Gramado tem noite dedicada às lutas identitárias
Por Maria do Rosário Caetano
O longa documental “Extermínio”, de Mirela Kruel, que participa da mostra gaúcha, tem mais qualidades que a ficção “O Novelo”, de Claudia Pinheiro, selecionada para a competição nacional do Festival de Gramado.
Quem assistiu à terceira noite da festa gaúcha, na tela do Canal Brasil, pôde, ainda, apreciar o curta ficcional “Desvirtude”, de Gautier Lee, e a animação amazonense “Stone Heart”, de Humberto Rodrigues.
Três dos quatro filmes do domingo foram dedicados às lutas identitárias. “Desvirtude” é um libelo contra a discriminação dos afro-brasileiros. A jovem Gautier Lee, formada em Cinema pela PUC-RS, autora também do roteiro, inspirou-se “em caso real ocorrido numa universidade brasileira”. Kenia (Evellyn Santos), estudante de Jornalismo, é ofendida (e, portanto, discriminada) por causa da cor de sua pele. Tenta reagir, mas uma sucessão de fatos só agravarão suas angústias.
“O Novelo”, da paulistana Claudia Pinheiro, construiu-se, também, como narrativa protagonizada por personagens negros. E o fez como melodrama temperado com algumas pitadas de folhetim. O roteiro de Nanna De Castro, baseado em texto teatral que ele mesma escrevera dez anos atrás, conta a história de cinco irmãos em dois tempos (a infância e, principalmente, a maturidade).
Quando infantes, quatro deles desfrutaram de agradável convivência com o pai (André Ramiro, de “Tropa de Elite”). Após o nascimento do quinto filho, os irmãos ficariam sob os cuidados somente da abnegada mãe, Dona Alzira (a afro-portuguesa Isabel Zuaa). Do pai não teriam mais notícia. Com a mãe, aprenderiam a tricotar coloridos novelos de lã.
Novas adversidades, porém, obrigarão o filho mais velho, Mauro (Nando Cunha) a assumir o papel de arrimo (material e espiritual) dos irmãos. Note-se que o filme não dedicará espaço à religiosidade.
Para dar conta da criação dos irmãos, Mauro seguirá trabalhando como um mouro. Mesmo quando todos já são adultos, ele seguirá desempenhando o papel de “pai”. São tantas as suas preocupações, que sente frequente e incômoda dor de estômago.
Um dos cinco irmãos, João (Rogério Brito), é um psiquiatra bem-sucedido, autor que frequenta listas de best-sellers, mas afastou-se do convívio familiar por manter relacionamento homoafetivo.
Rocco Pitanga empresta sua altaneira figura a Cicinho, separado da mulher, que o impede de ver as filhas. Afinal, por causa do alcoolismo e de consequentes internações em clínica de reabilitação, ele arruinou seu casamento e perdeu a guarda das meninas.
O mais bem-sucedido do quinteto, pelo menos financeiramente, é o advogado José Carlos (Sérgio Menezes). Ele banca o durão, não mantém proximidade com os irmãos e cultiva preconceito contra gays. O caçula, Cacau (Sidney Santiago), sonha ser ator e espera sua grande chance. E relaciona-se com uma namorada, Jackie (Thaís Lago), mas – como João – sente desejos homoafetivos.
Um dia, uma notícia chega, de forma inesperada, aos cinco irmãos. Um homem de 70 anos foi hospitalizado (está na UTI, em estado gravíssimo). Não traz documentos, mas em seu bolso foi encontrado um número de telefone – justo o da casa onde o quinteto nasceu e cresceu.
Um corredor de hospital será o ponto de encontro dos irmãos desgarrados. Ali, os cinco tentarão aparar suas arestas.
No debate mediado por Roger Lerina, a dramaturga e publicitária Nanni De Castro admitiu que a peça foi escrita sob encomenda de cinco atores, que queriam atuar em espetáculo que quebrasse com estereótipos ligados à masculinidade. Não estava escrito que eles seriam integrantes de uma família negra.
A diretora Cláudia Pinheiro, que procurava matéria-prima para seu primeiro longa-metragem, viu na peça de Nanni o material que gostaria de retrabalhar. A trupe foi a Gramado, em 2019, e aproximou-se do ator Nando Cunha, premiado por seu desempenho no curta “Tele-entrega”.
A partir do festival gaúcho, a produção foi ganhando materialidade e decidiu-se que a família uniria cinco irmãos negros. Isabel Zuaa, também premiada em Gramado, foi convidada a dar vida a Dona Alzira, esposa de Orlando (André Ramiro).
Com esse time e produção modesta (“fizemos um filme de baixo orçamento”) nasceu “O Novelo”. No debate, o ator Sidney Santiago fez questão de estabelecer linha do tempo formada com “quatro filmes da maior importância para elencos (e narrativas) negros” – “Assalto ao Trem Pagador” (Roberto Farias, 1962), “As Filhas do Vento” (Joel Zito Araújo, 2004), “Café com Canela” (Glenda Nicásio & Ari Rosa, 2017) e nosso “O Novelo”.
