Nos cinemas três ótimas produções latinas
Por Maria do Rosário Caetano
Três produções latino-americanas – “La Llorona”, do guatemalteco Jayro Bustamante, “Aranha”, do chileno Andrés Wood, e “Los Lobos”, do mexicano Samuel Kish Leopo – podem ser vistas nos cinemas brasileiros.
Os dois primeiros estreiam nessa quinta-feira, 23 de setembro. O mexicano iniciou sua busca de diálogo com o arredio público brasileiro semana passada e segue em cartaz.
“La Llorona” (“A Chorona”) é um dos filmes mais balados da temporada por razão evidente: dialoga com o cinema de horror, vertente em alta na sensibilidade de nosso tempo (seja em festivais, premiações ou no circuito de arte). O segundo longa de Jayro Bustamante foi finalista ao Globo de Ouro de melhor longa estrangeiro e pré-finalista ao Oscar. No total, somou 22 prêmios, sendo alguns de exigentes associações de Críticos dos EUA.
Bustamante, hoje com 42 anos, fez sua estreia no longa-metragem já com o pé direito, pois “Ixcanul” recebeu o cobiçado Prêmio Alfred Bauer, no Festival de Berlim, e projetou-o de tal forma que o guatemalteco conseguiu viabilizar, de uma vez e com parceiros internacionais, dois longas (além de “La Llorona”, o drama homoafetivo “Tremores”).
Muito do sucesso da “A Chorona” se deve à sua orgânica mistura de gêneros. O filme soma terror, drama político e documentário. Para falar de genocídio de povo indígena (os maya-ixiles), perpetrado por generais que comandaram um dos períodos mais desoladores da história do país centro-americano, Bustamante recorreu a lenda de grande força no mundo hispano-americano: a da mulher que mata os filhos, arrepende-se e, como um espectro, verte rios de lágrimas. Vaga e assombra, com seus remorsos de alma penada, aos viventes. Sempre por volta da meia-noite.
A trama de “La Llorona” – um drama político – desenrola-se na tela, banhando em atmosfera de horror. E o diretor recorre a poderosas imagens documentais da cineasta estadunidense Pamela Yates, retiradas de seu documentário “Cuando las Montañas Tiemblan” (1983). Pamela, que apresentou e debateu seus filmes no Festival É Tudo Verdade (São Paulo, 2018), apaixonou-se pela Guatemala e transformou sua câmera em arma de denúncia de atrocidades cometidas contra populações indígenas. Não se pode esquecer que México, Guatemala, Peru e Bolívia são os países latino-americanos que, apesar do secular genocídio iniciado com a chegada do colonizador europeu, contam, milagrosamente, com significativa população ameríndia.
“La Lorona” tem em Alma (María Mercedes Coroy, de “Ixcanul”), uma jovem e bela indígena, de imensos cabelos, sua força sobrenatural. Ela não mata seus filhos (como o espectro fantasmagórico que povoa o imaginário de povos do México e adjascências), mas os vê assassinados por forças militares que enxergavam subversivos em cada indígena da etnia maya-ixiles.
Trinta anos depois do pesadelo, autoridades judiciais instalam processo criminal contra o General Enrique (Julio Diaz), que foi o responsável pelo genocídio (a inspiração vem de personagem real, o general-presidente Efraín Rios Montt). Mas ele, muito poderoso, acaba absolvido. A população, revoltada, cerca sua casa com protestos ensurdecedores (vistos com imagens reais documentadas por Pamela Yates).
Preso em sua enorme mansão com sua esposa, filha e empregados insatisfeitos, o General Enrique é tomado pela paranoia e começa a ouvir lamentos misteriosos durante a noite. O que ele não sabe é que a nova governanta da casa, Alma, é a Llorona. Prestem atenção nas cenas (ficcionais) do julgamento do General, pois na plateia, na primeira fila, está a ativista Rigoberta Menchú, Prêmio Nobel da Paz (1992), grande defensora dos direitos indígenas.
“Aranha”, a outra estreia hispano-americana dessa semana, é um drama político que se desenvolve em dois tempos: no Chile atual e o da Unidade Popular de Salvador Allende (começo da década de 1970). Com sólido roteiro, Andrés Wood revela as entranhas de organização da extrema-direita (Pátria y Libertad), que cometeu vários crimes em seu obstinado (e violento) projeto de desestabilização do Governo Allende. Seu símbolo, que traz alguma semelhança com a suástica nazista, lembra as formas de uma “aranha”, a que dá título ao filme.
