Stephen Rea lança “Segredos do Putumayo” em mostra amazônica
Por Maria do Rosário Caetano
O ator irlandês Stephen Rea, indicado ao Oscar por seu desempenho em “Traídos pelo Desejo”, de Neil Jordan, desembarca no Brasil para, nesta quinta-feira, encontrar o público em sessão especial do filme “Segredos do Putumayo”, atração de mostra dedicada à Amazônia, organizada pelo CineSesc e O2 Play, com apoio da Embaixada da Irlanda.
O longa documental dirigido pelo amazonense-paulistano Aurélio Michiles, tem na voz de Stephen Rea – protagonista de “The Crying Game” (“Jogo de Lágrimas”, como cantava Boy George, ou “Traídos pelo Desejo”, no título brasileiro) – uma de suas forças motrizes. O grande ator irlandês empresta sua voz ao cônsul Roger Casement (1864-1916), considerado, em nossos tempos, “o pai dos inquéritos sobre a violação de direitos humanos”. Isto porque as ações por ele desenvolvidas, quando esteve no Congo, na Amazônia brasileira e colombiana e na sua Irlanda natal, foram de tal relevância, que repercutem ainda hoje.
Roger Casement narrou sua luta em defesa de povos africanos e indígenas sul-americanos em diários editados em língua inglesa, em 1997, pelo historiador Angus Mitchell, e em português, em 2016, pela EdUSP, graças a esforços de Laura Izarra e Mariana Bolfarine (com tradução desta última, em parceria com Mail Marques de Azevedo e Maria Rita Drummond Viana). Aurélio Michiles, por sua vez, editou belo livro que tem seu igualmente belo (e imprescindível) documentário como razão de ser (“Segredos do Putumayo – O Diário da Amazônia de Roger Casement”, Editora Colmeia).
Exibido pela primeira vez no Festival É Tudo Verdade, em 2020, “Segredos do Putumayo” despontou como o franco favorito da competição. Mas acabou com Menção Honrosa e cercado de elogios de Eduardo Escorel, Walter Salles, Fernando Meirelles e de parte significativa da crítica especializada.
Escorel, montador e documentarista, definiu “Segredos do Putumayo” como “grandioso graças à beleza de sua linguagem visual e sonora”, destacando seus elementos distintivos – “a atualidade de seu tema, maestria narrativa e abrangência do escopo”, incluindo “denúncia da brutalidade do colonialismo no Estado Livre do Congo, escravização e genocídio de povos indígenas no Alto Amazonas e luta armada pela independência da Irlanda”.
Pois são estes temas, nitroglicerina pura – ainda mais no Brasil de Bolsonaro, governo que deu liberdade total a garimpeiros, madeireiros e grileiros para agirem na Amazônia –, que Aurélio Michiles discutirá com Stephen Rea, o pesquisador Angus Mitchell e a ativista indígena Vanda Witoto em debate que sucederá a sessão de “Segredos do Putumayo”, na noite desta quinta-feira, no CineSesc.
O evento faz parte da Mostra Amazônica, que incluirá – além da exibição de “Putumayo” – outro filme ambientado na selva brasileira, “O Território”, de Alex Pritz, produção que contou com Darren Aronofsky (“Cisne Negro”) na retaguarda. Este documentário, que registra a luta do povo indígena Uru-eu-wau-wau contra o desmatamento, se fará representar na mostra pela ativista Txai Suruí (indígena e única brasileira a discursar na abertura oficial da Conferência da Cúpula do Clima, a COP26). Vencedor do Prêmio do Público no Sundance Festival, além do Prêmio Especial do Júri (em janeiro deste ano), “O Território” será exibido no CineSesc no próximo dia 8 de setembro.
“Segredos do Putumayo” faz por merecer, afinal, os múltiplos elogios que vem acumulando? Walter Salles exagera ao defini-lo como “uma obra-prima”? Fernando Meirelles peca por excesso ao dizer que o filme “beira a perfeição?” Está legislando em causa própria, já que a O2 Play assina seu lançamento?
Primeiro, há que se lembrar que tanto Walter, quanto Meirelles emitiram suas impressões sobre o documentário de Aurélio Michiles, quando o viram, pela primeira vez, na exibição do Festival É Tudo Verdade. E que a O2 Play, comandada por Igor Kupstas, tem autonomia para montar sua carteira de títulos. Quem conhece o diretor de “Cidade de Deus” sabe que ele tem uma causa como sua – o “cinema verde”. Ou seja, aquele que defende florestas, águas, a Natureza, enfim. Tem envolvido seu nome e o de sua produtora em projetos internacionais dedicados a este espectro temático (caso de “Grande Muralha Verde da África”, sobre reflorestamento na África Subsaariana).
Aurélio Michiles sempre pautou seu cinema pelo exercício criativo da linguagem, sem esquecer as grandes causas da Humanidade. Filho da Geração 68 e dos movimentos contestatórios, ele lutou por muitas bandeiras. Amazônico, com passagem por Brasília (e pelo Instituto de Arquitetura da UnB), sonhou muitas utopias. A luta indígena contra o extermínio o tocou de maneira profunda. Quando assistiu, na Mostra Internacional de Cinema de SP, ao filme colombiano “O Abraço da Serpente” (Ciro Guerra, 2015), finalista ao Oscar, ele me contou, comovido, que estava mergulhado no mesmo universo. Que preparava filme ambientado no mesmo território temático e geográfico. Quatro anos depois conseguia finalizar “Segredos do Putumayo”, que o levou de volta à sua Amazônia. E também à Colômbia e até à Irlanda de Roger Casement (e de Stephen Rea).
