Ataque de pitbull deflagra violência no filme “Ursa”, que disputa o Troféu Vitória

Por Maria do Rosário Caetano, de Vitória

O terceiro concorrente da mostra de longas-metragens do Festival de Cinema de Vitória veio do Paraná, escondido sob um nome vago, “Ursa”, e um diretor jovem (34 anos) e desconhecido fora das fronteiras do estado sulista, o estreante William de Oliveira. O filme tem qualidades, roteiro instigante e fincado em cenário pouco usual em produções outrora ambientadas no sul do país. Não vemos araucárias, nem descendentes ricos de imigrantes europeus, mas sim, gente comum.

A sinopse de “Ursa” (que título infeliz!) registra, miseravelmente: “um ataque de pitbull em bairro periférico e seus trágicos desdobramentos”. Deduzimos que a cidade seja Curitiba, pois o filme é paranaense, as pessoas têm pele clara, a “periferia” não é favelizada, as casas são de alvenaria, espaçosas e com garagem, os moradores têm carros ou motos. Quando um hospital entra em cena para atender a duas crianças vitimas do ataque de uma fêmea pitbull de nome Ursa, saberemos tratar-se de unidade hospitalar do SUS Paraná.

A protagonista Viviane (Adriana Soltomaior) trabalha em uma lanchonete, e deixa os dois filhos com uma cuidadora, adolescente de 15 anos. Os diálogos são vivos e recheados de piadas picantes, vindas em especial de uma colega, também garçonete (Patrícia Cipriano), afiadíssima. Quando a tragédia se impõe, “Ursa” polariza duas histórias — a da mãe, que tem um filho ferido, mas fora de perigo, e o mais novo em estado grave, na UTI. E o risco de perder a guarda deles para os sogros. No outro polo, está Jonas (Diego Perin), um jovem autocentrado, que preocupa-se mais com o destino de sua cachorra que com as dores da mãe e seus filhos pequenos.

O filme ameaça desandar, quando o ator que interpreta o sogro de Viviane entra em cena no hospital público, ao visitar um dos netos. Caricato, e em péssimo desempenho, ele destoa da narrativa. Por sorte, o filme resgata o fôlego. A trama segue e, mais uma vez, somos tomados por estranha sensação. Agora não provocada por um personagem apenas caricatural, mas pelo risco de vermos gente da base da pirâmide social (a periferia das grandes cidades) como geradora de notícias que alimentam programas tipo mundo-cão. Instala-se clima de suspense. O final, porém, contrariará nossas espectativas mais óbvias. E nos mostrará um diretor em quem devemos prestar muita atenção. Ele é inquieto, escreveu um roteiro afiado e, o que é raro, sintético (de apenas 70 minutos).

O diretor William de Oliveira no Festival de Vitória © Maria do Rosário Caetano

Mais quatro curtas-metragens foram apresentados na terceira noite da competição do Festival de Vitória — o brasiliense “Andrômeda”, de Lucas Gesser, o capixaba “Lua de Sangue”, de Mirela Morgante e Gustavo Senna, o gaúcho “Madrugada”, de Leonardo da Rosa e Gianluca Cozzatti, e o paulista “Solmatalua”, de Rodrigo Ribeiro-Andrade.

Dos quatro, o que causou melhor impressão foi o documentário (na verdade um híbrido, pois dialoga com a ficção) “Madrugada”, realizado por Da Rosa e Cozzatti, alunos da UFPel, única universidade pública do Rio Grande do Sul a manter um curso regular de Cinema. Pelotas, cidade que sedia a universidade, situa-se próximo a Rio Grande, onde está o porto de mesmo nome, cenário do filme. De lá são despachadas grandes quantidades de grãos produzidos pelo agronegócio gaúcho, em especial a soja. Das lavouras, via trem de ferro, os grãos são levados ao porto. Muita da soja cai pelos caminhos. Nas madrugadas, desempregados vão recolher tais sobras. Delas, tiram seu sustento.

O filme acompanha as madrugadas dos trabalhadores, de três deles em especial, em seu árduo ofício, mas também em suas brincadeiras naquela paisagem desoladora. As imagens são poderosas (fotografia de Rebeca Francoff), a atmosfera envolvente. Mas o espectador ganharia muito se o filme fosse legendado, pois é difícil entender o que dizem os três “catadores” do extremo-sul do Brasil (catadores, personagens que tanto apaixonaram Agnès Varda em “Les Glanneurs et la Glanneuse”).

O Espírito Santo cultiva queda especial pelo cinema de terror. Aqui, o cineasta Rodrigo Aragão mantém ativo núcleo de produção de filmes deste gênero. A curadoria do festival escolheu, para representar o Estado, na competição nacional, o curta “Lua de Sangue”, um terror dirigido por Mirela Morgante e Gustavo Edna. Tinha outras opções, como “MaKumba” e “Maré”. Mas apostou no que tem sido o cartão de visitas da produção local.

“Lua de Sangue” tem em seu créditos o diretor de arte (Alexandre Brunoro) dos filmes de Rodrigo Aragão. Mas é só. O filme de Mirela e Gustavo não dialoga com trash, mas sim com o terror psicológico. Parte, inclusive, de uma história real. Tempos atrás, os diretores resolveram filmar um elipse a partir de mirante instalado na Pedra dos Dois Olhos. Atrasados, pediram informação e seguiram por trilha encurta-caminho numa mata. Perderam-se e foram salvos pelo Corpo de Bombeiros. Enfeitaram a história e a transformaram num terror metalinguístico à moda da Bruxa de Blair.

“Andrômeda” coloca duas personagens femininas num universo (geek ou nerd) muito associado ao universo masculino. Uma delas sofre de mal de amor. Vivem numa cidade grande, atravessada por um metrô que a corta incessantemente. No debate do filme, o diretor de fotografia, o mineiro Petrônio Neto, formado pela UnB, contou que ele e o diretor Lucas Gesser inspiraram-se nos filmes asiáticos (de Wong Kar-Wai e Song Ho-Soo) para criar a atmosfera do filme. E que somaram paisagens físicas e arquitetônicas do Plano Piloto (cidade planejada, com edifícios de altura limitada) e de Águas Claras (prédios altíssimos) para compor a urbis que ambienta o filme.

“Solmatalua” é definido por seu diretor, Rodrigo Ribeiro-Andrade, como “uma onírica odisseia afrodiaspórica”. O filme, que tem Eryk Rocha como um de seus produtores, sequencia as pesquisas do realizador do instigante “A Morte Branca do Feiticeiro Negro”, filme que, em 2020, recebeu diversos prêmios em festivais brasileiros. Ao longo de 15 minutos, o cineasta soma imagens de arquivo que compõem um mergulho na ancestralidade de povos africanos espalhados por territórios diversos. E o faz com trilha sonora de Mbé.

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