Jô Soares, cinéfilo convicto, foi ator, diretor e fonte de filmes

Por Maria do Rosário Caetano

Jô Soares, nome artístico de José Eugênio Soares, partiu deixando rico patrimônio no campo do humor, do teatro (como diretor e dramaturgo), dos talk-shows televisivos, da literatura paródica (“O Xangô de Baker Street”) e da crônica jornalística.

O menos conhecido de seus múltiplos ofícios tem a ver com o cinema. Além de atuar em diversos filmes, Jô cometeu “um único pecado” como diretor. Em 1976, protagonizou e dirigiu o longa-metragem “O Pai do Povo”, um filme quase secreto.

José Eugênio Soares, menino rico educado na Suíça, morreu na madrugada desta sexta-feira, 5 de agosto, no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, onde estava internado há duas semanas. Um dos mais famosos e estimados humoristas do país, consagrado em programas de TV como “Família Trapo”, “Faça Humor, Não Faça Guerra”, “Viva o Gordo”, “Satiricon” e “O Planeta dos Homens” (sem esquecer os talk-shows que comandou na Globo e no SBT) –, o carioca da gema, paulistano adotivo, tinha 84 anos.

As façanhas e êxitos de Jô Soares na TV são por demais conhecidos. Ele imortalizou dezenas de personagens em horário nobre da Globo, como Norminha, Capitão Gay, Bô Francinete, Ciça, a malhadora, Reizinho, Zé da Galera (aquele que pedia ao treinador:“Bota um ponta, Telê!”), o último exilado (“Você não quer que eu volte!”). A lista é imensa.

Ao saber da morte do artista, o cineasta e teledramaturgo Paulo Halm registrou a dor da perda lembrando reportagem que lera na infância, no final dos anos 1960, na revista Realidade. A publicação – relembra Halm – fez do título da matéria “uma blague, quase um anagrama, com seu nome verdadeiro: Eu-Gênio? Só-Ares”. O diretor e roteirista carioca lembra a falsa modéstia do entrevistado, que caçoava do próprio nome, para reafirmar que “José Eugênio Soares era um artista completo, popular e sofisticado, um gênio”.

O cinema entrou cedo na vida do rapaz gorducho, poliglota e refinado. Descendente de avô político e diplomata capixaba e de pai empresário paraibano, Jô, que se encaminhava para as searas do Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores), bandeou de vez para o mundo artístico. Estreou no cinema em 1955, numa “ponta” no filme “O Rei do Movimento”. Dois anos depois atuaria em “De Pernas pro Ar”. Mas só se faria notar para valer quando interpretou cowboy norte-americano, mascador de chiclete, em “O Homem do Sputnik”, uma das melhores chanchadas de Carlos Manga. Ambientado na Guerra Fria, o filme, protagonizado por Oscarito e Zezé Macedo, foi um estrondoso sucesso de bilheteria (há quem arrisque 13 milhões de ingressos). Além dos espiões estadunidenses e russos, que vinham caçar o “Sputnik” caído no quintal de dois caipiras brasileiros, a chanchada estourou também por causa de inesquecível paródia de Brigitte Bardot, feita por Norma Bengell, que seduzia o João Ninguém representado por Oscarito. Jô trabalhou também com Grande Otelo.

Seguiram-se outros filmes, inclusive a primeira versão de “Pluft, o Fantasminha” (Romain Lesage, 1964), com elenco dos sonhos (Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Dorival Caymmi, Sérgio Ricardo, Norma Blum, Dirce Migliaccio, Agildo Ribeiro, Claudio Cavalcanti, Haroldo Costa, Renato Consorte e Yan Michalsky). E em obras do chamado Cinema Marginal, como “Hitler do Terceiro Mundo”, de José Agripino de Paula, e “A Mulher de Todos”, de Rogério Sganzerla.

Em 1976, Jô Soares resolveu dirigir o próprio filme: “O Pai do Povo”. Uma comédia, claro! O artista foi com muita sede ao pote (produtor, roteirista, diretor e protagonista). Tarefas demais para um estreante cinematográfico. Com elenco estelar (Carlos Eduardo Dollabela, Agildo Ribeiro, Bibi Vogel, Cyll Farney, Gracindo Jr, Milton Carneiro, Lydia Mattos e Urbano Lóes), o longa era uma paródia ao mundo dominado pela Guerra Fria e ameaça da bomba atômica.

