Quinta noite de Gramado
Por Maria do Rosário Caetano
Um longa brasileiro, “A Primeira Morte de Joana”, da gaúcha Cristiane Oliveira, e um chileno, “Gran Avenida”, de Moisés Sepúlveda, estão, ambos, por suas grandes qualidades, na disputa pelos principais troféus Kikitos da quadragésima-nona edição do Festival de Gramado. Que, aliás, viveu noite essencialmente feminina.
Além da equipe de Cristiane, em maioria composta de mulheres, os dois curtas – o gaúcho “Eu Não Sou um Robô” e o pernambucano “Per Capita” – tinham nomes femininos em seu comando, a portalegrense Gabriela Lamas e a recifenbse Lia Leticia. Até o longa chileno, dirigido por nome masculino, tem na atriz Paulina Giglio uma de suas forças narrativas.
“A Primeira Morte de Joana” só confirma o talento que Cristiane mostrara em seu longa de estreia, “Mulher do Pai” (2016). Além de reafirmar diálogo da diretora com uma das principais vertentes do cinema uruguaio, o “minimalismo melancólico”. Só que, no caso brasileiro, com menores doses de melancolia.
A jovem cineasta portalegrense escreveu seu roteiro a partir de argumento próprio, no qual havia uma força motriz: entender os segredos de uma mulher, que ela conhecera, e que morrera aos 70 anos, solteira e sem ter tido relação sexual nem com homens nem com mulheres.
Outro desejo fertilizou sua construção narrativa: as mudanças ocorridas na Região dos Lagos, no Rio Grande do Sul. Ali, em torno da cidade de Osório (sem nome na obra ficcional), nascia um parque de energia eólica. Surgiu, então, a protagonista Joana (Letícia Kacperski), uma pré-adolescente de 13 anos, intrigada com a morte de uma tia-avó, com a qual mantinha fina sintonia.
Para desenvolver o roteiro, Cristiane contou com a colaboração da atriz paulistana Silvia Lourenço. O resultado é uma trama delicada, bem-urdida e povoada por personagens críveis e complexos.
Joana é filha de Lara (a atriz Joana Brandi Vieira), uma mulher batalhadora, separada do marido, que vive da fabricação caseira de bolos. Elas moram com a avó (Lisa Gertum Becker), de origem germânica, que adora dançar e namorar. A menina é amiga inseparável de Carol (Isabel Bressane), uma colega de escola.
O filme se construirá com as buscas de Joana, que quer entender por que a tia-avó nunca tivera um namorado, e com suas próprias buscas, suas primeiras descobertas, o despertar da sexualidade.
Em diálogo com universo documentado pelo longa “Cavalo de Santo”, participante da Mostra Gaúcha, Cristiane aproximará Lara de um praticante do Batuque, religião de matriz afro, importante, mas invisibilizada, no sul brasileiro.
Lara, descendente de alemães, vai recorrer a passe espirital em culto filmado com pegada documental e sem nenhum exotismo. A aproximação da mãe de Joana (e da própria menina) com o Batuque se imbricará na essência do filme, em especial em sua trilha sonora.
“A Primeira Morte de Joana” não abre mão da complexidade das descobertas sexuais e expõe, em delicadas camadas, o despertar da menina. Afirmativo, sem ser simplista, o filme mostra que a coragem é, mais que necessária, vital.
A fotografia (de Bruno Polidoro), que registra as forças e transformações da natureza banhada em muitas águas, de mar e de lagoas, só faz acentuar a beleza dessa narrativa tão singular.
O longa chileno “Gran Avenida” foi uma ótima surpresa revelada pela Mostra Latino-Americana do Festival de Gramado. Um ficção melhor, e mais elaborada, que “Las Analfabetas”, estreia de Sepulveda na direção (com a grande atriz Paulina García), longa premiado em Gramado 2018 com vários Kikitos.
“Gran Avenida” está no páreo para disputar o troféu de melhor filme latino-americano. Suas primeiras sequências enganam, pois nos induzem a pensar que estamos diante de mais uma comédia romântica, com casais que sonham ter filhos, um pai de fim-de-semana atrapalhado e meio tonto (“huevón”, como dizem os chilenos), um empregado faltoso que tenta enrolar o chefe para justificar suas ausências.
À medida que a trama, urdida pelo roteirista Michel Caselli e pelo próprio diretor, vai se complexificando, o filme cresce. Um celular sumido vai gerar a melhor (mais importante e reveladora) de suas sequências. Dali em diante, veremos que pequenas mentiras são matéria constitutiva dos personagens em suas relações interpessoais e profissionais.
