Marcélia Cartaxo brilha em Vitória

Atriz aguarda estreia de “Lispectorando”, seu novo longa depois de “Pacarrete” e “A Mãe”

Por Maria do Rosário Caetano, de Vitória

A atriz Marcélia Cartaxo está no centro das atenções na vigésima-nona edição do Festival de Cinema de Vitória, que prossegue até sábado na capital capixaba, apresentando mais de 80 filmes. E, também, série de shows musicais que movimentará a região e chegará ao conjunto arquitetônico do Convento de Vila Velha, um dos mais belos pontos turísticos do Estado.

Na noite inaugural do festival capixaba, segunda-feira, 19 de setembro, Marcélia subiu ao palco do Centro Cultural Sesc Glória, para apresentar o filme “A Mãe”, que a tem como protagonista, ao lado do diretor Cristiano Burlan. Ele dedicou a sessão ao professor, cineasta e ator Jean-Claude Bernardet, de 87 anos, hospitalizado por causa de uma pneumonia. Ela, paraibana de 58 anos, envolta em um leve vestido cor-de-rosa, afirmou sorridente, que o casaco de pesada lã colocado sobre o delicado vestido devia-se à baixa temperatura ambiente. “Estou com muito frio”, brincou. “Mas estou muito feliz, pois estou trabalhando, estou fazendo arte, exercendo meu ofício, que é o que mais gosto, o que me dá mais prazer”.

E a paraibana tem toda razão por estar tão agradecida e satisfeita. Nos últimos quatro anos, ela esteve à frente de três longas. Interpretou a premiadíssima “Pacarrete”, velha bailarina cearense, obstinada e tida como louca, disposta a tudo para mostrar o ballet “O Lago do Cisne” no aniversário de sua cidadezinha. Enquanto ela sonhava com música e dança clássica, a Prefeitura e os munícipes queriam saber de forró de plástico e sofrência. Em seguida veio “A Mãe”, com roteiro escrito por Burlan e pela atriz Ana Carolina Marinho (com assessoria de Jean-Claude Bernardet). Gramado, que havia premiado Marcélia por “Pacarrete” (Alan Deberton, 2019), bisou a láurea. O Festival de Vitória também entregou seu prêmio máximo à atriz em 2019. E, ano passado, a homenageou com um Trofeu Vitória Especial – Trajetória e um Caderno Biográfico de 80 páginas.

O terceiro filme que tantas alegrias traz a Marcélia Cartaxo é “Vago”, ou “Lispectorando”. Ambos títulos provisórios. Sabe-se pouco sobre o novo longa-metragem da dupla pernambucana Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira. A paraibana, que adora o título “Vago”, por “seu mistério”, diz tratar-se de “mais uma reflexão do casal sobre a cidade do Recife”. E que a casa onde morou a escritora Clarice Lispector, nascida na Ucrânia, radicada no Brasil, primeiro no Recife, depois no Rio de Janeiro, é muito importante no processo de criação do filme. “Da casa” — lembrou a atriz — “só restam as paredes externas, uma coisa muito triste”.

Na internet, Sérgio Oliveira, parceiro da companheira Renata Pinheiro em todos os seus longas-metragens, festeja o encerramento das filmagens com foto coletiva da equipe, incluindo, claro, Marcélia Cartaxo. Num dos trechos que acompanham a imagem, ele evoca Clarice Lispector (1920-1977): “o sobrado onde a escritora morou ainda guarda uma potência — magia? — que explica tudo (e eu até agora não entendi nada). Ali renasceu um filme que pediu para existir e uma reviravolta nos nossos planos prévios. Em troca nos exigiu uma lógica de olhar para as coisas de um modo mais rápido e fragmentado, como convém aos ratos, aos leões e às ninfas” (presentes em estátua na praça onde localiza-se o casarão). Ali, do lado, “naquele sobrado já sem teto, bem à sua direita” — prossegue Sérgio Oliveira —, “morou uma artista que conseguiu ver nas casas grandes de outrora (do bairro recifense de Boa Vista) somente ‘imensos jardins com casas ao centro’”. Clarice Lispector — conclui o produtor-cineasta —, aquela que “ousou começar um livro com uma vírgula e terminá-lo com dois pontos, que viu nas rachaduras dos pés de oiti, que é pé teimoso, das calçadas do bairro, uma brecha para entrar no universo, que só compreendeu a razão de existir daquela cidade, quando viu seu carnaval, e os seus ‘restos’”.

