Antonioni, o mestre da incomunicabilidade, causou frisson em Gramado

Por Maria do Rosário Caetano

A Revista de CINEMA prossegue série de relatos, contendo lembranças ambientadas em festivais ou mostras cinematográficas (brasileiros ou internacionais).

A décima-segunda destas lembranças tem o Festival de Gramado, que realiza sua quinquagésima edição de 12 a 20 de agosto, como cenário. E Michelangelo Antonioni (1912-2007) como protagonista. O maestro italiano chegara à Serra Gaúcha em agosto de 1994, como convidado de Walter Hugo Khouri, então curador do festival mais badalado do país.

Por causa dos estragos causados pelo Governo Collor (1990-1992), a produção cinematográfica brasileira se reduzira de tal forma, que não havia longas-metragens em quantidade suficiente para abastecer os dois festivais mais importantes e longevos do país: Brasília e Gramado. O festival candango se virava com “refugos”, caçava cineastas a laço. Tinha seis vagas, mas houve ano em que teve que contentar-se com cinco concorrentes.

Gramado tomou outro caminho. Resolveu falar também italiano, espanhol e francês. O cosmopolita Khouri ia a Cannes e lá contatava cineastas europeus que pudessem trazer seus filmes ao festival gaúcho.

Convidava, também, atores. Caso de Salvatore Cascio e Marco Leonardi (ambos de “Cinema Paradiso”), Faye Dunaway e Elliot Gould, vindos dos EUA, a starlett de curvas pronunciadas e seios fartos Eva Grimaldi (que aparecera em “Entrevista”, de Fellini, e no “Forever” khouriano), Gina Lollobrigida (“A Mulher Mais Bela do Mundo”, “Trapézio”), a argentina Isabel Sarli, e a aeróbica Raquel Bianchi, que fora parar no elenco de um filme do erotizado Bigas Luna.

Mas Antonioni era Antonioni, um dos maiores cineastas do mundo, autor de obras da grandeza de “As Amigas” (1955), “O Grito” (1957 ), da Trilogia da Incomunicabilidade (“A Aventura”, “A Noite”, “Eclipse”, realizados em 1960, 61 e 62), “Blow Up – Depois Daquele Beijo” (1966), “Zabrisky Point” (1970) e “Passageiro Profissão: Repórter” (1975). Coube a ele causar o maior frisson da história internacional de Gramado. O Michelangelo que desembarcou na Serra Gaúcha não falava. Em 1986, sofrera um derrame. Consequência terrível: perdera a voz. Quem falava por ele era sua companheira Enrica Fico, a atriz com quem estava casado desde 1971.

A estada gramadense de Antonioni foi das mais agitadas, embora o maestro já contasse 81 anos. Bem mais nova que ele, Enrica Fico Antonioni se fazia de porta-voz do marido e atendia aos jornalistas com imensa disposição e alegria.

Dois momentos, em especial, marcaram a razoavelmente longa visita gramadiana do maestro peninsular. A primeira, e inusitada, aconteceu no auditório lotado do Hotel Serrano, então base da festa cinematográfica. Dezenas de jornalistas, cineastas (entre eles o chileno Miguel Littin) e curiosos foram assistir à “Coletiva” do diretor da Trilogia da Incomunicabilidade. À mesa, o maestro, Enrica Fico e Walter Hugo Khouri. As perguntas eram dirigidas ao cineasta. Khouri traduzia do português para o italiano, Enrica se comunicava com o marido, resumindo a questão. Ele trocava sinais com ela. Que os traduzia sinteticamente. Mas aí, Khouri, discípulo confesso do diretor de “A Aventura”, transformava as sintéticas frases da Senhora Antonioni em uma palestra. Falava por cinco ou até mais minutos. Os jornalistas qualificaram a “tradução” khouriana com dois adjetivos: criativa e prolixa.

O segundo momento aconteceu no Palácio dos Festivais (o Cine Embaixador), na noite de encerramento e Troféus Kikito. Antonioni, que ganhou uma estatueta, homenagem ao sol e às hortênsias, e Enrica Fico assistiram, com a sala abarrotada, a uma exibição de “A Noite”, o angustiante filme protagonizado por Marcello Mastroianni, Jeanne Moreau e Monica Vitti. Luiz Zanin Oricchio e eu, que nos sentamos próximo ao casal, vimos lágrimas descerem pelo rosto do maestro. Já tivéramos o prazer de, numa noite gelada, à beira da lareira do Hotel Serra Azul, ouvir Enrica contar histórias das filmagens de “Profissão Repórter”. Naquele momento distante (1974), ela vivia os primeiros anos de seu relacionamento com Antonioni. Eles foram, com Jack Nicholson e Maria Schneider, para os sets deste road movie existencial, que incluía locações na África saariana.

“A filmagem foi muito louca e criativa”, nos contou Enrica. “O LSD e outros complementos eram usados diariamente. Antonioni terminava sua trilogia em inglês (“Blow Up”, “Zabrisky Point” e “Profissão: Repórter”), produzida por Carlo Ponti, que estava no auge de sua criatividade e maturidade e os tempos eram muito transgressores. A ordem era fazer um filme que causasse sensação. E nosso road movie causou”.

O plano-sequência final, objeto de culto até nossos dias, foi lembrado por Enrica. “Filmamos naqueles meados de 1970, quando não havia steadcam (câmara colada ao corpo para estabilizar movimentos). Antonioni solucionou tudo junto com seu fotógrafo (Luciano Tavoli), de forma criativa. Bastaram um trilho e uma grua móvel”.

Quando Antonioni passou por São Paulo, parte da viagem a Gramado, Arnaldo Jabor foi encontrá-lo no L’Hotel, próximo à Avenida Paulista. Dedicou bela crônica ao mestre peninsular. Em 2007, o cineasta encerrou sua vida nesse mundo, aos 94 anos, em sua Roma adotiva (ele nasceu em Ferrara). Jabor resolveu evocar o encontro e escrever outra crônica dedicada ao “Albert Camus do cinema”.

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