Vânia Debs, montadora de “Baile Perfumado” e professora da USP, morre em São Paulo

Por Maria do Rosário Caetano

O cinema brasileiro, em especial o pernambucano, e a Escola de Comunicação e Artes da USP perderam, nesse domingo, 13 de junho, a montadora e professora Vânia Debs, mineira radicada em São Paulo desde a juventude. Responsável pela montagem de filmes de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (“Baile Perfumado”), Anna Muylaert (“Durval Discos”), Camilo Cavalcante (“A História da Eternidade”), Chico Teixeira (“A Casa de Alice”), Murilo Salles (“Nome Próprio”) e Kiko Goifman (“FilmeFobia”), Vânia morreu aos 71 anos, vítima de câncer.

Um dos últimos filmes montados pela professora uspiana – “Acqua Movie”, de Lírio Ferreira – está em cartaz em salas físicas e, em breve, chegará ao streaming.

Descendente de italianos, por parte de mãe, e de libaneses, por parte de pai, Vânia Debs formou-se na Faap (Fundação Armando Álvares Penteado) na turma de 1971-1974. Foi aluna de Vladimir Herzog e Rodolfo Konder. Ganhou bolsa para estudar Cinema na Itália, no Centro Experimental de Cinematografia, em Roma. Que, porém, encontrava-se paralisado. Seguiu, então, para quatro anos de estudos na Universidade Católica de Milão, instituição na qual realizou seu mestrado e entrou em contato com a montagem, tanto no campo da teoria, quanto da prática.

Vânia contou ao cineasta Ugo Giorgetti, diretor da série “Cinema por Quem o Faz”, produzida pela Spcine, que nenhum dos colegas de turma interessou-se, na escola milanesa, pela montagem. Ela foi a única. Além dos estudos teóricos (a escola construtivista soviética, em especial) pôde dedicar-se à parte prática oferecida pela instituição e dar início ao ofício que marcaria, junto com o magistério, sua trajetória profissional.

Ao regressar ao Brasil, Vânia sequenciou seus estudos e fez doutorado na Universidade de São Paulo. Tornou-se professora no curso de Cinema da ECA (Escola de Comunicação e Arte) e passou a montar curtas e médias-metragens. No terreno do longa, seu trabalho que mais chamou atenção foi “Baile Perfumado” (1995), o grande vencedor do Festival de Brasília e um dos títulos mais badalados da Retomada. A parceria com os diretores Lírio Ferreira e Paulo Caldas daria muitos frutos e resultaria em sólida amizade.

Quem assistir ao longa documental “Passagens” (2018), de Lúcia Nagib e Samuel Paiva, ouvirá culto e saboroso depoimento de Vânia Debs sobre a parceria mantida com a trupe do Árido Movie, embalada pelos sons do Mangue Beat, duas forças revitalizadoras do audiovisual pernambucano. A parceria foi profunda. Partiu dela a sugestão de trazer a sequência inicial do filme – o cineasta e aventureiro árabe Benjamin Abrahão (Duda Mamberti) assegurando que o mundo pertencia aos inquietos – para o final da narrativa (acompanhado do letreiro: “25 anos atrás”).

Na longa conversa que manteve com Ugo Giorgetti, na importante série “Cinema por Quem o Faz” (dedicada a técnicos muitas vezes esquecidos), Vânia desmontou a ideia de que o digital veio para facilitar e simplificar o processo de criação audiovisual. “No caso da montagem (ou edição)” – ponderou – “era mais fácil montar, na moviola, películas em 35 ou 16 milímetros”.

E por quê? “Porque se filmava menos”. Hoje – exemplificou – “com a facilidade do digital, grava-se demais. Nesse exato momento (2017) estou montando ‘Saudade’, longa documental (e série de TV) de Paulo Caldas. Sabe quantas horas de material ele me entregou? 130 horas. Imagine o tempo que consumo para assistir a todo esse material?”

Depois de visualizar tudo que foi entregue pelo diretor – pontuou Vânia – surge o desafio de encontrar uma forma de estruturação de tão amplo material. Por isso, confessou, tem “evitado montar documentários”, embora “o gênero seja da maior importância e tenha nos surpreendido com filmes maravilhosos como os de João Moreira Salles”.

Disse mais a montadora: “só tenho aceitado documentários de diretores que conheço bem, que sabem o que querem, que pensam e repensam seus filmes”. E lamentou que seus alunos, ao longo dos últimos anos, “só vejam filmes – poucos e no celular – já que seus interesses mostram-se cada vez mais concentrados em séries para TV”.

“Quando eu sugeria” – disse, com uma ponta de desesperança – “aos alunos que assistissem a um filme de Valerio Zurlini (1926-1982), praticamente todos diziam desconhecê-lo”. Se localizassem o filme sugerido, para baixar da internet, assistiam-no em seus celulares. E se mostravam satisfeitos, sem demonstrar nenhum interesse em ver Zurlini (ou que outro grande diretor de cinema) numa tela grande. Na hora de apresentar projetos, priorizavam “um piloto de série para TV”.

Vânia Debs era grande amiga de outra montadora, a paulistana-carioca Idê Lacreta, parceira de Joel Pizzini em muitos de seus filmes. As duas gostavam de passar horas trocando ideias sobre o ofício que abraçaram. Calma e ponderada, Vânia contou a Giorgetti que preferia “trabalhar sozinha” na sala escura.

