de Carvalho, Carca Rah e Francisco Eldo Mendes.

Fernanda Pessoa, que estreou na direção com o longa documental “Histórias que nosso Cinema (Não) Contava”, assina “Zona Árida”. Se o primeiro refletia sobre os filmes do ciclo da chamada “pornochanchada”, “Zona Árida” é um filme em primeira pessoa, autobiográfico e íntimo. Sem que, por isso, volte-se ao próprio umbigo. Fernanda relembra duas passagens pelos EUA, uma quando tinha 15 aos e fez intercâmbio, e outra (aos 30 anos), quando regressou à aridez de Mesa, pequena cidade no Arizona, para reencontrar pessoas e paisagens que povoaram sua adolescência.

Mesa é tida como uma das cidades mais conservadoras dos EUA. Depois do 11 de setembro, ela e o país como um todo mergulharam em direitismo paranoico. Para os nascidos em Mesa, Trump é o tal e ostentar armas de fogo de grosso calibre é algo tão costumeiro quanto comer um hamburger. O filme já está disponibilizado no streaming, mas assisti-lo dentro do Fest Latino SP é colocá-lo em diálogo com o cinema da América Latina (com o México, em especial), já que a gestão Trump prometera erguer um imenso muro para impedir a entrada de indesejados imigrantes vindos do país vizinho.

“La Prata Yvyguy – Enterros e Guardados”, de Marcelo Felipe Sampaio e Paulo Alvarenga, é uma coprodução entre Brasil e Paraguai, que traz no elenco Malu Bierrenbach, Iago Alvarenga, Andrea Chaves e Marcio Menighelli. No cerne da trama, supostos (e lendários) tesouros guardados durante a Guerra do Paraguai, o maior conflito armado já ocorrido na América Latina.

Ao colocar o cinema da América Central em foco, os três diretores do SP Latino levaram em conta que, até poucos anos atrás, apenas a produção cubana se destacava na Centro-América e Caribe. Mas ao longo da última década, a situação mudou de forma perceptível. Países, como a República Dominicana, passaram a colocar seus filmes em festivais importantes e um título, em especial, chamou muita atenção e conquistou vários prêmios – “Dólares de Areia”, com Geraldine Chaplin na pele de uma turista homoafetiva, já idosa, em busca de amor e companhia de jovens nativas.

O SP Latino selecionou cinco filmes para representar a América Central e o Caribe. Cuba, claro, continua se destacando e o título escolhido – “Agosto”, de Armando Capó – soma muitas qualidades. Três pré-adolescentes vivem numa pequena cidade costeira e estão iniciando os primeiros namoros, vendo aflorar desejos sexuais latentes. Mas o clima social e político anda muito tenso. Cuba passa pelo momento mais difícil de sua história, o chamado Período Especial (1990-1995). Com o fim do apoio vindo da extinta União Soviética, a vida na Ilha tornou-se dura em demasia. Milhares de habitantes, os “balseros”, decidem fugir clandestinamente para Miami em precárias embarcações.

O cineasta narra sua história centrado em Carlos, seu jovem protagonista, que a tudo observa, sem entender bem o que se passa naquele difícil ano de 1994. Ficar ou partir? Essa é a questão que, em alguma medida, envolve muitos dos seus vizinhos e conhecidos. O filme fez parte da programação do Festival Indie.

“Rio Sujo”, de Gustavo Fallas, produção que uniu Costa Rica e Colômbia, mostra um eremita, que procura uma vaca desaparecida em sua pequena fazenda. Quando um neto de 12 anos chega para visitar o avô, começam a brotar fantasmas de tempos passados.

“Apego”, de Patricia Velásquez, também é uma produção da Costa Rica (em parceria com o Chile). A protagonista do filme é uma arquiteta, filha de exilados chilenos. Ela é vista em suas relações com a filha e com sua mãe, avó da menina. E com um antigo amor dos tempos de universidade. Patricia Velásquez, que estreou em 2014 com o longa “Dos Aguas”, teve em 2016 o documentário “La Sombra del Naranjo” selecionado para participar do projeto DocTV Latinoamérica (representando a Costa Rica). “Apego” é seu segundo filme de longa duração.

“De Barlavento a Sotavento”, de Pilar Colomé, é uma realização salvadorenha. Arturo, Wendy e Amílcar moram junto a um lago vulcânico e praticam esportes à vela. Aprendem, então, a dominar a natureza e a vencer a violência e as adversidades que os cercam. O filme marca a estreia de Pilar no longa-metragem. Ela é reconhecida em seu país pela produção de documentários, vídeos sociais e curtas-metragens, realizados entre El Salvador, Guatemala e México. E, ainda, por ser professora e designer de programas educacionais para jovens em situação de risco.

“A Condessa”, longa de estreia (na ficção) de Mario Ramos, é uma produção de Honduras (em parceria com os EUA). O filme acompanha dois irmãos que passam um final de semana com as respectivas namoradas na antiga casa de avós delas. No local, descobrirão um sombrio segredo.

Mostra Contemporâneos – América Hispânica (Dez títulos inéditos no Brasil)

. “Os Errantes” (Argentina)
. “Os Segredos do Armário” (Argentina)
. “A Migração” (Peru)
. “Harley Queen” (Chile)
. “Relatos de Reconciliação”( Colômbia)
. “Killa”e “Llanganati” (Equador)
. “Desenhos Contra as Armas” (México)
. “Aio, Somos Memória, Temos Lembranças” (Paraguai)
. “Morte em Berruecos” (Panamá/Venezuela)

15ª edição do Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo
Data: 9 a 16 de dezembro
Em formato on-line, gratuito e disponível em todo território nacional
Acesso pelo serviço de streaming da SPCine Play, Looke e Sesc Digital
Todos os 36 filmes serão disponibilizados a partir das 20h00 desta quarta-feira e permanecerão acessíveis até atingir o número-limite de visualizações estabelecido por seus produtores
Mais informações sobre osfilmes e as cinco “lives” do festival no endereço www.festlatinosp.com.br

Cinema da Vela Especial
Data: 10 de dezembro, os cineastas Edgard Navarro (“Superoutro”) e Otto Guerra (“Cidade dos Piratas”) trocarão ideias, enquanto a chama de uma vela estiver acesa. Tema em pauta: “Do Super-8 às Plataformas Digitais, dos Anos 1970 à Década de 2020 – As Trajetórias Criativas de Dois Realizadores Brasileiros”

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