Com “A Rainha Diaba”, Milton Gonçalves fez o que nenhum ator branco fizera: ganhou quatro prêmios
Por Maria do Rosário Caetano
Ele foi o maior astro black da história do cinema brasileiro. Conseguiu o que nenhum ator branco de seu tempo – e mesmo depois – conseguiu: somar, num só ano, os quatro prêmios cinematográficos mais prestigiados do país – o Troféu Candango, do Festival de Brasília, o Air France, a Coruja de Ouro e o Governador do Estado. Isto aconteceu com o ator Milton Gonçalves, que morreu nessa segunda-feira, 30 de maio, de complicações de um AVC (acidente cardiovascular cerebral) que o acometera em 2020. Tinha 88 anos e um passado de dificuldades, lutas e glórias.
O papel que valeu ao intérprete mineiro, revelado pelo Teatro de Arena, os quatro troféus era dos mais controvertidos: a Rainha Diaba, travesti violenta, traficante de drogas, dona de bocas de fumo da Lapa carioca. Uma criação do “maldito” Plínio Marcos (1935-1999), que a “inventara” a pedido do cineasta Antônio Carlos da Fontoura, hoje com 82 anos. O dramaturgo-roteirista e o diretor do thriller-pop-gay “A Rainha Diaba” sempre juravam tratar-se de personagem ficctícia. Mas as más (e sábias) línguas têm certeza de que sua matriz foi a “diaba” pernambucano-carioca Madame Satã, que reinou na mesma Lapa carioca.
Quando o filme teve sua première no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 1975, o impacto foi impressionante. O trabalho de Milton arrebatou o público, que o aplaudiu de pé. O reconhecimento veio, também, dos críticos e jornalistas. Todos diziam que não havia concorrente para derrotar a Diaba.
O filme de Fontoura disputou prêmio a prêmio com “Guerra Conjugal”, que Joaquim Pedro de Andrade recriara a partir de contos de Dalton Trevisan. Injustiçado em 1969, no mesmo Festival de Brasília, com o tropicalista “Macunaíma” (que perdera para “Memória de Helena”, de David Neves), Andrade levava a melhor seis anos depois. Mas Milton arrebatava, por unanimidade, seu Candango.
Em depoimento ao livro-álbum “40 Anos do Festival de Brasília”, o ator me contou que foi duro aceitar o papel da Diaba. Tinha filhos em idade escolar e temia, naqueles meados dos anos 1970, em plena ditadura militar, interpretar uma “bicha louca” (como se dizia naqueles tempos incorretos), traficante de drogas, violenta, cercada de uma corte de travestis e apaixonada por Bereco (o jovem interpretado por Stepan Nercessian). Temia que os filhos – negros como ele – fossem ainda mais segregados na escola. Mesmo que ele fosse um ator de primeiro time na Rede Globo. Sentou-se com a esposa e os filhos, explicou as características do papel e todos os apoiaram. Entregou-se, então, de corpo e alma, à personagem, e foi regiamente recompensado.
O longa fez sucesso significativo (500 mil espectadores) e transformou-se num verdadeiro cult movie, até hoje celebrado. Embora, haja quem o rejeite por mostrar imagem de personagens homoafetivos circunscritos à violência e ao submundo do crime.
Milton Gonçalves nasceu numa família pobre, numa pequenina cidade mineira, Monte Santo, em 1933. Mudou-se para São Paulo com os pais e irmãos, ainda na infância. Exerceu ofícios humildes (ajudante de farmácia, aprendiz de alfaiate, trabalhador em fábrica de doce, vendedor de livro). Um dia foi parar no Teatro de Arena. Esperto e despachado, disse que conseguia fazer o que os atores faziam. Como o Arena buscava o homem brasileiro em suas representações, agregou o jovem black a seus elencos. Ele tornou-se parceiro dos jovens Gianfrancesco Guarnieri, Flávio Migliaccio, Vera Gertel, Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, Lima Duarte, Myriam Mehler, entre outros. Estreou no cinema no cativante “O Grande Momento”, de Roberto Santos (1958), protagonizado por Guarnieri e Myriam Pérsia.
Mudou-se para o Rio, ligou-se ao pessoal do CPC-UNE (Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes) e ao grupo do Cinema Novo. Foi parar, algum tempo depois, nos elencos das novelas da Rede Globo, em especial nas de Dias Gomes. Brilhou em “O Bem Amado”, como o místico Zelão das Asas, que sonhava voar. Fez um médico, o Dr. Percival, em “Pecado Capital”, e o Pai José, em “Sinhá Moça”. Atuou em “Roque Santeiro” e “Agosto”. Ao todo, esteve no elenco de 40 novelas, séries e especiais.
Fez mais de 60 filmes. Além da “Diaba”, seu maior papel, brilhou em “O Anjo Nasceu”, de Júlio Bressane, em dupla com Hugo Carvana (Santamaria e Urtiga, dois marginais nada convencionais), arrasou no “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade (como Jiguê, um dos irmãos do Macunaíma preto, Grande Otelo, ao lado de Manaape, Rodolfo Arena), no excessivo, mas inventivo, “Ladrões de Cinema”, de Fernando Côni Campos, em “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, de Hector Babenco, “O Rei do Rio”, de Fábio Barreto (seu “Zé Pelintra” lhe rendeu o prêmio de melhor coadjuvante no Rio Cine Festival), “Natal da Portela”, de Paulo Cezar Saraceni, e fez o operário Bráulio, de “Eles Não Usam Black-Tie”, de Leon Hirszman.
Por ser negro, dá para contar nos dedos de uma mão o número de protagonistas que lhe coube interpretar (em 60 filmes). Nunca protagonizou uma novela. Mas seu talento era imenso. Voltou ao teatro, sua escola iniciadora. Dirigiu trabalhos na TV (novelas, séries e episódios de “Carga Pesada”). E meteu-se com política, militando no PMDB. Gostava de fazer discursos. Longos, muitos longos. Se era econômico em suas interpretações, na hora de falar, desconhecia limites, cultivava a retórica. Se ele e Antônio Pitanga pegassem, juntos, dois microfones, a plateia podia preparar o ouvido e buscar almofadas. Era discurso para mais de metro. Mas ninguém, mesmo assim, resistia ao charme dos dois. Pitanga segue firme entre nós, aos 82 anos.