Santiago, que acrescentou Kuanza a seu nome e atuou em “Os Trabalhos de Hércules” e “Sequestro Relâmpago”, assegurou, emocionado, que “esses quatro filmes trouxeram pluralismo à viciada e viciante produção cinematográfica brasileira”, na qual “raramente há negros em papeis de protagonistas e não- estereotipados”.
O filme de Claudia Pinheiro cavou sua vaga em Gramado por construir-se como narrativa na qual cinco atores de pele preta são os protagonistas e desempenham papeis distantes de escravizados ou bandidos. São microempresários, médicos psiquiatras, advogados e atores. Mas o filme deixa a desejar. Principalmente por sua ligeireza no esboço dos personagens e pela facilidade com que soluciona conflitos complexos.
“Extermínio”, segundo longa-metragem de Mirela Kruel – o primeiro, “O Último Poema” (sobre admiradora gaúcha de Drummond, que trocou cartas com o poeta por longos 24 anos) – também se propôs a falar de diversidade, aceitação e dignidade. E o fez convocando quatro transexuais radicadas em Cachoeira do Sul, município de 82 mil habitantes, como protagonistas.
A realizadora gaúcha planejava um documentário sobre extermínios de pessoas LGBTQ+ e iniciou suas pesquisas. Alguém perguntou a ela se conhecia a história de Nickolle Rocha, jovem trans assassinada em Cachoeira do Sul, em 2016. Ela desconhecia o fato. Mas ficou motivada a conhecê-lo. Nascia, ali “Extermínio”, um filme de muitas qualidades.
O maior mérito da narrativa de Mirela situa-se na escolha dos personagens: três transexuais cachoeirenses, que nasceram menino, fizeram a transição e hoje vivem da prostituição. E Claudinho Teixeira, que preserva seu nome masculino, vestindo-se como um rapaz para preservar sua integridade física. Afinal, ele perdeu a visão, em momento que somou depressão (depois de ser espancado numa boate) e meningite.
No debate gramadiano, com discurso sereno, articulado e militante, Claudinho defendeu o direito das amigas que fizeram a transição, se sentem mulheres e querem ser chamadas pelos nomes sociais (ou femininos).
Mirela estabelece com suas personagens conversas das mais reveladoras. Nunca está em busca de meras “declarações jornalísticas”.
“Sempre faço questão de estabelecer relação de plena confiança com meus personagens” – contou ela no debate. Quem assistiu ao seu curta “Catadora de Gente” (2019), protagonizado pela falante Maria Tugira Cardoso, sabe que a cineasta não está blefando.
Uma das personagens de “Extermínio” afirma que “a prostituição é viciante”. Gosta de seu ofício. A outra também defende o “trabalho” que escolheu, mas reafirma um sonho: desempenhar função no comércio (“numa loja, no caixa de um supermercado”), ou num escritório. E com a “carteira assinada”.
Nenhuma das trans-sexuais foge de temas difíceis: a rejeição familiar e social, os riscos trazidos pelos hormônios e, principalmente, a violência da prostituição. Bem vestidas, maquiadas e com impressionante uso da língua portuguesa, elas falam dos riscos que correm quando entram no carro de um cliente desconhecido. Podem voltar ao ponto de partida, mas podem ser assassinadas (como fora Nickolle, que amava desfilar na escola de samba local) e jogadas em lugar ermo.
Não idealizam a “aceitação” por pais e mães. Contam o quão difícil é revelar a eles que gostavam de meninos e queriam ser meninas. Que para atingir tal objetivo, fariam a transição. A aceitação materna acaba, mais cedo ou mais tarde, se concretizando. Já o lado paterno mostra maior resistência. Uma das trans conta que pediu à mãe que “viva eternamente”, pois ela é seu único “porto seguro”.
Para completar sua narrativa, Mirela conseguiu estabelecer relação de plena confiança com os pais de Nickolle, que morreu aos 18 anos. Jovens e de profissões humildes, eles falam – também com bom domínio da língua portuguesa – do crime e os sonhos interrompidos da filha.
A animação “Stone Heart” foi o único título da noite a não tematizar as lutas identitárias. Em sintéticos nove minutos, o amazonense Humberto Rodrigues construiu distopia futurista e metafórica.
Guerras, epidemias, escassez de água e de outros recursos naturais transformam os seres humanos em estranhos seres de pedra, de conformações as mais estranhas. Um dia, um dele encontra uma flor azul e tenta cultivá-la e multiplicá-la. Para tanto necessita de água, seiva da vida.
O realizador, que estudou na Gobelins de Paris e tem experiência com programas para TV e games, consegue narrar sua distopia com síntese e eficiência narrativa. E, o que é melhor, com final surpreendente e metafórico. Detalhe curioso: com seu filme, Humberto consguiu uniu os extremos geográficos do Brasil: o Amazonas e o Rio Grande do Sul, representado na produção pela incansável Luciana Druzina, ardente defensora do cinema animado brasileiro.