Sérgio Mamberti morre, em São Paulo, aos 82 anos
Por Maria do Rosário Caetano
Sérgio Mamberti, o ator e gestor cultural que morreu na madrugada dessa sexta-feira, 3 de setembro, não recebeu do cinema e da televisão oportunidades similares às que lhe foram ofertadas pelos palcos. No teatro interpretou papéis de protagonista. No audiovisual foi coadjuvante. Mas que coadjuvante! Daqueles que roubava a cena.
Quem não se lembra do solo mambertiano no “Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla, 1968)? Ele entra num taxi (dirigido pelo Bandido/Paulo Vilaça), incorporado em uma “bicha louca”, de óculos, brincos, maquiagem e écharpre de bolas brancas. Língua solta, dana a falar, com sua voz afetada e sem trégua. Impagável. Em seu documentário sobre Plínio Marcos (“Nas Quebradas do Mundaréu”), o ator Júlio Calasso fez questão de citar a sequência inteira. Afinal, Sérgio Mamberti (1939-2021) nasceu em Santos, no litoral paulista, e foi amigo do autor de “Dois Perdidos numa Noite Suja” e de Pagu (Patrícia Galvão). Quando Sganzerla o convidou para o elenco do “Bandido”, ele estava encarnado em Veludo, a personagem homossexual de “Navalha na Carne”, seu verdadeiro laboratório.
Foi na Baixada Santista que Sérgio Mamberti se iniciou no teatro, aos 22 anos. Estudou arte dramática na EAD-USP. Brilharia, pela vida inteira, nos palcos, em espetáculos os mais diversos (de Brecht a Mauro “Pérola” Rasi, mais “Visitando o Senhor Green” etc.). Na TV, dois papéis secundários serviriam de poderosa vitrine para seu talento: o mordono gay (e cinéfilo) Eugênio, em “Vale Tudo!”, de Gilberto Braga, e o Doutor Victor, do “Castelo Rá-Tim-Bum” (seriado da TV Cultura, transformado em filme por um de seus criadores, Cao Hamburger). Houve, ainda, o vilão Dionísio da novela “Flor do Caribe”, de Walter Negrão.
Agora o cinema vai fazer justiça ao grande ator. Evaldo Mocarzel está finalizando longa documental sobre a trajetória de Mamberti, que foi também diretor de teatro, artista plástico e ativista político. Integrou o núcleo de fundadores do PT (Partido dos Trabalhadores) e ocupou a Secretaria da Diversidade, na gestão de Gilberto Gil, no MinC.
Mocarzel lembra o amigo (e personagem) com saudade, tristeza, mas também alegria de ter convivido com ele. “Nos últimos meses, Serginho passou por várias internações hospitalares”. Mesmo assim, “me ligava demonstrando uma incrível garra de viver”. E mais: “Mamberti estava muito feliz com os projetos ligados à trajetória dele: o livro, que foi lançado pelo Sesc (“Sérgio Mamberti – Senhor do meu Tempo”), escrito em parceria com Dirceu Alves Jr., e os dois projetos audiovisuais que estou realizando”.
“O Mamba é um touro!” – lembra o cineasta. “Quem me dava tal garantia era um dos filhos dele, o diretor Fabrício Mamberti”. E “era verdade, ele reagia a mais uma infecção e mais uma vez saía do hospital. Mas agora partiu e ainda não estou processando essa perda, esse constatar que não estará mais conosco. Fica a lembrança de uma convivência maravilhosa”.
Antes do longa documental, Mocarzel realizou série (“Sérgio Mamberti – Memórias de um Ator Brasileiro”) para o SescTV. “Ontem de madrugada estava ouvindo a música original do compositor Marcus Siqueira para o terceiro episódio dessa série. São três programas de 52 minutos (cada). Já estão montados. Só falta o processo de licenciamento de imagens pilotado pelo Antônio Venâncio”.
O diretor da trilogia “À Margem… (da Imagem, do Concreto e do Lixo)” detalha o corpo narrativo dos três episódios: “no primeiro programa, focalizamos o começo da trajetória de Mamberti focados em sua carreira no teatro”. No segundo, “só cinema – as suas marcantes participações em diversos filmes”. No terceiro e último, registramos a ação dele na televisão e na política, mas tudo sempre com foco máximo no grande ator que ele é e jamais deixará de ser”.
“A série” – lembra o realizador – “contará com bastante material de arquivo e, claro, com farta documentação vinda do acervo pessoal da família Mamberti”. O ator teve três filhos (Fabrízio, Carlos e Duda Mamberti, o Benjamin Abrahão de “Baile Perfumado”), que, como ele e o irmão Cláudio Mamberti, dedicaram-se à arte com imensa paixão. A série será “toda calcada nas longas entrevistas que realizei com ele e que foram editadas por meu grande parceiro Willem Dias”, conta Mocarzel.
O longa documental, que ainda não tem nome definitivo, está em fase de montagem. “Dessa vez, o montador é Joaquim Castro” – pontua Mocarzel – “e estamos construindo um road movie composto com sons de viagem de sete horas, que fizemos com Serginho a Santos, sua terra natal, ida e volta”. Através das memórias do ator “estamos descortinando um panorama de seis décadas da cultura brasileira, do começo dos anos 1960 até hoje”.
O documentarista avisa que “a série é um talking head assumido, mas vibrante, graças “à qualidade da palavra desse grande e imenso contador de histórias, dono de memória incrível, embora tenha vivido o desbunde hippie e tomado mais de 63 ácidos. Um fenômeno”.
“Já o longa” – promete – “ tem outro conceito – o ponto de partida é o áudio, o som da viagem a Santos, sua terra natal, a ‘volta para Ítaca’. Estamos construindo uma estrutura narrativa randômica, de trás para frente, com saltos no tempo, tentando imprimir no cinema esse fluxo narrativo com cadência e textura de memória”.
Os admiradores de Mamberti ainda o verão em filme inédito, “O Pastor e o Guerrilheiro”, de José Eduardo Belmonte, narrativa ficcional brasiliense-goiano, produzida por Nilson Rodrigues.
Sérgio Mamberti foi casado por 18 anos com Vivian Benvinda Behar Mehr, com quem teve seus três filhos. Ela morreu aos 37 anos. Em suas memórias editadas em livro pelo Sesc, o ator assumiu sua homossexualidade e falou de seu companheiro por quase 40 anos, Ednaldo Torquato.