Quarta noite de Gramado

Por Maria do Rosário Caetano

O Festival de Gramado pautou a quarta noite de suas múltiplas competições pelo ecletismo. O primeiro filme da segunda-feira, 16 – o curta cearense “A Beleza de Rose” – mostrou como se pode tratar um tema complexo (rejeição aos cabelos crespos) com alegria e criatividade.

O curta seguinte, “Fotos Privadas”, de Marcelo Grabowsky, partiu de ménage à trois homoafetivo para refletir sobre a complexidade do desejo.

O longa brasileiro “Álbum em Família”, estreia de Daniel Belmonte no formato, empreendeu diálogo com a mais incômoda das peças de Nelson Rodrigues (1912-1980), escrita pelo dramaturgo em 1945 e interditada por décadas.

Belmonte e sua trupe de atores não se fixaram, porém, nas patologias eróticas (incesto e perversões variadas) como essência do filme. Preferiram, com leveza e muito bom humor, construir narrativa possível em tempos de pandemia.

A quarta atração da noite veio da Bolívia, “Pseudo”, de Gory Patiño e Luis Reneo, um thriller com ingredientes políticos e culto ao cinema noir. “Uma narrativa policial sem policiais”, como bem lembrou Patiño.

Dos quatro títulos exibidos, o que mais causou empatia foi “A Beleza de Rose”. Filmado em Tianguá, cidade de apenas 76 mil habitantes, situada a 310 km de Fortaleza, o curta de Natal Portela segue linhagem que já gerou obras cativantes como “Kbela”, de Yasmin Tayná, “Cabelo Bom”, de Swahili Vidal e Cláudia Alves, e antológico programa “Espelho”, de Lázaro Ramos.

A trama tinguaense começa quando a jovem Rosa, dona de volumosa cabeleira black power, decide disputar vaga no mercado de trabalho. Ela começa, então, sua via-crucis burocrática. Ao preparar seu currículo, depara-se com a necessidade de foto. Alguém sugere que ela neutralize o volume dos cabelos com um elástico para sair bem no retrato.

Tudo se mostra hostil à jovem Rose (Quézia Oliveira, tianguaense que nunca havia atuado no cinema). Vamos acompanhá-la ao longo de um dia, no qual decidirá fazer chapinha para esticar seus fios capilares.

O cineasta, também roteirista, montador e produtor, inspirou-se em caso real de uma cantora cearense, que submeteu seus cabelos crespos a tantos tratamentos químicos, que perdeu-os de forma alarmante. Mas ele acabou, depois de muito pensar e ouvir parceiras e parceiros, por adotar novos caminhos.

Portela ama sua personagem e realiza um filme de ficção fincado em base documental. Muitos moradores de Tianguá terão seus solos na tela. Destaque para Dona Cecília, proprietária de uma carrocinha de café-da-manhã (in memoriam), Seu Rocha e Pitoca.

“A Beleza de Rose” nos estimula a prestar atenção nos próximos trabalhos portelenses. O realizador, que é cineclubista e gestor cultural, está terminando seu primeiro longa documental – “Interior” – sobre três personagens que deixam a cidade grande para viver em pequenos lugarejos. Portela já prepara, também, o roteiro de seu primeiro longa ficcional, que se deverá chamar-se “Fabíola”.

Articuladíssimo, o promissor talento cearense brilhou também no debate e avisou que, sendo branco, foi humilde ao abordar a beleza de Rose. Fez a lição de casa, viu (e prestou tributo) ao seminal “Kbela”, leu diversos livros. Por fim, sem querer dar spoiler, mas dando, registre-se que ele empreendeu criativa vingança visual com as aprontações de uma determinada (e platinada) apresentadora de TV.

Depois de “Rose”, o paulistano “Fotos Privadas” soou por demais contrastante e provocativo. Afinal, Marcelo Grabowsky filmou (e fotografou) corpos no exercício (quase explícito) do sexo. Mas a segunda metade dos 20 minutos de sua narrativa é dedicada a uma DR (discussão de relação) e a um belo final no Minhocão paulistano.

Diretor de teatro e autor do curta “Cloro” e do longa “Testemunha 4”, Grabowsky vai transformar “Fotos Privadas” em ponto de partida de série de TV. E o fará com os atores Lucas Galvino e Vinícius Neri, intérpretes de casal homoafetivo (um estudante de Medicina e um arquiteto), que resolvem convidar um estranho (o ator Antonio Miano) para uma noite diferente e instigante. A eles serão agregados novos personagens.

Ao desenhar seu “Álbum em Família”, o jovem Daniel Belmonte adotou soluções possíveis em tempo de distanciamento sanitário. Para concretizar sua estreia no longa-metragem, o jeito foi realizar um obra virtual (ou on-line). Cada ator filmaria, em sua casa e com seus parentes próximos, a parte que lhe coubesse, sob o comando do diretor, também ator. Registre-se que Belmonte se mostra onipresente em sua “auto ficção”.

A narrativa é sintética (72 minutos) e frustrará a quem não aceitar o jogo proposto pela equipe. Afinal, sobra metalinguagem e falta Nelson Rodrigues. E o tom é pop. Pouco tem das tragédias do “anjo pornográfico”. E compõe-se com trechos de entrevista do dramaturgo ao programa Vox Populi (1978), pequenas transgressões, soluções inimagináveis e alguns questionamentos.

Nelson Rodrigues anuncia em seu “Álbum de Família” – e o faz pela voz de um locutor, porta-voz da moral vigente – que as famílias são, na aparência, “normais e felizes”, mas, “na intimidade do lar” podem dedicar-se a paixões incestuosas e perversões as mais diversas.

