Festival de Brasília premia “Saudade do Futuro”

Por Maria do Rosário Caetano

Os troféus Candango aos melhores filmes da quinquagésima-quarta edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o mais antigo do país, foram entregues com mais de quatro horas de atraso. A cerimônia estava prevista para 8 da noite de terça-feira. Só que a bela e elegante estatueta brasiliense começou a ser distribuída apenas nas primeiras horas dessa quarta-feira, 15 de dezembro, na plataforma Innsaei TV. Problemas técnicos foram os “culpados”.

Havia plano B? Não. A imprensa levou castigo de quatro horas. Havia uma lista de premiados que pudesse ser publicada nos jornais e multiplicada nas redes sociais? Também não. Venceu a ideia fixa de defender uma transmissão de 40 minutos, assistida por alguns espectadores insistentes (e resistentes) madrugada adentro. Nunca se viu nada parecido.

E, como sempre, foram anunciados muitos troféus (Brasília já chegou a entregar mais de 70 prêmios numa só noite; dessa vez, foram 46, somando os oficiais e os paralelos). É prêmio demais. Não há quem aguente. E houve, mais uma vez, uma verdadeira reforma agrária de troféus.

O vencedor da noite — o longa documental “Saudade do Futuro”, da carioca Anna Azevedo — só levou o Candango de melhor filme. Nada mais.

O júri — formado com as cineastas Emília Silveira e Viviane Ferreira e o produtor e diretor Marcus Ligocki — arrumou (pelo menos um) prêmio para cada um dos seis concorrentes. E ainda criou menção honrosa. Não se contentou com o já supletivo “melhor filme de temática inclusiva”. O espírito de Madre Tereza de Calcutá (ou de Irmã Dulce) pairou sobre os atos do colegiado.

O segundo filme mais premiado pelo júri oficial foi “Ela e Eu”, de Gustavo Rosa de Moura. Levou atores — Andréa Beltrão e Eduardo Moscovis — muito bons em seus papeis, mas sem concorrência forte, pois a maioria dos filmes, no frigir dos ovos, era documental (ou híbrida). O roteiro escrito pelo diretor, em parceria com Andréa Beltrão e Leonardo Levis, não é dos mais inspirados e consistentes. Embora grandes documentários vivam dos acasos-surpresas da vida (Eduardo Coutinho abominava escrever roteiro prévio para seus documentários), não há como negar que a narrativa de “Lavra” é infinitamente mais consistente que a da ficção gustaviana. Mas o filme mineiro parece não ter batido bem no gosto da trinca julgadora. Uma pena. Era, junto com “Saudade do Futuro”, o que o Festival de Brasília tinha de melhor em sua edição de número 54.

Já a ficção infanto-juvenil baiana “Alice dos Anjos”, de Daniel Leite Almeida, um musical sertanejo, acabou superestimada. Ganhou quatro prêmios do júri oficial (direção, figurino, direção de arte, maquiagem), venceu o júri popular e ganhou o prêmio da Crítica (Abraccine). Que, aliás, foi contaminada pelo distributivismo geral e, com apenas seis longas para analisar, ainda achou por bem dar uma menção honrosa ao longa “De Onde Viemos, para Onde Vamos”. O espírito ONG está tomando conta de tudo. Ou não? A Fipresci (Crítica Internacional) analisa, em festivais mundo a fora, média de 20 filmes, e só escolhe um. Mas o jeitinho brasileiro é pródigo. Cannes, Veneza e Berlim têm premiações compactas. Nossos festivais consomem grandes somas em matéria-prima de seus infindáveis troféus.

“Lavra”, o grande injustiçado da noite, levou apenas fotografia (de Bruno Risas) e uma humilhante menção honrosa para o som (um trabalho brilhante, dissonante, nunca redundante, que acrescenta significativas camadas à sua narrativa).

E, afinal, “Saudade do Futuro” mereceu o Candango de melhor filme?

A resposta, em parte, é sim. “Lavra” tem mais punch, dialoga com maior virulência com nosso trágico momento político, é um filme de invenção. Mas Anna Azevedo também realizou um belo filme. Deu voz a portugueses, cabo-verdianos e brasileiros para que evocassem memórias (saudades) de experiências dolorosas, de ausências, de perdas que nãos cicatrizam.

No melhor momento do filme, três homens conversam sobre os tempos da Guerra Colonial Portuguesa em África. São velhos pescadores. Na década de 1970 do século passado, eram jovens pobres. Tinham que se alistar. Ou no Exército ou nos imensos barcos pesqueiros, que passavam cinco meses em alto mar, em busca de bacalhau. Cinco meses sem ver terra firme, sem ver a família, sem tomar banho. Só pescando a riqueza máxima da culinária (e da economia) portuguesa. Ou seja, ajudando o poder colonial a garantir suas tropas em solo africano, apta a matar rebeldes angolanos, moçambicanos, guineenses e cabo-verdianos.

“Saudade do Futuro” dialoga com a videoarte, mas sempre atento a temas essenciais ao nosso tempo — o colonialismo, a escravidão, a violência urbana, a discriminação. No Brasil, dois jovens slammers (uma moça e um rapaz) falam da poesias das ruas, da criação e orgulham-se de suas peles pretas. Três mulheres — a mãe de Marielle Franco, a mãe de uma criança assassinada e uma ex-presa política — conversam sobre as várias formas de violência do Estado. E o mar, sempre o mar, banha as praias rochosas de Cabo Verde, de Portugal e do Brasil.

