Sylvie Pierre revela bastidores do triunfo do “Pagador” em Cannes
Por Maria do Rosário Caetano
A Palma de Ouro atribuída, em Cannes, ao filme brasileiro “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, há exatos 60 anos, continua motivando animadas discussões. Muitas delas baseadas em depoimentos de desafetos (ou afetos incondicionais) do diretor paulista.
A Revista de CINEMA, que publicou texto sobre debate promovido pela Apaci (Associação Paulista de Cineastas), realizado no Cine Satyros-Bijou, para festejar os 60 anos da conquista de nossa única Palma de Ouro, recebeu da pesquisadora e crítica de cinema francesa Sylvie Pierre Ulmann detalhadas explicações sobre o assunto, que ela acompanhou de perto.
Autora de livro sobre Glauber Rocha (Coleção Cahiers du Cinéma), ex-integrante da equipe desta revista fundada por André Bazin e da equipe-criadora da Trafic, outra publicação cinematográfica francesa, Sylvie Pierre fala português fluente, morou no Brasil e mantém relações profundas com nossa cinematografia, cineastas e atores, em especial com a geração do Cinema Novo. Mas não só.
O testemunho da crítica francesa fundamenta-se em sua convivência com dois personagens importantes na história que circunda a premiação de “O Pagador de Promessas” (em francês, “La Parole Donnée” – A Palavra Dada”) – François Truffaut e David Neves.
O parisiense Truffaut (1932-1984), diretor de “Os Incompreendidos”, “Beijos Proibidos”, “A História de Adele H.” e “A Mulher do Lado”, integrou o júri de Cannes 1962, o ano em que o filme de Anselmo Duarte, baseado em peça teatral de Dias Gomes, conquistou a Palma de Ouro.
O carioca David Neves (1938-1994), crítico de cinema e depois realizador (“Memória de Helena”, “Fulaninha”, “Muito Prazer”, “Jardim de Alah”), amava a Nouvelle Vague e foi uma espécie de “líder afetivo-emotivo” do Cinema Novo, tantas fez para ajudar a difundir o movimento liderado por Glauber Rocha.
Sylvie Pierre inicia sua análise da premiação de “O Pagador de Promessas” evocando Truffaut, depois de lembrar que são “justíssimas as homenagens prestadas, no Brasil, ao filme de Anselmo Duarte”, por suas muitas qualidades.
“Começo lembrando que integrava o júri de Cannes um participante decisivo, que não era qualquer um e se chamava François Truffaut. Ele vinha do grande sucesso de ‘Les 400 Coups” (“Os Incompreendidos”), de 1959. Era crítico de cinema (no semanal Arts e, naturalmente, nos Cahiers du Cinéma), já conhecidíssimo pela crítica feroz e a lucidez aguda que sabia praticar, fosse escrita ou oral”.
Sylvie Pierre prossegue em sua análise do perfil de Truffaut: “Ele era charmosíssimo, sempre muito convincente e capaz de provocar adesão a seus pontos de vista. Posso garantir isso pessoalmente já que fui amiga pessoal do Truffaut pelo link fortíssimo da família Cahiers”. Então: “Aconteceu, como às vezes acontecia, durante as deliberações do júri, uma tremenda briga, um impasse total sobre a grande premiação da Palme d’Or. Parte dos jurados queria apoiar “O Eclipse”, do Antonioni, e parte “Le Procès de Jeanne d’Arc”, do Bresson, duas incontestáveis obras-primas. E havia outros grandes filmes na Seleção Oficial, naquele momento mundialmente brilhante do cinema: ‘Devi’, do Satyajit Ray (genial), ‘L’Ange Exterminateur’, do Buñuel… e outros grandes. Os debates então não acabavam. E foi aí que a intervenção do Truffaut se mostrou genial”. “Primeiro” – lembra Sylvie Pierre – “Truffaut havia, sinceramente, gostado muito do filme do Anselmo”. Segundo, “por ter viajado pouco antes para o Brasil, ele tinha sido colocado em relação de cumplicidade e amizade, solidariedade profunda, entre cineastas do já apelidado Cinema Novo e aqueles da já chamada Nouvelle Vague. O Godard também tinha feito a viagem. E havia, entre os dois, a amizade interposta e importante do amigo italiano essencial Gianni Amico. Truffaut e outros já sabiam, na França, do dever, do prazer, da importância estético-político-civilizacional do Brasil. E alguns – inteligentes como os jesuítas na Itália – já sabiam que cinema era linguagem civilizatória e política. Então, o Truffaut, querendo dar força aos companheiros do cinema brasileiro, encontrou maravilhosa oportunidade de cumprir essa, digamos, promessa!”
“Naquele momento tão importante, naquela interminável reunião do júri” – avalia Sylvie Pierre –, “Truffaut utilizou o poder de fala inteligente que lhe foi possibilitada (ou da qual ele mesmo soube se apossar com o talento e brilho costumeiros) e propôs a solução. Que, aliás, resultou em ‘belo compromisso’: premiação para Bresson e Antonioni, que ganharam ex-aequo Prêmio Especial do Júri. E a Palma de Ouro para o filme brasileiro. Truffaut, sinceramente, pensou que ‘O Pagador de Promessas’ era Cinema Novo. O que pode ser plenamente entendido do ponto de vista europeu… aliás, a paisagem física e espiritual baiana, e o genial Pitanga… não é?”.
A biógrafa francesa de Glauber Rocha prossegue em sua narrativa vivenciada dos fatos: “François Truffaut, então, depois da longa e difícil reunião do júri de Cannes e de seu veredito em favor de “O Pagador de Promessas”, escreveu para David Neves (na época não havia SMS, nem e-mail, nem WhatsApp): “j’espère que vous êtes heureux pour votre ami Anselmo Duarte”.
“Naturalmente” – testemunha – “essas informações me foram dadas pessoalmente pelo próprio David Neves. Mas conhecendo e respeitando o David como eu o conheci e respeitei, não tenho absolutamente nenhum motivo de duvidar da palavra dele. O David nunca foi um mentiroso, nem um vaidoso, nem um narcisista fofoqueiro”.
E mais: “o fato de ‘O Pagador de Promessas’ ter sido apoiado em Cannes por um amigo do Brasil (Truffaut), não está diminuindo em nada, e para sempre, o talento e a beleza do filme do Anselmo Duarte. E que fique registrado: “o próprio David Neves, gente fina da diplomacia cinemanovista, ‘o Cônsul’ como era chamado, foi o primeiro a reconhecer que essa Palma de Ouro inédita para um filme brasileiro desempenhou papel importantíssimo ao abrir caminho de sucesso ao cinema do Brasil na Europa ao longo da década de 1960”.
Dois anos depois, em 1964, o Brasil teria dois filmes na disputa da Palma de Outro: “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos, e “Deus e o Diabo na Terra o Sol”, de Glauber Rocha. Mas aí os ventos penderiam para a prata-da-casa, o musical “Os Guarda-Chuvas do Amor”, de Jacques Demy, com Catherine Deneuve. E nos 60 anos seguintes, não ganharíamos nenhuma Palme d’Or.