É Tudo Verdade celebra o olhar cinéfilo de Mark Cousins

Por Maria do Rosário Caetano

O cinéfilo e cineasta irlandês-escocês Mark Cousins vai inaugurar, em dupla dosagem, a vigésima-sétima edição do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade.

Primeiro, nessa quinta-feira, 31 de março, ele aparecerá, de sua cama, pronto para realizar operação de catarata num dos olhos, e mesmo assim disposto a narrar sua particularíssima “A História do Olhar”. Seu novo filme resulta em ensaio documental de apenas 90 minutos (pouco para o padrões cousinianos) e reflete, com texto aliciante e sedutor, sobre a potência das imagens em nossas vidas.

Cousins, cineasta revelado ao Brasil pelo É Tudo Verdade, mesmo enxergando mal (daí a necessidade da cirugia de catarata) se manterá quieto em seu leito? Que nada, elétrico como ele só, corpo todo tatuado, o irlandês segue vendo filmes e conversando com amigos intelectuais, pela internet. Sobre imagens, claro!

No segundo dia do festival, sexta-feira, 1o de abril, a abertura carioca terá como atração “A História do Cinema: Uma Nova Geração”, recentíssima incursão de Mark Cousins pela odisseia das imagens que sempre o apaixonaram. Esse irlandês do norte, radicado na Escócia e cidadão do mundo, não se cansa. Depois de dedicar 15 horas a uma fascinante série (“A História do Cinema – Uma Odisseia”) com a qual correu mundos em busca de grandes (e pequenos) filmes, ele dedicou-se ao cinema no feminino (“Mulheres Fazem Filmes”). Mais 840 minutos de lembranças visuais, narradas por ele mesmo com frases curtas e banhadas por verdadeiro fervor cinefílico.

O maior mérito de Mark Cousins, além do olhar atento para invenções que costumam passar despercebidas aos olhos leigos, é sua abertura ao mundo. Ele nunca se aferra à sua origem europeia. Nem à sua língua, o inglês. Corre mundos. Vai à Índia, ao Irã, às Áfricas, à China, ao Japão, Rússia, Coreia, Vietnã, Indonésia, Argentina, México…

Para o Brasil, reserva ao menos dois fragmentos. Dessa vez, nesse “A História do Cinema”, dedicado às Novas Gerações (e claro, ao cinema contemporâneo), nosso país se se faz representar pela imagem do ator Matheus Nachtergaele em “Zama”, da argentina Lucrécia Martel. E num de seus malabarismos, Cousins dialoga com o passado, arrumando um jeito de inserir, em sua infinita liberdade narrativa, um trecho de “Limite” (1933), de Mário Peixoto, na sua colagem de achados visuais.

Se há um país que tem espaço nobre no cinema de Mark Cousins, ele se chama Índia. Em “New Generation”, ele abre espaço generoso para Bollywood. Começa destacando “P.K.”, comédia sobre um “E.T. indiano”, muito ingênuo, que chega a um mundo totalmente desconhecido. Tudo parece muito inocente, mas uma explosão mudará o estado das coisas.

Eclético, sem jamais ser superficial, Cousins segue nos revelando fragmentos da poderosa indústria audiovisual indiana. Caso do longa de mafiosos “A Gangue de Wasseypur”. Gangsters bigodudos e de cabelos fartos aprontam das suas. Tramam, matam. Uma arma cai ao chão. Um triciclo passa por cima dela e detona o gatilho. Pum!!!

Os gângsters seguem com suas tramas criminosas. O cineasta-narrador comenta: “Em momento semelhante ao que estamos vendo, Coppola usaria uma ópera para acompanhar a ação. No filme indiano, ouvimos número musical descolado numa boate de Mumbai”. E ficamos expostos-dispostos à desconstrução subversiva do riso.

A série dedicada à New Generation tem “apenas” 180 minutos (um quinto da “Odisseia”), mas discorrerá sobre filmes de ação, terror, documentários, propaganda, temas como família e suas novas configurações, a aceleração e a lentidão (na montagem), corpo e dança. E falar em dança e não falar nos musicais bollywoodianos é cometer heresia. Aí entram os bailados híbridos de Bombaim (Mumbai), protagonizados pelo astro Ranver Singh. Aos 36 anos, ele é um atores mais bem pagos de seu país, pois seus filmes mobilizam multidões. “Ram-leela”, uma espécie de “Amor, Sublime Amor” indiano, levou fãs ao delírio. Seus números de dança foram copiados em todo o imenso país asiático.

O olhar de Mark Cousins vai do cinema de entretenimento, do filme-espetáculo, acelerado e barulhento como máquina de pinball, para o filme lento e reflexivo (ou sensorial) de Pedro Costa, Apichatpong Weerasethakul, Bo Hu, Lav Diaz, Tsai-Ming Liang ou Kelly Richards.