Em sua aventura cinematográfica, Michiles contou com a parceria do conterrâneo e amigo geracional Milton Hatoum (“Dois Irmãos”), que tem presença notável no filme. E com colaboradores de grande importância, como os corroteiristas Danilo Gullane e André Finotti (este também responsável pela montagem), a mestra dos sons Miriam Biderman (e o mixador Ricardo Reis) e do jovem diretor de fotografia André Lorenz Michiles (as imagens de “Putumayo” beiram o sublime, são de um preto-e-branco único). Contou, também, com a valiosíssima colaboração do historiador Angus Mitchell. Uniu, enfim, um pequeno exército de Brancaleone que embrenhou pela selva, adentrando o coração das trevas, para recuperar memórias de um homem, um cônsul irlandês, que denunciou forças genocidas.
No caso que dá título ao filme (Putumayo, na Colômbia), Caserman registrou o extermínio de 30 mil indígenas pela Peruvian Amazon Company. Vivia-se o auge do ciclo da borracha. O cônsul-geral britânico realizou duas viagens ao Alto Amazonas, em 1910 e 1911, para averiguar denúncias de violência e escravidão contra indígenas brasileiros, colombianos e peruanos. Os exploradores, empresa britânica financiada pela Bolsa de Londres e operada por gestores peruanos brancos, agiam acobertados por interesses políticos-econômicos poderosos. Casement se insurgiu contra eles.
E por que Casement não virou um herói? Por que sabemos tão pouco sobre ele?
O filme, com sua narrativa complexa e ambientada em três mundos (África, América do Sul e Europa) nos explicará. E, por favor, não me acusem de espoiler, pois trata-se de documentário histórico (que serve de espelho ao presente): Roger Casement sofreu o mais terrível dos apagamentos. Foi preso e condenado à morte (por enforcamento) e enterrado sem identificação. O Império Britânico o acusou de “traição, sabotagem e espionagem” contra o Reino que não via onde o Sol se punha, tamanha era sua extensão. Ele, irlandês de origem e republicano, defendia a independência de seu povo. Seus restos mortais só foram devolvidos à Irlanda em 1965 (49 anos depois de seu enforcamento). Aurélio Michiles dedicou a Roger Casement um filme de grande potência narrativa e estética. Um épico documental. E deu ao personagem a voz de um grande ator. Além de assistir a “Segredos do Putumayo”, reveja Stephen Rea, hoje com 75 anos, em “Traídos pelo Desejo” (um filme que tem muito a ver com nossos tempos identitaristas), “Na Companhia dos Lobos” (Neil Jordan, 1984), “Entrevista com o Vampiro” (Neil Jordan, 1994), “Angie” (Martha Coolidge, 1994) “Michael Collins” (Neil Jordan, 1966), “Nó na Garganta” (Neil Jordan, 1997 ), “Fim de Caso” (Neil Jordan, 1999), “Bloom” (Sean Walsh, 2003), “Café da Manhã em Plutão” (Neil Jordan, 2005) e em um grande número de séries.
Segredos do Putumayo
Brasil, 83 minutos, 2022
Longa documental filmado na Amazônia brasileira e colombiana, inspirado no livro “Diário da Amazônia”, de Roger Casement (EdUSP, 2016)
Direção e Roteiro: Aurélio Michilles, André Finotti e Danilo Gullane
Fotografia: André Lorenz Michiles
Montagem: André Finotti
Trilha sonora: Alvise Migoto
Edição de som: Miriam Bidermam
O ator irlandês Stephen Frears dá voz ao cônsul britânico Roger Casement
Pré-estreia no Cinusp, nesta quarta-feira, 31 de agosto
Sessão especial no CineSesc, nesta quinta-feira, com debate e participação de Stephen Rea
Distribuição: O2 Play
FILMOGRAFIA
Aurélio Michiles (Manaus-AM, 1952)
Cursou o Instituto de Artes e Arquitetura-UnB, de 1970 a 1973, e Artes Cênicas, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio, de 1977 a 1978. Desde a década de 1980 atua na área de Cinema e TV. Trabalhou na Globo, Band, SBT e TV Cultura.
2022 – “Segredos do Putumayo” (longa-metragem)
2015 – “Tudo por Amor ao Cinema” (longa)
2003 – “Gráfica Utópica”
2008 – “O Encontro dos Sabores”
2006 – “Higienópolis, Um Recorte do Mundo”
2010 – “Histórias da Música
2002 – “Teatro Amazonas”
2000 – “Arquitetura do Lugar”
1997 – “O Cineasta da Selva” (longa)
1995 – “O Brasil Grande e os Índios Gigantes”
1994 – “Davi Contra Golias”
1993 – “Lina Bo Bardi”
1992 – “A Árvore da Fortuna”
1992 – “A Agonia do Mogno” ,
1991 – “Que Viva Glauber!”
1982 – “Guaraná, o Olho de Gente”
1984 – “O Sangue da Terra”
1981 – “Via Láctea, Dialética”
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Por favor corrijam o nome do co-roteirista e montador para André Finotti, esse que vos escreve. André Barcinski não se envolveu nesse projeto.