Plataformas de streaming apresentam o inventivo cinema de Márta Mészáros, Věra Chytilová e Chantal Akerman
Por Maria do Rosário Caetano
Uma é húngara e se chama Márta Mészáros. Fará 90 anos em 19 de setembro próximo. A outra, Věra Chytilová (1929-2014), nasceu na Tchecoeslováquia e viveu os incríveis anos da Primavera de Praga. A terceira delas, a mais conhecida, era belga e se chamava Chantal Akerman. Buscou no suicídio o trágico fecho para sua vida. Tinha apenas 65 anos. Um de seus filmes – “Jeanne Dielman” – constitui-se em obra obrigatória no repertório de cinéfilos exigentes.
Com nova onda feminista a varrer o mundo, a obra de Akerman colocou-se, junto com a de sua conterrânea Agnès Varda (1928-2019), na linha de frente do cinema. Surge, pois, em duas plataformas de streaming (Supo Mungam e Mubi), a valiosa oportunidade de ver (ou rever) o melhor da obra dessas três grandes diretoras europeias.
Quem não está familiarizado com o cinema anti-hollywoodiano praticado por Věra, Chantal e Márta, em maior ou menor medida, pode começar pelos filmes menos radicais.
No caso de Věra Chytilová, uma boa pedida é acessar, primeiro, o delicioso (e coloridíssimo) “Fruto Proibido”. Só depois mergulhar no experimentalismo radical de “As Pequenas Margaridas”.
Chantal Akerman nunca se preocupou em agradar ao público. “Jeanne Dielman, 23, Quai du Comerce, 1080, Bruxelles” não tem só título longo. A duração do filme aproxima-se de quatro horas. À frente do elenco, a grande atriz francesa Delphine Seyrig.
Como esquecer Delphine encarnada na mulher misteriosa de “Ano Passado em Marienbad” (Resnais, 1961), ou na pele de Fabienne Tabard, de “Beijos Roubados”, aquele Truffaut encantador? Quem não se lembra de Jean-Pierre Léaud, frente ao espelho, repetindo “fa-bien-ne-ta-bard, fa-bien-ne-ta-bard”, pois, detective inexperiente, apaixonara-se pela mulher do cliente (a bela e madura personagem de Seyrig).
Como Agnès Varda, Akerman trabalhou com muitos atores, técnicos e produtores franceses. Em “Jeanne Dielman”, os cinéfilos encontrarão outro nome essencial na história da Nouvelle Vague – Jacques Doniol-Valcroze (1920-1989). Ator bissexto, ele notabilizou-se, para valer, como crítico e pensador do cinema. Fundou a revista (agora septuagenária) Cahiers du Cinéma em 1951, com André Bazin e Joseph-Marie Lo Duca. Até 1957, seu nome se destacava na importante função de editor da publicação, bíblia da cinefilia. Foi sob o comando de Valcroze que François Truffaut publicou, numa Cahiers da fase “jaune”, o demolidor artigo “Uma Certa Tendência do Cinema Francês” (1954).
Quando Chantal Akerman convocou o ex-editor da Cahiers para atuar em “Jeanne Dielman”, ele já escrevera roteiros e dirigira alguns filmes (como “Amor Livre”), mas nenhum estouro da grandeza de “Os Incompreendidos”, “Acossado” ou “Pierrot le Fou”.
Quem escolher “Eu, Tu, Ele, Ela” para iniciar-se na obra de Akerman, deve saber que o filme passa a quilômetros-luz do cinema narrativo convencional. A diretora desempenha o papel de protagonista. Ela é uma jovem (bonita e melancólica), que vive fechada dentro de um quarto, comendo qualquer coisa (na verdade, algumas poções de açúcar) e escrevendo sem parar. Sem roupa, seu corpo é captado pela câmera de forma fria. Ela viverá relação homoafetiva com uma jovem (embora lésbica, Akerman não se ocupou muito dessa condição em sua filmografia). Uma vez no espaço exterior, a moça entrará na cabine de um caminhão, se relacionará com o motorista e entabulará com ele conversa sem maiores surpresas.
Se a opção para introduzir-se no universo de Akerman for “A Prisioneira” (2000), adaptação livre e singularíssima de um dos livros de Marcel Proust (o quinto volume de “Em Busca do Tempo Perdido”), o risco será significativo. Afinal, em tom melancólico, veremos um jovem possessivo (o ator Stanislas Merhar) atormentar a vida de Ariane (Sylvie Testud), tão jovem quanto ele.
