Mostra SP apresenta rivais de “Marte Um” e Prime Video exibe “Darín movie”
Por Maria do Rosário Caetano
“Marte Um”, o longa-metragem de Gabriel Martins, mineiro de Contagem, terá que enfrentar rivais fortíssimos para conseguir vaga como um dos cinco finalistas ao Oscar de melhor produção internacional.
O filme, produção brasileira de baixo custo, já vista, desde seu lançamento, há nove semanas, por 75 mil espectadores, dispõe, mesmo assim, de chances significativas, pois carrega o espírito do tempo. Tem elenco negro, trama humanista e bem-humorada, carrega valores universais e contemporâneos, resultando em pequeno e aguerrido Davi que, com sua funda, poderá derrotar alguns gigantes Golias. Como fez o pequeno “Moonligth” poucos anos atrás.
A Revista de CINEMA assistiu, no Prime Video, a um dos pré-indicados ao Oscar estrangeiro: o portenho “Argentina 1985” (foto), de Santiago Mitri, típico “Darín movie”. Ou seja, longa protagonizado pelo astro máximo do país platino, o ator Ricardo Darín. Também protagonista de um dos títulos que garantiram a estatueta ao nosso vizinho (“O Segredo dos seus Olhos”, de Juan José Campanella, 2010). O outro Oscar argentino pertence a Luiz Puenzo, por “A História Oficial” (1985).
Na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, assistimos a mais cinco dos pré-indicados ao Oscar (até o final, mais oito pré-classificados poderão ser conferidos – ver lista abaixo).
Entre eles estão três rivais de alta potência (e periculosidade) para “Marte Um”. A começar por “Bardo – Falsa Crônica de Algumas Verdades”, de Alejandro González Iñárritu, o representante do México. Em seguida, entra em cena “Alcarràs”, da espanhola Carla Simón, vencedor do Festival de Berlim. O terceiro contendor é “Nada de Novo no Front”, de Edward Berger, o escolhido da Alemanha, baseado em romance de Erich Maria Remarque, publicado em 1928. No elenco, o maior astro germânico dos dias atuais, Daniel “Adeus Lênin” Brühl.
Japão e Costa Rica têm dois representantes de significativas qualidades: respectivamente “Plano 75”, de Chie Hayakawa, e “Domingo e a Neblina”, de Ariel Escalante. Mas nenhum deles parece representar perigo real para nosso descolado “Marte Um”. Falta-lhes sintonia fina com seu tempo histórico. “L’air du temps”, como diriam os franceses.
Com “Argentina 1985” (disponível na Amazon Prime Video), o jovem Santiago Mitri, do sensível “O Estudante” e de “A Cordilheira”, pode emplacar sua primeira indicação ao Oscar. Se chegar lá, será recompensado por sua direção sóbria e elegante, pelo notável desempenho de Ricardo Darín (e todo o elenco), pela oportunidade do tema escolhido (a punição de militares que cometeram atrocidades durante a ditadura argentina na década de 1970) e pelo reconhecimento do Festival de Veneza, que o selecionou para a disputar o cobiçado Leão de Ouro. O filme ganhou o Prêmio da Crítica, atribuído pela respeitada Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema).
“Argentina 1985”, como demonstra seu título, se passa na década de 80, quando um promotor, Júlio César Strassera (Darín), juntou-se a jovem colega (Peter Lanzani) para julgar os bárbaros atos cometidos pela Junta Militar (Exército, Marinha e Aeronáutica), que assumiu o comando ditatorial do país.
Com fotografia de rara beleza, em tons dourados, mas discretos, o filme se constrói sem maniqueísmo e sem heróis. Strassera, pai de dois adolescentes, teme represálias. Encontra apoio na esposa e nos filhos. Sabe que precisa, também, de apoio de um time disposto a buscar provas onde elas estiverem para apresentar ao tribunal. Não bastam oratória e tiradas retóricas. Consegue reunir jovens, que sob sua liderança (dele e de Ocampo) abastecerá o poder Judiciário com robusta documentação (16 volumes de quatro mil páginas com mais de 800 testemunhos colhidos em todos os cantos da Argentina).
O candidato mexicano é peso pesadíssimo. Afinal, Alejandro González Iñárritu, 59 anos, diretor de “Bardo – Falsa Crônica de Algumas Verdades”, não só é membro da Academia de Cinema de Hollywood, como tem uma penca de estatuetas na estante. E integra o “Quarteto Azteca”, aquele que na última década assombrou Hollywood e “passou o rodo” em cerimônias oscarizadas – Alfonso Cuarón (“Gravidade”), Guillermo del Toro (“Labirinto do Fauno” e “A Forma da Água”) e o diretor de fotografia Emmanuel Lubezki. Juntos, somam tantos “Oscar”, que se passarem com eles ao mesmo tempo pela Alfândega pagarão altos impostos por peso, além de levantar altas suspeitas (“o que estes “morenitos” estão carregando aí? Contrabando?”)
Do quarteto nascido abaixo do Rio Grande, Iñarritu é o mais laureado. Seu “Birdman” ganhou o Oscar principal. Conquistou, ainda, duas estatuetas como diretor (além de “Birdman”, por “O Regresso”, com Leonardo DiCaprio), etc., etc. Radicou-se nos EUA por mais de 20 anos. Depois de um filme mexicano – o bem-sucedido “Amores Perros”, que projetou Gael García Bernal – foi viver em Los Angeles. Lá criou os filhos, bilingues. Lá montou a produção de “21 Gramas”, “Babel”, “Biutiful”, “Birdman” e “O Regresso”.
