Gramado conhece “Marte Um” e “Fantasma Neón”, os franco-favoritos ao Troféu Kikito
Foto: Equipe do longa “Marte Um”, de Gabriel Martins © Edison Vara/Agência Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado
A sexta noite da mostra competitiva do Festival de Gramado apresentou ao público dois títulos ‘black’ e ambos grandes favoritos ao Troféu Kikito de melhor longa-metragem (o mineiro “Marte Um”, de Gabriel Martins, o Gabito) e de melhor curta (o carioca “Fantasma Neón”, de Leonardo Martinelli).
A quinquagésima edição do festival gaúcho, evento ambientado em cidade de colonização europeia (ítalo-germânica), tornou-se poderosa vitrine de histórias, atrizes, atores e realizadores negros. A ponto do octogenário Antônio Pitanga, presença marcante na obra de Glauber Rocha, registrar junto à turma da Filmes de Plástico, sua imensa alegria com a presença de artistas afro-brasileiros em papeis de peso. O caso de “Marte Um” constitui novo paradigma com seus quatro protagonistas (e praticamente todo elenco coadjuvante e de apoio) de pele preta.
Pitanga lembrou que durante muitas décadas — e ele está no cinema desde o final dos anos 1950 — contavam-se nos dedos de uma mão os intérpretes pretos presentes na produção cinematográfica brasileira. Em Gramado 2022, a situação é bem diferente. Destacam-se, em curtas e longas, nomes como Rejane Medeiros, Carlos Francisco, Camilla Damião e Cícero Lucas (os protagonistas de “Marte Um”), César Mello (de “O Pastor e o Guerrilheiro” e “O Clube dos Anjos”), Dan Ferreira (“A Porta ao Lado”), Junior Vieira (“O Último Animal”), Dennis Pinheiro (“Fantasma Neón”), Norma Góes (“O Pato”), Jessica Ellen e Edilson Silva (“Último Domingo”), Margot Oliveira, Ícaro Olavo e Severino D’Acelino (“Imã de Geladeira”), entre outros. Dos dois rappers que marcam presença nas telas gramadenses, um é de origem indígena (Dunstin Farias, de “A Mãe”) e o outro, o acreano Gabriel Knoxx (de “Noites Alienígenas”), mestiço.
“Marte Um” nasceu de projeto destinado a produções afirmativas, ou seja, filmes que dessem destaque a realizadores, elencos e técnicos afro-brasileiros. Criado no Governo Dilma, quando Marta Suplicy era ministra da Cultura, o Edital sofreu solução de continuidade nos governos Temer e Bolsonaro.
O segundo longa-metragem de Gabito (ele dirigiu o primeiro, “No Coração do Mundo”, com Maurílio Martins) deve sagrar-se o grande vencedor de Gramado por suas qualidades, que são notáveis. Não por ser um filme preto, feito por pretos. A narrativa tem muito o que dizer e constrói-se com humor, personagens fortes e envolvente e sintonia fina com o Brasil de nossos dias.
A trama se passa nos últimos meses de 2018, pós-eleição de Jair Bolsonaro. A família Martins compõe-se com a doméstica Térsia (Rejane Faria, luminosa), casada com Wellington (Carlos Francisco, também notável), porteiro de prédio de luxo, que frequenta os Alcóolicos Anônimos para manter-se afastado da bebida. O casal tem dois filhos. O adolescente Deivinho (Cícero Lucas), garoto tímido, de óculos fundo de garrafa, que joga futebol, mas sonha ser astrofísico, e a estudante de Direito Eunice (Camilla Damião), que apaixona-se por uma colega (Ana Hilário). Juntas, elas decidem alugar um apartamento. A cena em que os pais descobrem a homoafetividade da filha se passa durante um clássico entre Atlético e Cruzeiro (visto pela TV) e constitui-se em momento de antologia (por sua composição quente, calorosa e divertidíssima). Em participações especiais estão no filme o hilário Russo APR (de “Temporada”) e o ex-jogador argentino Juan Pablo Sorín, ídolo do Cruzeiro.
Gabito, que nasceu em Contagem há 34 anos, assina também o roteiro, a montagem (com Thiago Ricarte) e a produção de “Marte Um” (ele é um dos quatro sócios da Filmes de Plástico, criada em 2009). O jovem realizador ambientou sua trama em sua Contagem natal, que ele conhece como a palma da mão. Deu à família-protagonista o próprio sobrenome, Martins. O que não significa que narrou história autobiográfica. Se assim fosse, Deivinho seria um adolescente que sonharia ser cineasta, não astrofísico. Mas claro que a história traz muito das vivências dele, de parentes e amigos que o cercaram desde que nasceu, em dezembro de 1987.
Com o Brasil sob o comando de Jair Bolsonaro, o jovem cineasta, ao invés de entregar-se ao desespero, resolveu construir narrativa recheada de compreensão e tolerância. E tudo temperado com histórias cotidianas, devoção ao futebol, música (incluindo o hit “Saigon”, sucesso na voz de Emilio Santiago), sem esquecer o que de pior nos oferece nossa TV, as tais “pegadinhas”. E tudo temperado com humor fino e crítico, o sal da terra e componente essencial na produção da Filmes de Plástico.