Outro filme fruto de adaptação literária – libérrima, registre-se – de Akerman é “A Loucura de Almayer” (2011). Trata-se de recriação de livro homônimo, criação do polaco-britânico Joseph Conrad (1857-1924). O início do filme é inebriante. Estamos no Sudeste Asiático. Não sabemos em qual país, exatamente. No palco, um jovem de olhos puxados canta e encanta a quem o ouve. A música é “Sway”, um hit mexicano (de Bertrand Ruiz e Traconis Molina), cuja versão em inglês o ator-cantor Dean Martin imortalizou.
Atrás do cantor oriental, moças bonitas (e também orientais) dançam com seus corpos esculturais. Uma delas, Nina (Aurora Marion), faz volteios com seu corpo e olhos sedutores. De repente um homem entra no recinto, esfaqueia e mata o cantor. As moças saem do palco. Nina continua a sequenciar seus bamboleios hipnotizantes.
Num novo e selvagem cenário, crianças brincam na água e dois homens brancos, europeus, discutem. São exploradores daquelas terras. Um deles (o mesmo ator de “A Prisioneira”, Stanislas Merhar) é pai da mestiça Nina. Por 130 minutos, veremos esse homem possessivo mergulhado em angústias, suores e loucuras.
Um Joseph Conrad reinventado por Chantal Akerman é o que se vê em “A Loucura de Almayer”. Nada o aproximará do tom operístico de “Apocalypse Now”, recriação de Francis Ford Coppola da mais famosa das ficções conradianas, “Coração das Trevas”.
A Supo Mungam preparou, também, mostra de quatro filmes da tchecoeslovaca Věra Chytilová: “Saco de Pulgas” (1962), “Algo Diferente” (1963), “As Pequenas Margaridas” (1966) e “Fruto Proibido” (1970).
Chytilová estudou na famosa Famu (Escola de Cinema de Praga) e viveu a Primavera Alexander Dubcek, aquela que, em 1968, foi contida pelos tanques soviéticos. Ou seja, viveu os anos em que tudo podia ser feito no país socialista, fruto da união de tchecos e eslovacos. Seus filmes são pura subversão, cor, vida, movimento, alegria e experimentação de linguagem.
Tal qual um “Jean Vigo de saias”, Vera coloca suas personagens em total confronto com as autoridades, sejam elas quais forem. E atua a milhões de anos-luz de qualquer academicismo. “As Pequenas Margaridas”, seu filme mais citado, é o que levou a subversão a seu ponto máximo.
“Algo Diferente”, primeiro longa da indomável diretora, reúne duas histórias paralelas. A primeira segue a ginasta campeã olímpica Eva Bosáková, que pensa em se aposentar enquanto passa por exaustiva rotina de treinamento. A segunda trama segue a rotina de uma dona de casa, ignorada pelo marido.
“Saco de Pulgas” centra-se na jovem Jana, admirada por seu espírito de luta contra o conformismo e a disciplina. Ela se rebela frente às regras rígidas impostas pelo internato e pela fábrica de trabalhadores socialistas. Os conflitos de Jana com a equipe e as outras meninas trarão consequências para todos.
“As Pequenas Margaridas” são duas inquietas adolescentes, ambas de nome Marie. Elas entendem que o mundo está corrompido e, por isso, decidem embarcar em uma série de brincadeiras corrosivas, de forma a destruir tudo que estiver ao redor. E o fazem com profusão de cores e atos inimagináveis.
Em “Fruto do Paraíso”, acompanhamos a jovem Eva, que está obcecada por um homem de vermelho. Ela não sabe quem ele é, o que faz ou se é perigoso. Certo dia, Eva e seu namorado estão em um spa surrealista. Eles deparam-se com a Tentação. É evidente que, com esse filme, Chytilová realiza uma psicodélica releitura da história de Adão, Eva e a serpente tentadora. Como na narrativa bíblica, o filme transforma-se em representação alegórica da perda da inocência.
Ao contrário dos filmes de Chytilová e Akerman, os quatro longas de Márta Mészáros – disponíveis no Mubi, plataforma dedicada ao cinema de invenção (e experimental) – não oferecem tantos riscos. Mesmo que ela seja uma narradora ousada, atrevida e disposta a realizar filmes críticos e inquietos. Parece incrível que tenha conseguido dirigir obras tão complexas em um país do bloco socialista, satélite da antiga URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).