Trama engenhosa: as três maiores potências do planeta explodem bombas nucleares ao mesmo tempo. A radioatividade causa a esterilização humana. A extinção é inevitável. Porém, em Silvestria, ilha do Pacífico governada por El Libertador Contreras, um homem, que dormia dentro de um cano de chumbo na hora das explosões, tem sua fertilidade preservada. Por isso torna-se o Pai do Povo.

Contreras passa a explorar, com auxílio de um geneticista, o dom do Inseminador, cobrando altos preços. Mulheres belas chegam de todos os cantos do mundo para serem engravidadas e salvar a espécie. Mas os preços exorbitantes impedem que países subdesenvolvidos possam utilizar o sêmen do reprodutor. A ONU intervém e exige: de cada oito coitos do Pai do Povo, um terá que ser destinado a mulheres do Terceiro Mundo. Apesar da fama de Jô, na época, estrela máxima do humor televisivo (junto com Chico Anysio), o filme flopou (como floparia, anos mais tarde,  “Tanga, Deu no New York Times”, de Henfil).

Jô Soares escreveu cinco livros: “O Astronauta sem Regime” (1983), “O Xangô de Baker Street” (1995), “O Homem que Matou Getulio Vargas” (1998), “Assassinato na Academia Brasileira de Letras” (2005) e “As Esganadas” (2011). Destes, um chegou ao cinema pelas mãos de Miguel Faria Jr. Justo o mais famoso deles, o best seller “O Xangô de Baker Street” (500 mil exemplares). No elenco, duas estrelas lusitanas (e internacionais) – Joaquim de Almeida e Maria de Medeiros. E mais: o britânico Anthony O’Donnel, o próprio Jô Soares, Claudia Abreu, Letícia Sabatella, Marco Nannini, Cláudio Marzo, Caco Ciocler, Emiliano Queiroz, Agildo Ribeiro, Marcelo Anthony e Christine Fernandes. O filme vendeu 380 mil ingressos, resultado mediano para uma superprodução da Skyligth de Bruno Stroppiana. Mas, ainda hoje, se deixa ver com galhardia em suas reprises na TV.

 

Filmografia
Jô Soares, Rio/RJ, 16 de janeiro de 1938

Como diretor:

1976 – “O Pai do Povo”

Como ator:

1955 – “O Rei do Movimento”, de Victor Lima
1957 – “De Pernas Pro Ar”, de Victor Lima
1959 – “O Homem do Sputnik”, de Carlos Manga 1959 – “Pé na Tábua”, de Victor Lima
1959 – “Aí Vêm os Cadetes”, de Luiz de Barros
1960 – “Tudo Legal”, de Victor Lima
1960 – “Vai Que É Mole”, de J.B. Tanko
1964 – “Pluft, o Fantasminha”, de Romain Lesage 1967 – “Papai Trapalhão”, de Victor Lima
1968 – “Hitler do Terceiro Mundo”, de Agripino de Paula,
1968 – “Agnaldo, Perigo à Vista”, de Reynaldo Paes de Barros
1969 – “A Mulher de Todos”, de Rogério Sganzerla.
1970 – “Nenê Bandalho”, de Emílio Fontana
1973 – “Amante Muito Louca”, de Denoy de Oliveira
1976 – “Tangarela, A Tanga de Cristal”, de Campello Flores
1976 – “O Pai do Povo”, de Jô Soares
1988 – “Cidade Oculta”, de Chico Botelho
1994 – “Sábado”, de Ugo Giorgetti
2001 – “O Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria Jr
2004 – “A Dona da História”, de Daniel Filho
2011 – “Mamonas para Sempre”, de Claudio Kahns (documentário)
2012 – “As Aventuras de Agamenon”, Victor Lopes
2018 – “Rogéria, Senhor Astolfo Barroso Pinto”, de Pedro Gui (documentário)

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