Equipe do novo filme de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, no encerramento das filmagens

Na manhã desta terça-feira, 20 de setembro, o café da manhã de Marcélia foi dos mais animados. Cercada pelas atrizes Bete Mendes, homenageada este ano com o Troféu Vitória Especial, e Soia Lira, ela recebeu de Cristiano Burlan o Troféu Kikito que ganhou em Gramado, em agosto último, e não pôde receber presencialmente, pois filmava “Vaga” (ou “Lispectorando”) no Recife. Abraços, sorrisos e palmas foram acompanhados pelos hóspedes do hotel Golden Tulip Porto Vitória, que não entendiam nada. Um Kikito de Gramado em pleno Festival de Vitória, capital capixaba?! Coisas do cinema brasileiro, vida de artista.

E, para não dizer que tudo são flores, Marcélia contou à Revista de CINEMA, que chorou por três dias seguidos e teve três noites insones ao deparar-se com a tragédia que abateu-se sobre o ator e conterrâneo José Dumont, preso sob acusação de prática de pedofilia, seu parceiro no filme lispectoriano “A Hora da Estrela”. Ela interpretou Macabéia, e ele, Olímpico. O filme rendeu a ela o Urso de Prata no Festival de Berlim. As alegrias proporcionadas pelo Festival de Vitória estão servindo de bálsamo para tanto sofrimento.

Além de “A Mãe”, primeiro longa da competição brasileira, a noite inaugural da vigésima-nona edição do Festival de Vitória exibiu cinco curtas capixabas, dois deles muito bons — “MaKumba”, de Emerson Evêncio, e “Marés”, de Thaís Helena Leite. Outros dois, o experimental “Kikazaru”, de Matheus Cabral, e a ficção ”Noites de Pandemia”, de Ricardo Sá”, também prenderam a atenção do público e têm qualidades. O quinto, o besteirol “Latasha”, de Alex Buck, arrancou sonoras risadas do público, com suas piadas locais. Mas tem personagens caricatos e humor fácil.

Marcélia, com o Kikito que recebeu em agosto de Gramado, entregue por Cristiano Burlan (à dir.), junto com Soia Lira e Bete Mendes

“MaKumba” é um poema afro-brasileiro, de 24 minutos, fincado na expressão dos corpos que dançam e na musicalidade do rito religioso-miscigenado-depreciado. O coletivo CabeloSeco, que o produziu, tem a intenção clara de resgatar a riqueza cultural escondida atrás desse culto de gente estigmatizada por preconceitos seculares. Gente de origem pobre, vinda das zonas rurais, que somou ritos afros a ritos católicos, para cultuar suas entidades. Tudo é feito com esmero, sofisticação e beleza. Disparado, o grande candidato ao Troféu Vitória na mostra Foco Capixaba.

O filme que a professora Thaís Leite dedicou aos pescadores capixabas é um documentário substantivo, de 14 minutos. Ela registra vivências e memórias de três homens que vivem da pesca (Adão, Pepeu e Baianinho) e de um carpinteiro naval (Zé Adega). Todos têm muito a dizer e um jeito especial de fazê-lo. O que torna o filme cativante. Para completar, em animação, evoca-se a história de um “monstro marinho” que teria aparecido na costa atlântica, em 1984 (sim, em pleno século XX). Tudo com humor e picardia. E sem desrespeitar o espírito do mar, pois histórias de pescador costumam dialogar sempre com o fantástico.

Em tempo de inclusão de minorias, Matheus Cabral nos submete, em enxutos três minutos, à experiência de assistir a imagens sem falas e sons, presentes no ambiente filmado. “Kikazaru” nos mostra a rotina de uma dona de casa. Só que nós, que ouvimos, somos privados integralmente da banda sonora do filme. Em troca, nos são oferecidas as mesmas (e condensadas) legendas descritivas fornecidas aos deficientes auditivos. Somos tomados por provocativo desconforto.

“Noites de Pandemia”, de apenas oito minutos, registra as angústias de uma mulher solitária (Letícia Braga), enclausurada dentro de seu apartamento, durante os momentos mais duros da pandemia de Covid-19. Ao invés de encontrar alento, ela ouve, pela TV, voz que debocha da gripezinha, garante que brasileiro é imune a tudo, que ninguém deve se vacinar, etc. e etc. A atriz dá densidade à personagem e a voz (gravada por um locutor) reproduz discursos literais de conhecida figura pública brasileira.

“Latasha”, mix de comédia com ficção científica, tem formato televisivo. Ao longo de 23 minutos, vemos um escritor fracassado e sua mulher, que deseja impor-se como ‘digital influencer’, receberem a visita de um ser de mais de 11 mil anos. O público capixaba identificou as piadas e riu muito. Quem veio de fora, divertiu-se mais com a reação do público, que com o filme propriamente dito.

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