Martinho da Vila conversa com o acadêmico Marco Lucchesi, dentro de um barco. Em testemunho epifânico, nos lembra a saudade nos bailes carnavalescos, altas madrugadas. Escande os versos de “Bandeira Branca”, sucesso recorrente: “bandeira branca, amor/ não posso mais/ pela saudade que me invade/ eu peço paz”. E, então, corpos suados buscam o sossego: “saudade, mal de amor, de amor/ saudade, dor que dói demais/ vem, meu amor/ bandeira branca/ eu peço paz”.

No terreno do curta-metragem, Brasília — que esse ano, contrariando sua história aceitou, pela primeira vez, filme que já conquistara o principal prêmio em outra competição — bisou o veredito do júri do Cine Ceará: laureou “Chão de Fábrica”, de Nina Kopka. Com 12 títulos para analisar, mesmo assim, houve distributivismo, mas bem menor que o do júri de longas. Sobrou prêmio até para o curta-videogame “Sayonara”.

Resta torcer para que, em 2022, quando realizará sua edição de número 55, já presencial e de volta ao seu mês histórico — setembro (o festival nasceu primaveril, em 1965) — tudo seja melhor formatado. Que a quantidade dê lugar à qualidade, que a imprensa e o público voltem a participar dos debates (e a fazer perguntas consistentes, não elogios superficiais) aos realizadores e equipes. E que o festival só aceite filmes 100% inéditos (longas e curtas, pois essa é sua natureza: ser primeira vitrine. Se isto não for possível, no terreno dos curtas, que jamais aceite, em qualquer uma de suas mostras, filme já premiado com a láurea máxima de outro certame.

Confira os vencedores:

LONGAS BRASILEIROS

. “Saudade do Futuro”, de Anna Azevedo (RJ) – melhor filme

. “Ana dos Anjos”, de Daniel Leite Almeida (BA) – melhor direção, Juri Popular, Prêmio Abraccine, direção de arte (Luciana Buarque), figurino (Lívia Liu), maquiagem (Cláudia Riston)

. “Ela e Eu”, de Gustavo Rosa de Moura (SP) – melhor atriz (Andréa Beltrão), ator (Eduardo Moscovis), roteiro (Gustavo Rosa de Moura, Leonardo Levis e Andréa Beltrão)

. “De Onde Viemos, para Onde Vamos”, de Rochane Torres (GO) – melhor filme de temática afirmativa, melhor som (Paulo Gonçalves), menção honrosa da Abraccine.

. “Lavra”, de Lucas Bambozzi (MG) – melhor fotografia (Bruno Risas), menção honrosa (som)

. “Acaso”, de Luis Jungmann Girafa (DF) – melhor montagem (Juana Salama)

CURTAS BRASILEIROS

. “Chão de Fábrica”, de Nina Kopko (SP) – melhor filme, direção, atriz (Joana Castro), montagem (Lis Paim), figurino (Gabriella Marra)

. “Da Boca da Noite à Barra do Dia”, de Tiago Dalécio (PE) – melhor ator (Sebastião Pereira), Júri Popular

. “Adão, Eva e o Fruto Proibido”, de R.B. Lima (PB) – melhor roteiro, Prêmio Abraccine

. “Terra Nova”, de Diego Bauer (AM) – Prêmio Cosme Alves Netto de Direitos Humanos, menção honrosa às atrizes Karol Medeiros e Isabela Catão

. “Como Respirar Fora D’Água”, de Victoria Negreiros e Júlia Fávero (SP) – Prêmio Aquisição Canal Brasil, melhor som (Bia Hong)

.“Era Uma Vez…Uma Princesa”, de Lisiane Cohen (RS) – melhor curta de temática afirmativa

. “Cantareira”, de Rodrigo Ribeyro (SP) – melhor fotografia (Dani Drummond)

. “Ocupagem”, deJoel Pizzini (SP) – Prêmio Marco Antônio Guimarães do CPCB (Centro Pesquisadores do Cinema Brasileiro)

. “Sayonara”, de Chris Tex (SP) – melhor maquiagem (Vinne Negrão)

MOSTRA BRASÍLIA

Longa-metragem

. “Acaso”, de Luiz Jungmann Girafa – melhor filme

. “Noctiluzes” – melhor direção (Jimi Figueiredo e Sérgio Sartório), melhor ator (Chico Sant’Anna, André Deca e Vinícius Ferreira)

. “ Advento de Maria”, de Vinícius Machado – Júri Popular, atriz (Maria Eduarda Maia), roteiro (Vinícius Machado), figurino (Tiago Nery), maquiagem (Alzira Bosaipo)

. “Mestre em Cena”, de João Inácio – melhor montagem (João Inácio) – Prêmio São Saruê do jornal Correio Braziliense ao ator Gê Martu

Curta-metragem

. “Benevolentes”, de Thiago Nunes – melhor filme

. “A Casa do Caminho”, de Renan Montenegro – Júri Popular e melhor filme de temática afirmativa

. “Cavalo Marinho”, de Gustavo Serrate – melhor fotografia (Gustavo Serrate)

. “Filhos da Periferia”, de Arthur Gonzaga – melhor direção de arte (Rodrigo Léllis)

. “Ele Tem Saudades”, de Hudson Vasconcelos – melhor som (Hudson Vasconcelos)

. “Vírus”, de Larissa Mauro e Joy Ballard – menção honrosa

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