O realizador-narrador evoca – ao falar de “Gravidade”, do mexicano Alfonso Cuarón – título da pátria adotiva de Luis Buñuel escondido nas prateleiras do tempo – “La Fórmula Secreta” (Rubén Gámez, 1964). Quando entra nas searas do documentário, abre espaço nobre para “O Botão de Pérola”, de Patricio Guzmán. Lembra a capacidade do chileno para, ao somar pistas que nos levam do documentário científico às sendas do filme de arte, acabar “ampliando o escopo” do filme não-ficcional.

No campo do documentário, há, também, espaço nobre para duas incursões do britânico Joshua Oppenheimer, de 46 anos, autor de “The Act of Killing” (2013), e “The Look of Silence” (2016). Estes filmes, realizados na Indonésia, nos mostram a potência reveladora do cinema documental.

O realizador, auxiliado por ajudantes (que preferiram o anonimato, em nome da própria sobrevivência), entrevista pessoas que cometeram assassinatos bárbaros. Um deles permanece em silêncio, ao lado da filha. A jovem fica sabendo que o pai não só matou indonésios acusados de “serem comunistas”, como bebeu o sangue deles. Ela diz desconhecer tal fato. Depois comenta que, talvez, por ter bebido o sangue do inimigo, “o pai seja tão forte”.

Noutro momento, um outro homem, que matou vários “comunistas” estrangulando-os com fios de nylon, reencena para a câmera, seu modus operandi. Quando assiste ao resultado da filmagem, ele, cabelos grisalhos, analisa o que vê. Detecta dois “defeitos” na reencenação: não devia ter usado calça branca, pois “nestas ocasiões (dos assassinatos) eu usava roupas escuras”. E mais: “seria melhor se tivesse pintado meus cabelos de preto!”.

Quando Mark Cousins fala do “corpo” e suas novas configurações em nossos tempos, registra um dos mais belos, senão o mais belo momento de “Uma Mulher Fantástica”, de Sebastián Lélio. Um vento forte quase verga o corpo trans da protagonista (a cantora lírica Daniela Vega), a paisagem encontra-se em transe.

Depois de definir o YouTube como “uma Cinemateca esfarrapada”, o cineasta-cinéfilo segue seus caminhos passando por “Holly Motors”, de Leos Carax, “Ten”, de seu amado Kiarostami (a quem já dedicou um média-metragem), pelas cores vibrantes de “Tangerine”, feito com uma câmera de celular, pelas invenções godardianas em “Adeus à Linguagem”, para chegar a filmes como “Eu Não me Importo se Entrarmos para a História Como Bárbaros”, do romeno Radu Jude, “Nós” (Us), do estadunidense Jordan Peele, “Tlamess”, do tunisiano Alaeddine Slim, “Atlantique”, da afro-francesa Mati Diop, “Border”, do sueco Ali Abbasi, “A Despedida”, de Lulu Wang, e os imprescindíveis “Assunto de Família”, de Kore-eda, “Parasita”, de Bong Joon-ho, e “Lazzaro Felice”, de Alba Rohrwacher. Uma viagem irresistível.

 

XXVII Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade
Data:
31 de março a 10 de abril
Com sessões presenciais e também on-line, em São Paulo e Rio
Brasileiros de todo o país poderão acompanhar a programação quase na íntegra (desde que o acesso não ultrapasse o número de visionamentos autorizado pelos produtores, que vão de 500 a 2000). A sessão inaugural paulistana acontecerá apenas para convidados, no Espaço Itaú da Augusta, nessa quinta-feira, 31 de março, com exibição de “A História do Olhar”, do irlandês Mark Cousins. No Rio (Espaço Itaú Botafogo), nesta sexta, primeiro de abril, será mostrado, também para convidados, “A História do Cinema: Uma Nova Geração”, do mesmo Cousins. Estes filmes serão disponibilizados ao público (de todo território brasileiro), por 24 horas, na plataforma É Tudo Verdade Play, com o limite de 1500 vis ionamentos.

FILMOGRAFIA
Mark Cousins (Irlanda do Norte, 3 de maio de 1965), cineasta, produtor, pesquisador e cinéfilo irlandês radicado em Edimburgo, na Escócia. Autor de 53 filmes (de curta, média, longa e longuíssima duração), seja como diretor associado, codiretor, produtor, narrador, roteirista ou diretor solo, feitos para cinema, mas, majoritariamente para emissoras de TV. Abaixo, alguns destaques de sua trajetória:

2009 – “The First Movie” (81 minutos)
2011 – “A História do Cinema – Uma Odisseia” (The Story of Filme: An Odyssey, 930 minutos)
2013 – “A Story of Children and Film” (101 minutos)
2015 – “I am Belfast” (86 minutos)
2017 – “The Eyes of Orson Welles” (110 minutos)
2019 – “Mulheres Fazem Filmes” (Women Make Film: A New Road Movie Trough Cinema, 840 minutos)
2021 – “A História do Olhar” (The Story of Looking, 90 minutos)
2021 – “A História do Cinema: Uma Nova Geração” (The Story of Film: A New Generation, 180 minutos)

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