“Sapato 36” mostra paixão de amadores pelo futebol de várzea

Por Maria do Rosário Caetano

Um filme sobre futebol de várzea e título misterioso – “Sapato 36” – estreia nesta quinta-feira, 4 de agosto, em cinemas de diversas capitais brasileiras e em três salas do interior – Paulista e Serra Talhada, ambas em Pernambuco, sendo a segunda a terra natal do cineasta e músico Petrônio Lorena, e Batatais, São Paulo.

O que significa, no mundo boleiro, a expressão “Sapato 36”?

Depois de ver o filme, intuímos, sem muita certeza, que se trata de referência aos, digamos, “amansadores de chuteiras”. Afinal, no mundo da várzea, marcado pela paixão, joga-se por prazer em campos ruins, sem salários e pisantes caros feitos com materiais de última geração (pela Nike, Adidas, Fila ou Puma). Caberia, então, ao iniciante, “amaciar a chuteira” dos mais experientes. Independente do número. Se o “veterano” calçava 38, 39 ou 40 e o recém-chegado dois ou três números a mais, mesmo assim lhe caberia “amaciar a chuteira” do colega.

Parece que a expressão é regional, ou seja, uma invenção de boleiros varzeanos, que jogam em Santo Amaro, bairro popular do Recife. Lá, um dos grandes prazeres da galera é correr atrás da bola. Atletas amadores ocupam os poucos terrenos que a especulação imobiliária ainda não devorou. O crítico de cinema, professor universitário e torcedor do Corinthians, Celso Sabadin acredita que o título nasceu do interesse de Petrônio Lorena pela música, no caso, “Sapato 36”, de Raul Seixas e Cláudio Roberto (conferir letra abaixo).

Dos campinhos modestos santamarenses saíram duas estrelas do futebol recifense: Ricardo Rocha, tetracampeão do mundo com a seleção estrelada por Romário, e Mauro Shampoo, astro folclórico do “pior time do mundo”, o Ibis. Os dois são amigos. Ricardo vive das glórias do passado, e Shampoo, como sugere o nome, lavando e cortando cabelos em seu salão instalado na capital pernambucana.

Petrônio Lorena, autor de curtas e longas apaixonados por gente diferenciada (inventores, buscadores de tesouros, poetas populares que cantam versos e consomem doses alcóolicas colossais) queria fazer um filme (seu terceiro longa-metragem) sobre o Ibis. Afinal, num país que ainda desfruta da condição de único pentacampeão do mundo, o cineasta dirigiria mais uma vez seu olhar aos perdedores, os jogadores que não ganham milhões de euros, não saem nas páginas nobres dos jornais, nem namoram a modelo da hora.

O pernambucano Ibis representava tudo isto. Mas Lorena, do grupo musical Petrônio e as Criaturas, acabou se envolvendo com os jogadores de várzea do Santo Amaro. E partiu para o “Sapato 36”, reunindo um time de homens (em maioria absoluta) e mulheres (poucas), que enfrentam as piores condições para jogar bola.

Partindo do bairro de Santo Amaro, localizado na região central do Recife e tido como violento, “Sapato 36” mostra a importância e a resistência do futebol de várzea a partir de histórias de personagens que fazem de uma pelada ou de um campeonato amador, a motivação especial de suas vidas.

O realizador serra-talhadense promove simpático resgate do futebol dos anônimos (exceção para Ricardo Rocha), ouvindo o jogador-cabeleireiro Shampoo, que marcou um único gol em longas temporadas boleiras, e alcançou fauna diversa de aficcionados. Um deles, Ibson Gomes, joga em treze times varzeanos. E revela satisfação, pois integrando tantas equipes, tem sempre oportunidade de praticar o esporte bretão. E, vez ou outra, ganha cachê que varia de 50 a 70 reais.