Ao revistar os pilares do grupo Pátria y Libertad, que combate com todo ardor o comunismo e, ao mesmo tempo, se diz ultranacionalista e anticapitalista, Andrés Woods nos fornece um espelho capaz de refletir os contornos trágicos de nosso tempo presente.
“Aranha” é fruto de parceria entre o Chile, a Argentina e o Brasil. A paulistana Bossa Nova Films, representada por Paula Cosenza, entrou com recursos de produção e com um ator, Caio Blat, em papel coadjuvante. Entre os protagonistas, todos chilenos, um nome argentino se destaca – o de Mercedes Morán, atriz que brilhou em filmes de Lucrécia Martel (“O Pântano” e “A Menina Santa”) e pode ser vista em papel de destaque na série “Vosso Reino”, de Marcelo Piñeyro (Netflix).
No tenso começo de “Aranha”, numa Santiago contemporânea, vemos um garoto furtar a bolsa de uma mulher e fugir. Um homem, ao voltante, que estava no cenário do furto, resolve fazer justiça com as próprias mãos promovendo implacável perseguição ao trombadinha. O resultado é trágico, pois o motorista e seu veículo prensam o rapaz contra um muro, matando-o. Os transeuntes aplaudem o justiceiro. Mas, como lei é lei, o motorista será preso. Durante as investigações, a Polícia descobre, na casa deste “justiceiro”, materiais que o vinculam a movimento de ultradireita.
Inês (Maria Valverde, na juventude, e Mercedes Morán, na maturidade) é o elo de ligação do assassino (de nome Gerardo) com o movimento representado pela simbólica aranha. Quando jovem, Gerardo foi, por sua violência e ousadia, recrutado como braço armado do Pátria y Libertad. Seu amigo mais próximo, além de Inês, era o noivo dela, o estudante Justo. Rica empresária, passadas tantas décadas, Inês quer tudo, menos reencontrar seu passado de militância estudantil. Até porque a relação dela com Gerardo, vindo das classes populares, foi além, muito além, do campo político.
A narrativa transita entre o presente e o passado, com flashbacks reveladores. Andrés Wood, autor de sete longas-metragens (“Machuca” e cinebiografia de Violeta Parra são os mais conhecidos), prova, mais uma vez, sua capacidade de realizar narrativas que revelam forças progressistas e regressivas da história chilena. Em “Machuca”, ele tinha uma encantadora criança, Pedro Machuca (Ariel Mateluna), de pele morena (por sua origem indígena), cujo olhar nos ajudava a entender o embate entre o Chile da Unidade Popular e o que entronizou Augusto Pinochet à frente de golpe militar e longo tempo ditatorial.
Com “Aranha”, o santiaguenho Wood volta ao mesmo tempo histórico, mas o faz com personagens adultos. E, mais uma vez, sem nenhum maniqueísmo.
O mexicano “Los Lobos” é um drama intimista, sobre duas crianças que vão para os EUA com a mãe, em busca de dias melhores. Ela deseja um bom emprego. Os meninos sonham com passeio a uma idealizada Disneylândia. O filme está em cartaz nos cinemas desde a semana passada.
O jovem Samuel Kishi, de 36 anos, estreou em grande estilo. Seu filme ganhou o Prêmio do Júri na Mostra Generation, do Festival de Berlim. No Brasil, foi exibido no Olhar de Cinema (Festival Internacional de Curitiba), que também o festejou e premiou.
Quem não resiste a filmes protagonizados por crianças, não resistirá a “Los Lobos”. Nem ao iraniano “Filho e Mãe”, de Mahnaz Mohammadi, também em cartaz nos cinemas brasileiros. Registre-se que ninguém realiza filmes com elenco e histórias infantis como o Irã. Basta lembrar alguns Kiarostami (“O Menino e a Casa do Menino”), Jafar Panahi (“O Balão Branco”) e Majid Majidi (“Filhos do Paraíso” e “Crianças ao Sol”). O país conta, até, com um Instituto do Filme para Crianças, que teve em Kiarostami um de seus mestres.
Vale registrar que a matriz desses filmes que arrancam lágrimas com histórias de infantes tem em “O Garoto” (Charles Chaplin, 1925), sua matriz mais fecunda. E que, na Itália, Vittorio de Sica realizou “Ladrões de Bicicletas” (1948) e cortou corações. Basta lembrar a cena do menininho que olha o pai, apertando sua mão, quando este sofre a vergonha de ter roubado uma bicicleta (na frente do filho).