O Mubi programou apenas quatro filmes de Mészaros. Três deles, todos protagonizados por mulheres, são cada um melhor que o outro – “A Garota” (1968), “Holdudvar – Binding Sentiments” (1969) e “Nove Meses” (1976). No fecho da pequena (mas imperdível) mostra está “Não Chorem, Garotas Bonitas” (1970), comédia juvenil, protagonizada (e cantada) por jovens húngaros que só pensam em rock. Para não virarem meros imitadores da matriz anglo-saxã, ou seja, do rock inglês e estadunidense, eles são estimulados a trabalhar com versos de grandes poetas de seu país.
Antes de falar da “Trilogia Feminina” de Márta Mészáros – obrigatória a quem ama o grande cinema europeu – vale conhecer um pouco da trajetória dessa autora tão singular e praticamente desconhecida no Brasil. Ela já desfrutou de imenso prestígio e foi premiada em importantes festivais internacionais, como o de Berlim (ganhou o Urso de Ouro com “Adoção”, 1975).
Mészarós nasceu em Budapeste, capital da Hungria, em 1931. O pai, Lázló Mészáros, era um famoso escultor, que professava ideias socialistas. Perseguido por tal credo, mudou-se com a família, em 1936, para a URSS. Por isso, Márta fez seus estudos secundários no país de Stálin. O pai enfrentou problemas políticos no país dos soviétes. Morreu em 1945. Dois anos depois, sua memória seria reabilitada. A família regressou à Hungria (já integrada aos países que, no pós-Guerra, adotaram o socialismo e passaram a gravitar em torno da URSS). Na hora de cuidar dos estudos universitários, Márta regressou a Moscou, para estudar na VIGIK (Universidade Pan-Russa Sergei Guerasimov), a mais antiga escola de cinema do mundo (criada por Lênin, nos primeiros anos da Revolução Bolchevique). A jovem Mészáros formou-se na Turma de 1956. De volta, mais uma vez, a Budapeste, capital húngara, ela passou a realizar seus primeiros curtas documentais. Casou-se com um dos mais renomados diretores húngaros, Miklós Jancsó (1921-2014), pai de seu filho Miklós Jancsó Jr, que dedicou-se à direção de fotografia. Em 1968, Márta realizou seu primeiro longa, “A Garota”.
Registro aqui, breve depoimento sobre inusitada experiência vivida ao lado dela, em solo russo. Em 1995, ano do centenário do cinema, Luiz Zanin Oricchio, meu companheiro, foi convidado a integrar o Júri do Festival Internacional de Cinema de Socchi, balneário banhado pelo Mar Negro. Entre seus companheiros na comissão julgadora estavam Márta Meszáros e o sueco Bo Widerbeg (1930-1997), diretor de “Elvira Madigan” e “Joe Hill”. Participei da viagem para realizar cobertura do evento para o Jornal de Brasília, onde trabalhava. Fomos hospedados no Hotel Kempinsky, em Moscou, uma maravilha plantada no entorno da Praça Vermelha, nucleada pela Catedral de São Basílio.
No dia de nos dirigirmos para Sochi, a 1.600 km de Moscou, fomos obrigados a esquecer o conforto da primeira classe da Ibéria, que nos levara à capital russa, para entrar em avião que parecia pronto a transportar tropas para alguma das guerras em que a ex-URSS se envolvia.
Entramos, nos sentamos em total desconforto, enquanto garrafas plásticas rolavam pelo chão. Nos compenetramos e esperamos a decolagem. Márta Mészáros, que conhecia bem a Rússia, estava do nosso lado. E bem mais tranquila que nós. Foi aí, então, que chegou a mensagem: que desembarcássemos, pois a Rússia (a URSS se desmontara quatro anos antes) estava em guerra com a Chechênia e chegara a informação de que rebeldes haviam colocado uma bomba na aeronave.
Descemos, desesperados. Márta nos acalmou, relembrou histórias vividas no grande país eurasiano e ouviu os colegas de júri nos 90 minutos que passamos, de pé, esperando a varredura no avião. Se alguma bomba foi encontrada, não nos foi informado.
