Festa do Cinema Italiano homenageia Pasolini e Ennio Morricone
Por Maria do Rosário Caetano
A 8 ½ Festa do Cinema Italiano realiza sua nona edição com os olhos voltados a quatro legendas da arte peninsular – o centenário Pier-Paolo Pasolini, o recém-falecido maestro Ennio Morricone, o renascentista Leonardo da Vinci e o pré-barroco Tintoretto. O festival, que volta a ser presencial depois de duas edições on-line, acontecerá em 19 cidades brasileiras, sendo Campinas, Santos e Maringá as estreantes.
Nesta quarta-feira, 27 de julho, haverá sessão especial para convidados do filme “Laços”, de Daniele Luchetti, com elenco de famosos (Alba Rohrwacher, Luigi Lo Cascio e Laura Morante). A partir da quinta-feira, 28 (e até três de agosto), capitais, como São Paulo, Rio, BH, Brasília, Salvador e Porto Alegre, assistirão aos filmes selecionados. Depois, de quatro a 10, será a vez de Recife, Vitória, Salvador, Fortaleza, Natal, Belém, Curitiba, Florianópolis, Goiânia, Maringá, Santos e Campinas. Muitos dos 12 filmes programados são inéditos ou foram exibidos apenas em festivais.
A mais fina iguaria do banquete italiano é “Ennio, o Maestro”, de Giuseppe Tornatore, documentário de 2h30 de duração. Não que o diretor de “Cinema Paradiso” tenha feito um filme à altura do genial compositor e trilheiro, artista de vanguarda (no Grupo de Improviso Nuova Consonanza) e, ao mesmo tempo, capaz de agradar aos amantes do western spaghetti e fãs de melodramas. E, ainda, a fruidores de iguarias requintadas de Bertolucci, Bellocchio, Pasolini e Gillo Pontecorvo.
Tornatore enfiou na cabeça que tinha que contar a vida inteira do compositor, ouvir todos (ou quase todos) os diretores com quem ele trabalhou (Ennio morreu com 91 anos e chegou em, determinado ano, a assinar a trilha de 18, sim dezoito!, longas-metragens). Como dizia Nelson Rodrigues, ele trabalhava mais que remador de Ben-Hur. Em pepluns, em westerns, em filmes de amor, em obras de arte e filmes experimentais-cabeçudos. E ainda dirigia a área de arranjos da RCA italiana.
O “cabeças-falantes” de Tornatore não deixa o espectador respirar, nem refletir. Nem permite que seus entrevistados falem mais que uma ou duas frases. A montagem é toda picotada. Mesmo assim dá para saber muito sobre o maestro, tímido e modesto, que foi casado a vida inteira com a mesma mulher, que trabalhava como um louco, que recebia prêmios com alegria humilde, que agradeceu seu Oscar honorário em italiano, e o segundo (e tardio) com igual alegria e modéstia, que assinou 500 (quinhentas, gente!) trilhas sonoras. Que tinha vergonha das camadas sonoras criadas para os western spaghetti (os assinara com pseudônimo temendo que o maestro erudito, que o educara, descobrisse as “aprontações popularescas” do talentoso discípulo). Trilhas que hoje encantam o mundo e fizeram de Quincy Jones, Bruce Springsteen, John Williams, Clint Eastwood e Tarantino (este, fã desabrido) admiradores fidelíssimos. Sem falar nos patrícios Nicola Piovani, Bertolucci, Bellocchio, Argento, Leone, Liliana Cavani e a desbocada Lina Wertmuller. E o chinês Wong Kar Wai, um dos produtores e distribuidor de “Ennio, o Maestro”.
Como 2022 é o ano do centenário de nascimento de Pasolini, a Festa do Cinema Italiano escolheu “Mamma Roma” para homenageá-lo. Trata-se do segundo longa do jovem romancista, que até então chamava atenção como roteirista de obras importantes como “Noites de Cabíria” (Fellini), “A Longa Noite de Loucuras” e “Belo Antônio” (Mauro Bolognini). O ficcionista e poeta estreara com um drama realista de grande impacto, “Accatone” (Desajuste Social, 1961), protagonizado por Franco Citti. No ano seguinte, colocou Citti na pele do cafetão que explorava uma prostituta de meia-idade, a Mamma Roma (Anna Magnani), cujo maior sonho era mudar de extrato social para poder voltar a viver com o filho adolescente, Ettore (Ettore Garfolo). Ela não media esforços para proporcionar vida melhor ao jovem, mas ele não queria saber de estudar ou trabalhar. Preferia viver na rua com amigos arruaceiros. Quando o passado de Mamma volta a atormentá-la, ela perceberá que recomeçar é muito difícil.