No Brasil, Hector Babenco realizou o potente “Pixote, a Lei do Mais Fraco” (1980). Trinta anos antes, no México de Kishi, Luis Buñuel engendrou e dirigiu o notável “Los Olvidados” (1950), no qual uma criança (Alonso Mejía) cometerá pequenos delitos junto com Jaibo (Roberto Cobo), um adolescente malicioso. Registre-se, porém, que Buñuel, el brujo aragonês, é avaro em emoções e, com sua verve corrosiva, leva seus personagens a cumprir destino trágico.
Samuel Kishi sabe muito bem do que está falando em “Los Lobos”. Afinal, quando infante, ele saiu de seu México natal, na companhia da mãe e de um irmãozinho. Só com a roupa do corpo, alguns trocados, brinquedos e um gravador. O trio entrou no país com visto de turista, dizendo que ia visitar a Disneylândia. Sem lugar para ficar, a mãe, que acabara de desfazer seu casamento na capital mexicana, alugou um cômodo e nele passou difícil temporada com os meninos.
“Los Lobos” é uma feliz e delicada soma de ficção, documentário e animação. O cineasta, ajudado por roteiristas parceiros, tomou sua história como ponto de partida e deu asas à imaginação. Lúcia (Martha Reys Arias) cruza a fronteira que separa o México dos EUA e vai parar em Albuquerque, maior cidade do Novo México (um dos 50 estados que compõem o grande país ao norte do Rio Grande). Aluga, de um casal chinês, um cômodo num prédio modesto. E sai em busca de trabalho. Como não tem com quem deixar os meninos, ela registra num gravador os procedimentos que eles devem cumprir no dia-a-dia, trancados no novo “lar”.
Sem o que fazer Max e Leo (os irmãos, na vida real, Maximiliano e Leonardo Nájar Márquez) dão asas à imaginação e inventam histórias. Muitas delas desenhadas nas paredes (e animadas pelo cineasta). Portanto, colocadas em movimento. Assim como Max, que acabará saindo do “esconderijo”, quebrando as regras acordas com a mãe.
Os meninos sujeitam-se às regras maternas, na esperança de, graças ao bom comportamento, visitarem a Disneylândia. Num dos mais tocantes momentos do filme “o sonho se realizará” (a seu modo) com doses de realismo e onirismo. Quem assistir, em sessão dupla, ao iraniano “ Filho e Mãe” e “Los Lobos” deve levar uma bem-sortida caixa de lenços.
A Chorona | La Llorona
Guatemala-França, 96 minutos, 2019
Direção: Jayro Bustamante
Roteiro: Lisandro Sanchez e Jayro Bustamante
Elenco: María Mercedes Coroy, Julio Díaz, Sabrina De La Hoz, Margarita Kenéfic, Ayla-Elea Hurtado
Aranha
Chile, Argentina, Brasil, 105 minutos, 2020
Direção: Andrés Wood
Elenco: Mercedes Morán, Marcelo Alonso, Mario Horton, Felipe Armas, María Valverde, Pedro Fontaine, Gabriel Urzua, Ignacia Uribe e Caio Blat
Prêmio Goya de melhor filme ibero-americano
Los Lobos
México, 95 minutos, 2020
Direção: Samuel Kish Leopo
Roteiro: Sofía Gómez-Córdova, Luis Briones e Samuel Kishi
Elenco: Martha Reys Arias, Maximiliano e Leonardo Nájar Márquez, Cici Lau, Johnson R. Lau, Kevin Medina, Josiah Grado, Marvin Ramírez e Alejandro Bantea
FILMOGRAFIA
Jayro Bustamante (Ciudad de Guatemala – 10 de maio de 1977)
2015 – “Ixcanul”
2019 – “Tremores”
2019 – “La Llorona”
Andrés Wood (Santiago, 14 de setembro de 1965)
1997 – Histórias de Futebol
1999 – “El Desquite”
2001 – “La Fiebre del Loco”
2004 – “Machuca”
2008 – “La Buena Vida”
2011 – “Violeta Foi para o Céu”
2019 – “Aranha”
Samuel Kishi Leopo (México, 5 de dezembro de 1984)
2019 – “Los Lobos”
2021 – “Somos Mari Pepa” (em finalização)