Cine Bijou festeja 60 anos da Palma de Ouro do “O Pagador de Promessas”

Por Maria do Rosário Caetano

Há exatos 60 anos, Anselmo Duarte conquistava, em Cannes, a única Palma de Ouro atribuída a um filme brasileiro eleito o melhor da competição internacional. O escolhido foi “O Pagador de Promessas”, adaptação de peça teatral de mesmo nome, escrita pelo baiano Dias Gomes, e protagonizada por Leonardo Villar, o devoto Zé do Burro. Homem humilde, ele prometera à católica Santa Bárbara, num terreiro de candomblé, que, se ela salvasse seu burro de estimação, carregaria uma cruz nas costas, de seu sítio, distante 42 km de Salvador, e a depositaria em templo cristão. Só não esperava contar com a intransigência do Padre Olavo (Dionísio Azevedo).

Para celebrar os 60 anos da solitária Palma de Ouro de Anselmo Duarte (1920-2009), a Apaci (Associação Paulista de Cineastas) uniu-se a Aníbal Massaini, herdeiro do produtor do filme, Oswaldo Massaini (1919-1994), da Cinedistri, para programa triplo. Nesta segunda-feira, 23 de maio, a partir das 19h30, no Cine Satyros Bijou, será exibido o documentário “Oswaldo Massaini: Uma Paixão pelo Cinema”, de Aníbal, com 50 minutos de duração. Em seguida, será apresentado “O Pagador de Promessas”, o palmarés cannoise, na plenitude de seus 92 minutos. Para fechar a noite festiva, haverá debate com o ator Antônio Pitanga, líder capoeirista disposto a ajudar Zé do Burro a cumprir sua promessa, ao lado de Aníbal Massaini, Débora Ivanov, do Siaesp (Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de São Paulo), e Daniel Santiago, da Apaci. O filme será exibido, também, pelo Canal Brasil (20h20).

A história do triunfo do segundo longa-metragem de Anselmo Duarte, outrora galã das chanchadas da Atlântida e dos melodramas da Vera Cruz, foi atribulada. Ele dirigira apenas um longa, a comédia “Absolutamente Certo” (1957). Era bonito como ele só, um conquistador. Nada tinha a ver com os politizados rapazes cinemanovistas, que gravitavam em torno de Nelson Pereira dos Santos, diretor de dramas sociais como “Rio 40 Graus” e “Rio Zona Norte”. Nem com documentários como “Arraial do Cabo”, de Paulo Cezar Saraceni e Mário Carneiro, nem “Aruanda”, de Linduarte Noronha, fotografado por Rucker Vieira. De Moçambique, com passagem por Paris e pelo IDHEC (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos), chegara ao Brasil Ruy Guerra, impregnado pelas ideias da Nouvelle Vague. E politizadíssimo. Aqui realizara um filme moderníssimo: “Os Cafajestes”. Desejava mostrá-lo no festival francês. No elenco, Norma Bengell, em nu frontal, o mais atrevido de nossa história cinematográfica. Ela estava também no filme de Anselmo, no papel de tentadora prostituta. Pois o galã da chanchada e da Vera Cruz levou a melhor. Seu “O Pagador de Promessas” foi o escolhido para a competição de Cannes.

Claro que a turma que carregava a divisa “uma câmara na mão e uma ideia na cabeça” não gostou da decisão da comissão brasileira. Em Cannes, a parada seria dura para Anselmo. Havia 35 filmes na competição. Entre eles, dois pesos-pesados: “O Eclipse”, da trilogia da incomunicabilidade, de Michelangelo Antonioni, e “O Anjo Exterminador”, de Luis Buñuel. E mais: “O Processo de Joana D’ Arc”, de Robert Bresson, “Elektra, a Vingadora”, do grego Michael Cacoyannis, “Divórcio à Italiana”, de Pietro Germi, “Tempestade sobre Washington”, de Otto Preminger, “Longa Jornada Noite à Dentro”, de Sidney Lumet, e “O Anjo da Violência”, de John Frankenheimer (os três dos EUA), e “Um Gosto de Mel”, do britânico Tony Richardson.

Antônio Pitanga em cena do filme

Na hora da escolha final, o filme brasileiro, com seu elenco (então) desconhecido (além de Leonardo Villar, Glória Menezes, Norma Bengell, Geraldo del Rey, Dionísio Azevedo, Othon Bastos, Antônio Pitanga) e seu diretor, idem, triunfou. A fofoca correu solta. Anselmo Duarte disse a esta repórter que “a turma do Glauber Rocha inventou que (ele) seduzira a secretária do Júri, para que ela convencesse os jurados a votar no filme dele”. Ou que, segundo comentava o cineasta David Neves, “François Truffaut, um dos jurados, passara pelo Brasil e conhecera o pessoal do Cinema Novo. Pensara, então, que ‘O Pagador de Promessas’ era um filme cinemanovista”.

Em 1964, Glauber Rocha lançaria “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” (Editora Civilização Brasileira), livro seminal e verdadeiro divisor de águas, e deixaria claro: nem “O Pagador de Promessas”, nem “Assalto ao Trem Pagador”, este de Roberto Farias, era filme cinemanovista. Nenhum deles comungava com as rupturas programadas pelo movimento, do qual o diretor de “Barravento” e do novíssimo “Deus e o Diabo na Terra do Sol” era o arauto. O primeiro tinha como fotógrafo o inglês Chick Fowle, técnico de tradição inglesa, trazido pela Vera Cruz, escola “industrial” que o Cinema Novo abominava. E o drama policial de Roberto Farias, mesmo coescrito e coproduzido por Luiz Carlos Barreto, dialogava com o cinema de gênero norte-americano. O jovem Glauber e seus colegas queriam descolonizar o cinema. Subvertê-lo.

O tempo cicatrizou muitas feridas. Mas Anselmo Duarte morreu amargurado e de mal com o Cinema Novo. Ou com os que um dia integraram seu núcleo duro. Em especial com Glauber Rocha (1939-1981), que morrera três décadas antes dele.

Em 1964, o próprio Anselmo resolvera radicalizar. Realizou “Vereda da Salvação”, adaptação de peça teatral de Jorge de Andrade, e convidou para fotografá-la o moderníssimo Ricardo Aronovich, argentino que ajudara a renovar o cinema em seu país e no Brasil filmava com Ruy Guerra (“Os Fuzis”), Luiz Sérgio Person (“São Paulo S.A.”) e Leon Hirszman (“Garota de Ipanema”). O filme verediano não aconteceu. Cinco anos depois, Anselmo faria um nordestern, “Quelé do Pajeú”, com Tarcísio Meira, também de resultado modesto. Namoraria as comédias eróticas em episódios, com “O Impossível Acontece” (“O Reimplante”), assinaria “O Descarte”, filme descartável para quem ganhara uma Palma de Ouro, e voltaria à comédia erótica em episódios “Já Não se Faz Amor como Antigamente” (“Oh! Dúvida Cruel!), e “Ninguém Segura essas Mulheres” (“Marido que Volta Deve Avisar”). Em 1977, tentou um filme sério, “O Crime do Zé Bigorna”, com Lima Duarte. Foi ao Festival de Brasília e teve desempenho modesto. Encerrou sua carreira como diretor com “Os Trombadinhas” (1978). Não dirigiria nenhum filme ao longo de seus 21 derradeiros anos de vida. Consumiu-os com alguns papéis como ator e muito rancor.

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