Perto do “Álbum” rodriguiano, interditado por “agredir a moral e os bons costumes”, “Álbum em Família” é uma Sessão da Tarde. Ninguém pense que será obrigado a ver imagens borradas (recorrentes em “lives”) ao longo do filme. Isso não acontece. Os fotógrafos amadores (em maioria familiares dos artistas) conseguem bons registros. E cada ator, em especial Otávio Müller (o patriarca louco pelo sangue de virgens e pela filha Glorinha), Cris Larin (a esposa Dona Senhorinha), Dhara Lopes e Eduardo Speroni vão esmerar-se na busca de imagens bem-definidas e de recursos capazes de enriquecer a narrativa.

Cris e Otávio inventam figurinos que evocam suas personagens e trabalham suas angústias e recursos vocais. Speroni, que é também ilustrador, chega a desenhar na parede, em tamanhos naturais, personagens com os quais irá, em sua sôfrega busca, contracenar.

O filme tem bons momentos e diverte com inserções de atores convidados. Renata Sorrah aceita dar vida a Rute, cunhada do patriarca Jonas, a quem devota um louco amor. Mas a atriz não se entende bem com os recursos digitais. “Desiste” e o diretor corta Rute da trama. Tonico Pereira, com o brilho costumeiro, faz um vovô perverso.

Lázaro Ramos tenta consolar o amigo Otávio “Jonas” Muller, angustiado com os questionamentos dirigidos a Nelson Rodrigues (“anacrônico, machista, racista, misógino”). Os dois, que ajudaram a recriar texto do dramaturgo no filme “Beijo no Asfalto” (Murilo Benício, 2017), conversam pelo telefone. Para confortar o amigo, Lázaro lembra que no tempo do Bando de Teatro Olodum, em Salvador, participara de montagem de “Tio Vanya” e que o diretor promovera uma carnificina. Arrancara pedaços do texto russo, eliminara personagens, uma coisa…

E há, ainda, saborosa participação do casal Ravel Andrade e Valentina Herszage. Completam o elenco os atores Kelson Succi, George Sauma, Simone Mazzer e familiares (em especial mães e esposas, transformadas em diretoras de fotografia ou “aplaudidoras do talento” dos seus).

Os criadores de “Pseudo”, Gory Patiño e Luis Reneo, se conheceram quando estudaram cinema na Califórnia. Reneo é espanhol e autor de diversos roteiros. Patiño, que é boliviano, participou recentemente de Gramado com seu primeiro longa, o drama social “Muralla”, sobre ex-goleiro de futebol que, já no ostracismo, tenta sustentar a família como condutor de um micro-ônibus. Um grave problema de saúde acometerá seu filho. Como salvá-lo? O pai será capaz de recorrer ao crime organizado para encontrar o dinheiro exigido pelo hospital?

“Pseudo” tem pontos em comum com “Muralla”: um clima de thriller, um apego aos problemas sociais do Terceiro Mundo (em especial o crime) e um protagonista que vive trafegando pelas ruas e becos de La Paz. Ele, por ser taxista, convive com a violência cotidiana e aproveita para praticar pequenas trampas.

Um dia, um passageiro, que se diz fotógrafo, desce do taxi ao ver um corpo estendido no chão. Desaparece. Premido por necessidades financeiras, o motorista assumirá o lugar do passageiro, dono de vários passaportes, sem saber ao certo o que ele fazia. E o que faria na missão rumo à qual se deslocava antes do inesperado.

O filme, que dura 85 minutos, tem ritmo ágil e fotografia calorosa (de Gustavo Soto). Os dois diretores, fãs do film noir (ou cine negro), não adotam o preto-e-branco, mas trabalham com muitas cores, sempre em busca da atmosfera “noir”. Por isso reelaboraram com empenho as cenas noturnas tão caras ao gênero.

A narrativa se sustenta em bom roteiro, fincado na realidade social e nas mazelas do país sul-americano. Mas, ao pagar tributo ao gênero, introduz recursos rocambolescos na intensa aventura vivida pelos protagonistas – além do taxista que se passa por fotógrafo, há que se destacar a bela (Carla Arana), uma ameríndia com muita sede de vingança, e o companheiro dela, um homem apaixonado e mais velho, que sentirá ciúmes ao ver o interesse nela despertado pelo falso fotógrafo.

No debate, Luis Reneo destacou a importância do imenso conhecimento que Patiño tem de Laz Paz. “Por conhecer cada canto de sua cidade, ele conseguiu imprimir cor local ao filme, dando-lhe, assim, consistência narrativa”. O boliviano definiu a capital de seu país como “um gigantesco buraco”, no qual acontecem coisas impensáveis.

Ninguém se atreveu, durante o debate, a detectar em “Pseudo” indícios de “Passageiro, Profissão Repórter” (Michelangelo Antonioni, 1975). Mas é claro que este filme foi uma das muitas fontes inspiradoras da dupla de diretores. Só que, ao invés do denso drama existencial do italiano, Patiño e seu colega espanhol quiseram construir um bom filme de entretenimento, do tipo que atrai o grande público e tenta, na medida do possível, contrabandear alguns ideias políticas e sociais. Sem aprofundá-las.

Patiño garantiu em suas articuladas intervenções no debate gramadiano que há ingredientes realistas numa das subtramas do filme — a que envolve mercenários, empresários (ligados a grandes mineradoras) e grupos de extrema-direita. Unidos, tais componentes da vida social, política e econômica boliviana (“células extremistas”) engendram, sim, planos para desestabilizar governos democraticamente eleitos.

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