Térsia, num dos melhores momentos do filme, come pastel numa lanchonete. Aparece um homem, um tipo amalucado. Ele diz que perdeu o emprego, que a mulher o corneou, que não quer mais viver. Pega uma banana de dinamite, as pessoas fogem apavoradas. Térsia, perplexa, permanece no lugar. Dá-se a explosão. Dali em diante a senhora Martins começará a sentir fortes dores de cabeça e a perceber que vem atraindo maus fluidos.
Noutro momento de fino humor, Térsia e o marido discutem aperto financeiro e buscam formas de cortar despesas. Ela propõe que seja eliminada a conta no pay per view. O marido protesta, pois encontra nas partidas televisivas de futebol seu lazer único e preferido. Propõe economia na conta de luz, banhos mais breves e menor uso do secador de cabelos.
O nome do filme nasce de projeto espacial que se propõe a colonizar Marte, o planeta vermelho, dentro de poucas décadas. Deivinho acompanha tudo pela internet, assiste a entrevistas de cientistas, mergulha no estudo do espaço sideral. O filme dialoga com a ficção científica, sem abandonar o drama social e a comédia.
O garoto joga bola tendo o pai como fervoroso incentivador. A ponto do senhor Martins pedir a um dos moradores do condomínio de luxo onde trabalha, o ex-craque cruzeirense Sorín, que interpreta ele mesmo, que arrume oportunidade para Deivinho numa “peneira”.
“Marte Um”, que estreou no Sundance Festival, nos EUA, e já passou por diversos festivais internacionais, chega aos cinemas brasileiros na quinta-feira, 25 de agosto. Pode repetir a carreira exitosa de “Medida Provisória”, de Lázaro Ramos (quase 500 mil espectadores). Afinal, trata-se de um filme, além de bem-humorado, portador de alto astral. Quem, em determinado momento, supôs que “Marte Um” mergulharia em tragédia doméstica para emular os retrocessos trazidos pelo governo ultraconservador de Jair Bolsonaro, enganou-se.
A equipe do filme mineiro o inscreveu (esta é a primeira vez que a Filmes de Plástico se coloca na disputa) para buscar o direito de representar o Brasil junto à Academia de Hollywood (categoria de Oscar internacional). Se forem escolhidos, os produtores mineiros garantem que farão como o personagem Wellington Martins, que em véspera de situação aflitiva, promete: “se acontecer, a gente dá um jeito”.
Os dois curtas da sexta noite gramadense — “Fantasma Neón” e “Mas Eu Não Sou Alguém?”, este de Daniel Eduardo e Gabriel Duarte — também contam com protagonistas e histórias negras.
O primeiro dedica-se ao “precariado” contemporâneo, composto com trabalhadores de aplicativos, que se esfalfam em bicicletas ou motos para entregas a domicílio. Somando documentário e ficção — e construído como um musical proletário — o “Fantasma Néon” encanta por sua originalidade, trilha sonora e testemunhos dos entregadores, que miram o espectador ao narrar seus perrengues.
O protagonista (Dennis Pinheiro), um jovem que usa a bicicleta como instrumento de trabalho, mantém amizade muito especial com outro entregador (o craque Silvero Pereira, de “Bacurau”). E sonha em ter uma moto, veículo mais eficiente para que ele possa desempenhar seu trampo e cumprir as metas empresariais. Tudo se passa num Rio de Janeiro longe do cartão postal e os números de canto e dança mantêm fina sintonia com os diversificados gêneros musicais do Brasil contemporâneo. Uma surpresa entre os 12 curtas exibidos até agora.
“Mas Eu Não Sou Alguém?” sustenta-se no carisma de seu protagonista mirim, Antônio (Antonio Amaral), uma criança curiosa e inquieta. Aos nove anos, ele vive numa grande favela paulistana (Paraisópolis) e desfruta das alegrias do local em brincadeiras e outros prazeres cotidianos. Convive, também, com os perigos e ouve, com frequência, dizerem que só “será alguém” se estudar muito e deixar o lugar onde nasceu. Na favela, nada feito.
A sexta noite do Festival de Gramado não contou com um concorrente ibero-americano. O espanhol “A Boda de Rosa”, de Iciar Bolaín, foi desclassificado por não ser inédito em território brasileiro. Em seu lugar foi apresentada sessão especial de “A Viagem de Pedro”, de Laís Bodanzky, com Cauã Reymond no papel do imperador Dom Pedro I (para os portugueses, Pedro IV).
A última noite da competição acontecerá nesta quinta-feira, com mais dois curtas brasileiros, o longa “Tinnitus”, de Gregorio Graziosi, e o chileno “Immersión”, que traz em seu elenco o craque Alfredo Castro. E haverá homenagem à atriz, também chilena, Paulina Garcia, a Glória de Sebastian Lélio. Ela receberá um Kikito de Cristal.