O documentário dramatizado “Eu, Leonardo”, de Jesus Garces Lambert, traz novas luzes sobre a vida e obra do grande gênio das artes, da ciência e do pensamento ocidental, Leonardo Da Vinci. Interpretado por Luca Argentero, o filme causa, de início, certo estranhamento no espectador. Depois, ao longo de 90 minutos, mostra a complexidade da vida do artista, que foi renegado pelo pai, preso “por sodomia” na juventude, viveu com um jovem modelo (Salaí) de grande beleza e conduta transgressora. A narrativa tenta captar o que se passa na mente do artista-cientista-pensador, um lugar vasto e abstrato, que não obedece a prazos estabelecidos por mecenas e políticos de espírito muito prático e objetivos de curto prazo. O filme, realizado em 2019 para marcar os 500 anos da morte de Da Vinci, conta, também, com participação de Angela Fontana e Massimo De Lorenzo. “Tintoretto – Um Rebelde em Veneza”, de Giuseppe Domingo Romano, é um sofisticado documentário de 96 minutos, que celebrou, quatro anos atrás, os 500 anos de nascimento do artista veneziano, que encantou Jean-Paul Sartre (o filósofo francês dedicou a ele um famoso ensaio, “O Sequestrado de Veneza”), David de Bowie e Peter Greenaway, que inclusive tem importante participação na narrativa. Aliás, feita em inglês, pela atriz Helena Bonham Carter. Se Da Vinci consumia dez anos planejando uma estátua equestre e dedicou-se pela vida inteira ao pensamento e à reflexão, Tintoretto era, se comparado a ele, um punk-rock, um “doidão”. Trabalhava com imensa velocidade, atravessava na frente de colegas, aceitava trabalhos por preços nada ortodoxos, inflava rivalidades com contemporâneos como Ticiano e Veronese.
Ele amava sua Veneza natal com tamanha paixão, que nem a peste negra o fez abandoná-la. O mal atingiu barbaramente a cidade dos mercadores, banhada de fartas e insalubres águas. Ao invés de fugir, ele a transformou em fonte de inspiração. Lá nasceu (1518), viveu, trabalhou e morreu (1594). Redescobrimos Veneza, neste belo documentário, por meio da vida e das telas de Tintoretto.
Outras atrações da Festa italiana:
. “Leonora, Adeus”, de Paolo Taviani (Leonora Addio, Itália, 2022, 90’) – Drama com Fabrizio Ferracane, Matteo Pittiruti, Dania Marino e Dora Becker – Após permanecer por décadas em um grande cemitério, as cinzas do escritor Luigi Pirandello são, enfim, transferidas para o pequeno vilarejo onde nascera, conforme os desejos da família e do artista. No entanto, a transferência dos restos mortais é marcada por inúmeros acontecimentos surreais – alguns deles baseados nas próprias ficções do autor. O mais recente filme de Paolo Taviani, dedicado ao irmão Vittorio, concorreu ao Urso de Ouro, em Berlim 2022, e foi premiado pela crítica internacional (Fipresci).
. “Il Buco”, de Michelangelo Frammartino (Itália, 2021, 93′) – Drama, com Paolo Cossi, Jacopo Elia, Denise Trombin – Durante o boom econômico da década de 1960, o edifício mais alto da Europa está sendo construído no próspero norte da Itália. Do outro lado do país, jovens espeleólogos exploram a caverna mais profunda da Europa no intocado interior da Calábria. O fundo do Abismo Bifurto, 700 metros abaixo da Terra, é alcançado pela primeira vez. A aventura dos intrusos passa despercebida pelos habitantes de pequena aldeia vizinha, mas não pelo velho pastor do planalto de Pollino, cuja vida solitária começa a se entrelaçar com a jornada do grupo. Este novo filme de Frammartino, laureado com Prêmio Especial do Júri no 78º Festival de Veneza, é uma meditação sobre a curiosidade de se compreender as profundezas do mundo natural. Frammartino, diretor “As Quatro Voltas”, devolve a tridimensionalidade à tela, deixando que a própria natureza e a humanidade se revelem de acordo com os seus ritmos, e que sejam os seus sons e não os diálogos que falem.
. “O Rei do Riso” (Qui Rido Io – Itália/Espanha, 2021, 133’), de Mario Martone. Comédia com Toni Servillo, Maria Nazionale, Cristiana Dell’Anna – História de Eduardo Scarpetta, uma lenda da comédia italiana. Tudo muda na vida do humorista quando ele encena paródia de “La Figlia di Iorio”, tragédia escrita pelo maior poeta italiano da época, Gabriele D’Annunzio. Após a apresentação ser interrompida por vaias, Scarpetta acaba sendo processado por plágio por D’Annunzio, sendo a primeira ação judicial sobre direitos autorais na Itália. Inspirado em acontecimentos reais. Na Nápoles da Belle Époque, início do século 20, um ator criou a personagem burlesca de Felice Sciosciammocca, e as salas lotavam para ver suas apresentações. Rei do Riso e rei das bilheteiras, Eduardo Scarpetta (1853-1925), é interpretado pelo grande ator Toni Servillo.