“Há diretores que não suportam aquele ambiente”. Já “outros gostam de ficar a seu lado”. Caso de Chico Teixeira (1958-2019), que permanecia o tempo todo a seu lado, trocando ideias. “Uma troca muito rica nesse caso”. Outros – admitiu – “atrapalhavam, pois se apegavam demais ao material, perdendo o senso crítico”.

A profunda parceria da montadora mineira-paulista com o cinema pernambucano nasceu no final da década de 1980, início de 1990. Por sugestão do cineasta Adilson Ruiz (“Carlota Amorosidade”, “Uzebriolouco”) ela começou a montar os curtas de Lírio Ferreira, Marcelo Gomes, Cláudio Assis e Adelina Pontual. Aí surgiu o longa-metragem “Baile Perfumado” e vieram novos filmes do ciclo contemporâneo do Recife e muitos títulos paulistanos. E uma experiência carioca com Murilo Salles, que em meados da primeira década do século XX, aproximou-se da trupe do Árido Movie. Produziu e assinou a direção de fotografia do segundo longa ficcional de Lírio Ferreira – o que levou o nome do movimento – montado pela mesma Vânia Debs. Foi a deixa para que ele a convidasse a montar “Nome Próprio”, protagonizado por Leandra Leal.

 

FILMOGRAFIA DA MONTADORA VÂNIA DEBS (Nascida em Araguari/MG, em 03/06/1950)

1996 – “Baile Perfumado”, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (fic)
2002 – “Durval Discos”, de Anna Muylaert (fic)
2004 – “Como Fazer um Filme de Amor”, de José Roberto Torero (fic)
2005 – “Árido Movie”, de Lírio Ferreira (fic)
2007 – “A Casa de Alice”, de Chico Teixeira (fic)
2007 – “Nome Próprio”, de Murilo Salles (fic)
2008 – “FilmeFobia”, de Kiko Goifman (híbrido)
2010 – “Boca”, de Flávio Frederido (fic)
2011- “O País dos Desejos”, de Paulo Caldas
2012 – “Marighella”, de Isa Grispum Ferraz (doc)
2014 – “Ausência”, de Chico Teixeira (fic)
2014 – “A História da Eternidade”, de Camilo Cavalcante (fic)
2017 – “Saudades”, de Paulo Caldas (doc)
2018 – “Tito e os Pássaros” (animação)
2019 – “Flores do Cárcere”, de Paulo Caldas e Bárbara Cunha (doc)
2021 – “Acqua Movie”, de Lírio Ferreira (fic)
2021 -“Alvorada”, de Anna Muylaert e Lô Politi (doc)

4 thoughts on “Vânia Debs, montadora de “Baile Perfumado” e professora da USP, morre em São Paulo

  • Pingback: Vania Debs (1952-2021) | História do Cinema Brasileiro

  • 14 de junho de 2021 em 23:08
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    VALEU, RÔ. QUE BELA HOMENAGEM À AMIGA E COLEGA VANIA! EM NOME DOS AMIGOS DA ECA-USP QUE TIVERAM O PRIVILÉGIO DE CONVIVER COM ELA AO LONGO DOS ANOS, AGRADEÇO DE CORAÇÃO A VOCÊ POR ESTA ADMIRÁVEL SÍNTESE DA BRILHANTE CARREIRA DE VANIA COMO MONTADORA.
    UMA ENORME TRISTEZA SUA MORTE. A NÓS, RESTA O ESFORÇO DE ASSIMILAR SUA PERDA. POR ORA, OS COLEGAS DA USP EXTERNAMOS NOSSO PESAR EM MENSAGENS POR EMAILS QUE AGORA SE TORNARAM O CANAL EXCLUSIVO DE CONTATO, TRABALHO E AMIZADE. COPIO MINHA MENSAGEM QUE FAZ ECO COM A SUA NA ADMIRAÇÃO DA MONTADORA E PROFESSORA.

    Caros amigos,
    Que tristeza!
    Vania era uma pessoa maravilhosa, dedicada aos amigos e colegas com um espírito raro de colaboração, seriedade profissional e amplo espectro de atuação.
    Cumpriu maravilhosamente sua missão de formar novos profissionais na área de montagem, ajudou colegas, foi amável e brava quando justo e necessário. E cumpriu um papel extraordinário como montadora no cinema brasileiro, não só de filmes feitos em São Paulo, mas em outros estados, graças a uma saudável ampliação dos polos de produção de longas-metragens nos anos 1990. Em especial, cumpriu um papel decisivo na afirmação do cinema pernambucano, montando vários filmes da nova geração que realizou uma constelação de obras muito originais que dialogaram entre si de forma muito criativa, . Eu que a via muito pouco num período mais recente, em 2019 tive o prazer de acompanhar a sua presença no documentário Passagens, realizado por Lúcia Nagib (minha ex-orientanda) que ora trabalha na Universidade de Reading, na Inglaterra, e Samuel Paiva, este pernambucano boa praça que foi nosso aluno de pós-graduação.
    Vania brilhou em seu depoimento sobre o cinema do eixo São Paulo-Pernambuco ao longo do filme, coroando sua importante contribuição para o cinema da retomada. Mais um motivo de orgulho para nós, seus amigos, amigas, colegas e ex-alunos.
    Nós a guardaremos todos num lugar especial em nossa memória, nós, os amigos e amigas que conviveram com esta querida montadora por tanto tempo.
    Abraços,
    Ismail.

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