Em Sochi, Márta Mészáros, o polonês Jerzy Kawalerovich (“Madre Joana dos Anjos”) e os russos Pavel Lounguine (“Taxi Blues”) e Sergei Bodrov (“Prisioneiro das Montanhas”) só não foram mais festejados que um fugaz visitante – o ator Gérard Dépardieu, convidado especial do festival, que com agenda cheia não passou nem 24 horas em solo russo (guardo muitas fotos dessa aventura).
Já ouvira falar muito de Márta Mészáros, sempre referenciada como um dos grandes nomes do cinema da Europa Oriental, por Cosme Alves Netto (1937-1996), da Cinemateca do MAM. Cosme era uma espécie de embaixador extra-oficial do cinema do Leste Europeu no Brasil. Mas, se eu conhecia filmes de Kawalerovich, Lounguine e Bodrov, o mesmo não acontecia com os filmes da realizadora húngara.
Ver, de uma vez, “A Garota”, ““Holdudvar” e “Nove Meses”, foi impactante. Passaram-se décadas e esses três filmes seguem modernos, emocionantes, arrebatadores. Três mulheres os protagonizam.
“A Garota”, primeiro longa de Mészáros, começa num orfanato. A protagonista já chegou à idade de deixar a instituição. Por isso, regressa ao vilarejo interiorano, onde nascera. Procura, no endereço de que dispunha, a dona da casa. A mulher a recebe a contragosto. Confessa que é mãe da moça, mas que não quer problemas com o marido. Por isso, a recém-chegada deve se identificar como “sobrinha”, e o mais rápido possível, procurar outro canto para viver. O filme é narrado com imensa economia de recursos e traça cruel retrato de uma parte da Hungria, atada a arraigados preconceitos. O socialismo não conseguiu, concluímos, criar o homem novo.
“Holdudvar – Binding Sentiments” é uma drama de rara complexidade e beleza. Edit, uma mulher de meia-idade, leva vida das mais confortáveis, pois é casada com um político muito bem colocado na burocracia estatal. Quando fica viúva, ela resolve renegar o passado, abandonar sua zona de conforto e abrir mão de seus bens materiais. O filho, István, fica revoltado com as atitudes da mãe e pede que sua noiva, Kati, “cuide” da futura sogra. Para ele, a mãe está tomada pela histeria.
Quem quiser se introduzir no universo de Márta Mészáros por “Nove Meses” não se arrependerá. O filme é maravilhoso. A jovem Juli Kovács (materializada no rosto inesquecível da atriz Lili Monori) chega a uma pequena cidade, bem provinciana, para trabalhar em uma fábrica socialista. O engenheiro-supervisor, János Bodnár (Jan Nowicki), se interessa por ela e passa a insistir para que tenham um relacionamento. A moça faz de tudo para evitá-lo, mas não tem jeito. Acaba se relacionando com ele.
Juli Kovács, ótima operária, tem um filho já grandinho. Ao descobrir a existência do menino, o engenheiro se aborrece. Mas acaba, por amor, aceitando tal dado da realidade. O relacionamento se solidifica e a jovem engravida. Ele a apresenta à família, interiorana e afincada a valores tradicionais. O que acontecerá daí por diante é um espantoso retrato de como o socialismo teve dificuldade em mudar os valores de imensos e retrógrados segmentos de sua base social.
Prestem atenção no parto de Juli. Ele é documental. Quem dá à luz um bebê no filme é realmente a atriz Lili Monori. Márta Mészáros fez questão de filmar as contorções e o parto normal de sua estrela.
Mostra Chantal Akerman – Mostra Věra Chytilová
Na plataforma Supo Mungam Plus – www.supomungamplus.com.br
7 dias grátis para testagem de futuros assinantes. Assinatura mensal, por R$23,90, ou anual, por R$199,90, realizada no próprio site da plataforma.
São seis os filmes de Akerman: “Jeanne Dielman” (1975), “Eu, Tu, Ele, Ela” (1974), “Os Encontros de Anna” (1978), “Anos Dourados” (1986), “Do Leste” (1993) e “A Prisioneira” (1993). *Os filmes de Věra Chytilová são: “Saco de Pulgas” (1962), “Algo Diferente” (1963), “As Pequenas Margaridas” (1966) e “Fruto Proibido” (1970).
No Mubi: Mostra de Filmes Restaurados de Márta Mészáros: “A Garota” (1968), “Holdudvar – Binding Sentiments” (1969), “Não Chorem, Garotas Bonitas” (1970) e “Nove Meses” (1976).
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