. “Laços” (Lacci – Itália, 2020, 100’) – De Daniele Luchetti. Filme inaugural do Festival de Veneza 2021. Drama com Alba Rohrwacher, Luigi Lo Cascio e Laura Morante, Silvio Orlando, Giovanna Mezzogiorno, Adriano Giannini, Linda Caridi, Francesca De Sapio. Em Veneza 2020, a invasão do apartamento de um casal desperta lembranças do turbulento casamento, marcado por um período de infidelidade e abandono. Já adultos, seus filhos vivem as consequências dessa estranha fase. Baseado no livro de Domenico Starnone.
. “Guia Romântico para Lugares Perdidos” (Guida Romantica a Posti Perduti – Itália, 2020, 106′), Comédia de Giorgia Farina. Com Clive Owen e Jasmine Trinca. Um insólito road movie sobre duas almas atormentadas que embarcam juntas em viagem entre ruas, silêncios e emoções. Allegra é uma blogger de viagens agorafóbica, que nunca põe o pé para fora de casa, sofre de ataques de pânico e tem todas as fobias do mundo. Benno é alcoólatra e bebe até esquecer de si mesmo. Ela não consegue controlar mais o seu medo do mundo e ele não consegue controlar sua dependência em álcool. Vizinhos desconhecidos um do outro, encontram-se numa “noite de tempestade”. Este acaso conduz o improvável casal para uma viagem de autodescoberta entre lugares perdidos e esquecidos. Participção da atriz francesa Irène Jacob. Exibido no 77º Festival de Veneza, o terceiro longa de Giorgia traz Owen e Jasmine como dois desconhecidos, ambos presos em vida de mentiras, que partem juntos em extraordinária viagem pela Europa explorando lugares abandonados, enquanto se reconciliam com os seus próprios passados.
. “Mulheres Rebeldes” (Una Femmina, Itália, 2022, 120’) – Drama de Francesco Costabile. Com Lina Siciliano, Fabrizio Ferracane, Anna Maria De Luca – Rosa é uma jovem inquieta e rebelde, que vive com a avó e o tio numa cidade da Calábria, entre montanhas e rios secos. Para Rosa, chegar à idade adulta significa trair a sua família e buscar a vingança, mas quando esta família é a ‘Ndrangheta – uma organização mafiosa – cada passo pode ser fatal. Francesco Costabile faz sua estreia na direção de longas-metragens com um poderoso drama, com toques de terror psicológico, sobre a rebelião de uma mulher em luta contra as estruturas arcaicas da máfia calabresa. A beleza e a violência andam de mãos dadas e a paisagem selvagem da Calábria é o pano de fundo desta obra inspirada no livro de investigação “Fimmine ribelli” sobre a violência contra as mulheres no seio de famílias que pertencem à ‘Ndrangheta, associação mafiosa que se formou na região da Calábria. Exibido na mostra Panorama do Festival de Cinema de Berlim.
. “Tempos Super Modernos” (E Noi Come Stronzi Rimanemmo a Guardare – Itália, 2021, 108’), de Pif. Com Fabio De Luigi, Ilenia Pastorelli, Pif – Arturo Giammareresi é um gerente promissor que introduz em sua empresa um algoritmo para ajudar os funcionários a trabalhar menos e melhor. Porém, o algoritmo decide que o trabalho de Arturo é supérfluo e ele é demitido na hora. Além dos problemas no trabalho, ele perde a namorada e os amigos. O seu único consolo será Stella, um holograma criado por um aplicativo que encarna todas as suas preferências. Quando o teste gratuito do aplicativo acaba, Arturo é incapaz de renovar a sua assinatura e perde Stella. Agora, ele será forçado a dar um passo em frente, em busca do amor real e de sua liberdade. A falta de garantias sociais e a fragilidade econômica são o ponto de partida da nova sátira de Pif, uma comédia sobre o excesso de poder dado à tecnologia e aos algoritmos que marcam cada vez mais o ritmo de nossas vidas. Pif, pseudónimo de Pierfrancesco Diliberto, cineasta e ex-repórter, investiga as realidades contemporâneas visíveis a todos e constrói uma comédia que referencia filmes como “Playtime – Vida Moderna” de Jacques Tati, e “Her”, de Spike Jonze.
. “Freaks Out”, de Gabriele Mainetti. Premiado com o Leoncino D’Oro no Festival de Veneza, conta a saga de uma trupe de circo que, em plena Segunda Guerra, usa seus superpoderes para lutar contra os nazistas.
8 ½ Festa do Cinema Italiano
Data e local: 28 de julho a 3 de agosto, em cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Salvador e Porto Alegre; 4 a 10 de agosto, em Fortaleza, Recife, Natal, Belém, Vitória, Curitiba, Florianópolis, Londrina, Santos, Campinas, Goiânia, Niterói e Maringá. A programação completa com filmes e horários está disponível no site www.festadocinemaitaliano.com.br.