O Festival do Amor
Por Maria do Rosário Caetano
Os cinéfilos têm razões especiais para assistar ao “O Festival do Amor”, quinquagésimo filme de Woody Allen (certas fontes chegam a 57 títulos), em pré-estreias nos cinemas, a partir dessa quinta-feira, 30 de dezembro, com estreia em 6 de janeiro. Além de ambientar-se no Festival de San Sebastián, no País Basco espanhol, o diretor novaiorquino dialoga com alguns dos mais geniais diretores de cinema do mundo. Começa com Orson Welles e “Cidadão Kane”, parte para Fellini e “8 1/2”, Truffaut e “Jules et Jim”, Buñuel e “O Anjo Exterminador”, e por três Bergman, seu padroeiro: “O Sétimo Selo”, “Morangos Silvestres” e “Persona”. E não se pode esquecer de Jean-Luc Godard e seu “Acossado”. Este filme é lembrado com fragmento legítimo e como referência satírica.
Tudo indica que Woody Allen não tenha Godard em seu altar cinematográfico. Mas seu alterego – em “Rifkin’s Festival” (“O Festival do Amor”) – é um professor de cinema, Mort Rifkin (Wallace Shawn). Um professor universitário que resolve deixar suas aulas para dedicar-se à escritura de um romance. Judeu, intelectual e dono de humor corrosivo, Mort quer produzir ficção à altura de Dostoievski. Nada menos que isso. Mas suas ambições acabam por paralisá-lo. E, para agravar, há o ciúme da bela e elegante esposa, Sue (Gina Gershon), assessora de imprensa de cineastas.
Mort desconfia que Sue anda caída de amores por um dos clientes de seus serviços cinematográficos, o jovem Philippe (Louis Garrel), diretor francês com um quê de pedante. Ainda por cima, com caras e bocas, o latin-lover toca bongô. Além desse trio de atores, há outros nomes europeus de peso no filme: o austríaco Christoph Waltz (“Bastardos Inglórios”) e os espanhóis Elena Anaya (de “Lúcia e o Sexo”), Sergi López (“Uma Relação Pornográfica”) e Enrique Arce (“Casa de Papel”), este na pele de um produtor de cinema, que enche a cabeça de Mort de novas suspeitas e consequentes ciúmes.
Elena Anaya, um torpedo hormonal que trabalhou com Pedro Almódovar no perturbador “A Pele que Habito”, interpreta uma médica, a bela e sofrida Dra. Jo Rojas. Hipocondríaco, o novaiorquino Mort Rifkin irá se consultar com ela. Acabará inventando doenças para estar com a dedicada espanhola, que estudou nos EUA e é uma moça muito culta e aparentemente tranquila. Mas, para desespero do paciente-visitante, perde o controle em brigas telefônicas com o traiçoeiro marido, um pintor de sangue caliente (Sergi López). Uma paixão platônica ligará o marido de Sue à médica de San Sebastián.
“O Festival do Amor” integra a safra de filmes não-novaiorquinos de Wood Allen. Fase que começou quando o cinema-videogame, protagonizado por super-heróis movidos a efeitos especiais, transformou-se na força motriz da indústria norte-americana. Sem financiadores em seu país, o diretor de “Annie Hall” e “Manhattan” partiu para a Europa. Primeiro rumo a Londres, onde realizou “Match Point” (2005), um de seus melhores filmes, “Scoop – O Grande Furo” (2006) e “O Sonho de Cassandra” (2007). No ano seguinte, produtores espanhois bancavam sua nova aventura no velho mundo: “Vicky Cristina Barcelona”, rodado na Catalunha (Barcelona, Avilés e Oviedo). Com Penélope Cruz e Javier Bardem no elenco, o filme fez muito sucesso e despertou interesse de novos financiadores. Em 2011, outro estouro (nos padrões de Woody Allen): “À Meia-Noite em Paris”. Que tal arriscar-se na bela Itália? Lá foi o novaiorquino dirigir “Para Roma, com Amor” (2012). Não repetiu o êxito dos filmes anteriores.
Os espanhois queriam mais. Como Woody Allen curtira o Festival de San Sebastián, que já visitara, e adorara a cidade à beira-mar, topou somar – no novo filme espanhol – cinefilia, turismo, histórias de amor e desamor, questionamentos existenciais e “picadas-alfinetadas” filosóficas. Em alguns momentos do filme, o professor-de-cinema-e-escritor cutuca seus interlocutores, dedicados a filmes sedimentados em boas causas. Seja a crise climática, sejam temas políticos ou afirmações do tipo “a guerra é o inferno”. A ele, o que interessa são as grandes questões (dúvidas) humanas, matéria-prima de seu ídolo, Ingmar Bergman.
“O Festival do Amor” é um filme de encomenda. Não há como negar. Mas que bela encomenda. O resultado deixa o público satisfeito, pois é puro Woody Allen, e os patrocinadores idem (na tela estão impressas todas as belezas turísticas de San Sebastián). A Dra. Rojas se dispõe a levar Mort a um passeio pela cidade. Tudo flui de forma serena, jocosa e em cores arrebatadoras, graças ao talento do diretor e a seu parceiro de tantos filmes, o genial diretor de fotografia, o italiano Vittorio Storaro, parceiro de Bernardo Bertollucci, Carlos Saura e de outros mestres do cinema.
O humor de Woody Allen faz de suas citações metalinguísticas motivo de deleite para cinéfilos. Ver seu protagonista – o ciumento Mort – inserindo-se em sonhos nos filmes que ama (e tanto estudou com seus alunos) resulta em momentos impagáveis. Além dele próprio, Mort faz seu festival de clássicos (todos em preto-e-branco) com personagens que o cercam. Em “Jules et Jim, uma Mulher para Dois”, Sue é Jeanne Moreau, e ele e Louis Garrel ocupam os papeis de Oskar Werner e Henri Serre. Em “Persona, Quando Duas Mulheres Pecam”, Gina Gershon e Elena Anaya discutem temas metafísicos como o fizeram Bibi Andersson e Liv Ullman.
Para não sermos injustos, lembremos que Woody cita, também, “Um Homem e uma Mulher”, de Claude Lelouch, vencedor do Festival de Cannes 66, embalado com trilha sonora influenciada pela Bossa-Nova, pela beleza de Anouk Aimée e o charme de Jean-Louis Trintignant e Pierre Barouh. Em San Sebastián, quando abriu em caráter hors concours o festival deste ano, Allen lembrou o impacto que a obra lelouchiana, premiada também com o Oscar de filme estrangeiro, causou nos EUA.
O Festival do Amor | Rifin’s Festival
Espanha, 88 minutos, 2021
Direção: Woody Allen
Fotografia: Vittorio Storaro
Elenco: Wallace Shawn, Gina Gershon, Louis Garrel, Elena Anaya, Sergí Lopez, Christoph Waltz, Enrique Arce, Georgina Amorós, Andrea Trepat, Steve Guttenberg