Petrônio não se propõe a realizar um retrato doloroso do mundo daqueles que se satisfazem em ter o uniforme completo e uma chuteira, mesmo que bem modesta. E, claro, conseguir vaga em time que possa disputar a liga santamarense. O sonho maior – e quem não sonha? – é chegar a um time profissional – Santa Cruz, Náutico, Sport, a uma equipe do eixo Rio-São Paulo ou aos times da Europa. Mas só Ricardo Rocha chegou longe, muito longe. À Seleção Brasileira. Ninguém, porém, fica lamuriando.

Com ótima trilha sonora (tinha que ser assim, já que o cineasta é também músico), o documentário se apresenta sem arroubos de grandeza e sem as inquietações dos outros filmes (curtas e longas) de Petrônio. Em respeito ao futebol, ele não quis inventar muito. Fez seu filme mais “comportado”. Mas não alheio ao seu tempo. Se hoje as lutas das minorias estão na linha de frente, Lorena foi atrás do futebol feminino. Mesmo que, na várzea, as mulheres sejam minoria total e absoluta. As que amam o futebol partem já para a segunda ou primeira divisão. Não vão “arrancar toco” em campinhos periféricos e precários.

Para provar a resistência do futebol de várzea e sua importância para comunidades de baixo poder aquisitivo, o documentarista ouviu Marcone Gadelha, dirigente e técnico do União Futebol Clube, um dos mais tradicionais de Santo Amaro, a jogadora Popó e suas companheiras no Náutico, Júnior Borog, Sebastião Rufino, Henrique Augusto, Wilton Moura, Cláudio Paula, Alexandre Antônio, Nego, Lenivaldo Aragão, Edson Peixoto, Carlos Augusto, Adilson Marques e Thiago de Lima.

Estes varões, somados às poucas mulheres, geraram um típico “cabeças falantes” longo e cansativo?

Não, porque o filme é enxuto e ninguém deita regras, nem análises fragmentadas de nossa realidade boleira. O futebol, afinal de contas, é uma paixão, um verdadeiro sacerdócio para quem ganha pouco e dispõe de rarefeitas opções de lazer.

 

Sapato 36
Brasil, 73 minutos, 2022
Longa documental sobre a paixão brasileira pelo futebol de várzea
Direção: Petrônio Lorena
Roteiro: Petrônio Lorena e Ricardo Brandão
Fotografia: Breno César
Trilha sonora: Petrônio Lorena e as Criaturas e Guga S. Rocha
Com participação de Ricardo Rocha, Mauro Shampoo, Nego, Júnior Borog, Popó, Alice Regina, entre outros e outras
Em cartaz em São Paulo, Rio, Recife, Aracaju, Curitiba, Maceió, Manaus e Palmas. E também em Paulista e Serra Talhada (PE) e Batatais (SP). Distribuição: Nosotros  y Los Demás e Cavídeo

 

FILMOGRAFIA
Petrônio Lorena (Serra Talhada, Pernambuco)

Longas-metragens:

2022 – “Sapato 36”, longa solo
2019 – “O Silêncio da Noite é que Tem Sido Testemunha das Minhas Amarguras”
2015 – “O Gigantesco Imã”, parceria com Thiago Scors

Curtas-metragens:

2011 – “Calma Monga, Calma”
2009 – “Faço de Mim o Que Quero
2006 – “O Som da Luz do Trovão”, parceria com Thiago Scorza
2004 – “Santa Helena e Os Phantasmas da Botija”, parceria com Thiago Scorza

 

“Sapato 36” – Composição de Raul Seixas e Claudio Roberto

“Eu calço é 37
Meu pai me dá é 36
Dói, mas no dia seguinte
Aperto meu pé outra vez
Pai eu já tô crescidinho
Pague prá ver, que eu aposto
Vou escolher meu sapato
E andar do jeito que eu gosto
E andar do jeito que eu gosto
Por que cargas d’águas
Você acha que tem direito
De afogar tudo aquilo que eu
Sinto no peito
Você só vai ter o respeito
Na realidade
No dia em que você souber respeitar
A minha vontade
Meu pai
Meu pai
Pai já tô indo embora
Quero partir sem brigar
Pois eu já escolhi meu sapato
Que não vai mais me apertar
Que não vai mais me apertar
Que não vai mais me apertar”.

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