A cidade de Santiago tem imensa presença na narrativa, seja com seu trânsito carregado (e acidentes esdrúxulos), seus parques e ruas, suas tribos, que bebem e fumam “porros”, seus murais de intervenção urbana.
Sepúlveda contou – durante o debate do filme, mediado por Roger Lerina – que seus roteiros costumam nascer dos atores com os quais escolhe trabalhar. A maioria vinda do teatro e, portanto, disposta a construir personagens complexos, imperfeitos.
Ao nascer, “Gran Avenida” contou com título passageiro (pois logo descartado): “Três Mentiras”. E uma fonte cinematográfica, entre muitas outras – “Segredos e Mentiras” (1996), do britânico Mike Leigh, premiado em Cannes. Este filme – quem o viu sabe disso – tem seu momento mais forte no diálogo entre uma mãe branca (Brenda Blethyn) e sua filha negra (Marianne Jean-Baptiste), que crescera distante (num orfanato).
Como Leigh, Sepúlveda dá a seus atores liberdade para que inseminem seus filmes com improvisações e criações colaborativas.
O trio de protagonistas de “Gran Avenida” – Jô (Paulina Giglio), Camilo (Ivan Parra) e Gabriel Cañas (o “huevón” Ronald Conejo) – brilha ao longo de toda a narrativa e arrasa na sequência do celular.
Registre-se que tal sequência (a que contém a mais reveladora mentira do filme) está para “Gran Avenida” em proporção semelhante à do diálogo entre mãe-e-filha em “Segredos e Mentiras”.
Um detalhe para animar os distribuidores brasileiros a comprar este ótimo e sintético longa chileno: o Rio de Janeiro, a Praia de Copacabana em especial, tem espaço importante na narrativa.
Os curtas “Eu Não Sou um Robô” e “Per Capita” têm, ambos, muito a ver com tecnologia. A realizadora, atriz, diretora de arte e roteirista Gabriela Richter Lamas, com sua cara de adolescente travessa e muitas espinhas no rosto, interpreta jovem atormentada por contratempo digital.
Sozinha em casa, ela falha em teste (um daqueles que pretendem, na internet, diferenciar usuários humanos de robôs). Começa, então, a pensar em voz alta. E o faz em diálogo com personagem inusitado: uma mosca de tamanho humano.
As referências de Gabriela nos levam, claro, ao canadense David Cronenberg, que também se ocupou com um homem-mosca e, abordou, com ênfase, a questão da tecnologia.
Pelo mesmo universo de referências (Cronenberg + o escritor britânico J.C. Ballard) navega a distopia de Lia Letícia. Os protagonistas do filme são uma mulher que vive suas perturbações, apesar de seu conforto material, e três jovens, com seus celulares, que barbarizam um carro para gerar selfies matadoras. Eles servem de metáfora a uma sociedade que pode acessar sonhados bens de consumo, mas parece sem saber o que fazer com eles.
Palavras pichadas numa parede urbana da Recife de Lia citarão Ballard (1930-2009): “Como despertar uma gente entorpecida que tinha tudo, que comprara todos os sonhos que o dinheiro pode comprar e sabia que tinha sido uma pechincha?”
Dois registros finais do festival gaúcho, que se aproxima de sua noite de premiação (nesse sábado, na tela do Canal Brasil). Um protagonizado pela diretora de fotografia Lívia Pascual de “Eu Não Sou um Robô”, do longa “Extermínio” e de mais duas produções gaúchas. No debate dos curtas, ela contou que não recebeu pagamento pela fotografia de nenhum desses quatro trabalhos, todos realizados na garra e selecionados pelo festival. Lívia tem vivido do que ganha na publicidade, não no cinema, sua paixão.
O outro registro une dois importantes nomes do cinema gaúcho: os atores Leonardo Machado (1976-2018) e Sirmar Antunes. O Iecine (Instituto Estadual de Cinema) resolveu homenagear Leonardo, morto precocemente, dando o nome dele a prêmio que será atribuído, anualmente, a um grande profissional do audiovisual riograndense.
O primeiro Troféu Leonardo Machado será entregue ao ator negro Sirmar Antunes, dedicado há mais de 40 anos a filmes que vão de “O Dia Em que Dorival Encarou a Guarda”, de Furtado e Goulart, aos longas de Tabajaras Ruas, Beto Souza, Paulo Nascimento, Henrique Freitas Filho e Zeka Brito.