Eis que Alfonso Cuarón encantou o mundo com “Roma”, o seu “amarcord”, filmado em preto e branco, no bairro onde nasceu e cresceu, na tumultuada Cidade do México, maior metrópole das Américas. Iñarritu também sentiu saudade de casa. Resolveu fazer um filme falado em espanhol e ambientado em sua cidade natal. O resultado é o caudaloso “Bardo”, que integrou a seleção do Festival de Veneza e dividiu a crítica. Aliás, quando o diretor de “Amores Perros” não dividiu os críticos?
Barroco, excessivo, grandiloquente, desmedido. Sim, ele merece tais qualificações. Mas “Falsa Crônica de Algumas Verdades” tem defeitos e muitas (muitas!) qualidades. A maior delas, além de seu protagonista (magistralmente interpretado por Daniel Giménez Cacho, de “Profundo Carmesi”, de Ripstein) é o debate que propõe sobre as complexas relações entre o país latino e o anglo-saxão. Este usurpou imensa parte do território de mexicas, aztecas e maias (Califórnia, Texas, etc., etc., eram regiões mexicanas).
“Nós as compramos”, argumentam os “branquinhos” aos “morenitos”. E o dinheiro vai falando mais alto, enquanto multidões de mestiços tentam cruzar a fronteira para ganhar a vida na terra do Tio Sam. As contradições do protagonista Silverio Gama (Giménez Cacho), documentarista digno de muitos prêmios atribuídos pelos gringos, são expostas sem dó, nem piedade. Ele quer que os filhos, educados nos EUA, falem espanhol, sejam mexicanos. Mas teme que estabeleçam residência na capital azteca, pois seria violenta demais, teriam que viver fechados em condomínios. Enquanto em Los Angeles (ou Boston) podem se locomover em total segurança, usar transportes públicos (que ele mesmo nunca usou).
Num dos melhores momentos do filme, a fonte é brasileira. Iñarritu utiliza entrevista que o cineasta (e jornalista) Arnaldo Jabor (1940-2022) realizou com o traficante Marcola sobre seu ofício. O que o contraventor brasileiro diz vai parar na boca de narco mexicano, que debocha da lentidão do Estado e suas instituições, enquanto o Crime tem agilidade e pode atender às comunidades com eficiência e rapidez. Os diálogos parecem inspirados em “Estorvo”, o romance de Chico Buarque, e nas reflexões que sobre ele foram feitas por Roberto Schwarz.
Os 174 minutos de “Bardo” poderiam ser reduzidos se Iñarritu diminuísse o espaço dado à perda do filho Matteo, que viveu apenas algumas horas. Bastava a poderosa sequência inicial do anti-parto. Ou parto reverso. Mas barroco, e por consequência excessivo, ele retomará o assunto infinitas vezes. Mesmo assim, seus colegas estadunidenses não resistirão ao potente diálogo que o filme propõe sobre a conflituosa convivência das duas nações da América do Norte.
“Bardo”, como “Roma”, é um produção da Netflix, e pode ser vista pelos espectadores nesta poderosa rede de streaming. Iñarritu gravou simpático vídeo para o público brasileiro da Mostra SP, pedindo que “não se preocupe muito em entender o filme”, mas que “se disponha a senti-lo”.
“Alcarràs”, de Carla Simón, é uma maravilha. Falado em catalão, com elenco cativante e natural (o protagonista parece irmão gêmeo do ator Sergí Lopez), o filme flui como as águas de um rio. Baseado em experiências da própria diretora, que estreou com o belo “Verão de 83”, o longa traz no nome o território onde são cultivados os pessegueiros, fonte de sustento da família que os cultiva. Três gerações (avós, filhos e netos endiabrados), todos aferrados à terra e a seus ofícios.
Novos capitalistas chegam com novas tecnologias para modernizar o campo. E muito dinheiro para comprar as terras. Trata-se de uma ficção, de caráter documental, que evoca, em alguma medida, por sua beleza e poesia, o fascinante documentário de Victor Erice, “O Sol do Marmelo” (1992). Berlim acertou em cheio ao entregar seu Urso de Ouro a “Alcarràs”.
“Nada de Novo no Front”, de Edward Berger, é outra megaprodução da Netflix. Trata-se da segunda adaptação do romance de Remarque, best seller alemão. A primeira foi filmada em 1930, pelo estadunidense Lewis Milestone (indicada a cinco Oscar, ganhou dois), com atores e idioma anglo-saxão. Agora, não. O filme é 100% germânico. Com atores alemães e franceses, já que os protagonistas lutam nas trincheiras das batalhas finais da sangrenta Primeira Guerra Mundial. Os antagonistas são um jovem pelotão da infantaria do Kaiser e o Exército do General Ferdinand Foch (interpretado por Thibault de Montalemert, o dono da agência de “Dix por Cent”). No papel do negociador, em nome dos alemães, está Matthias Erzberger (o astro Daniel Brühl, também coprodutor do filme).
O adolescente Paul Bäumer (Felix Kammerer) e seus amigos Albert e Müller (este, o também famoso Moritz Klaus) se alistam como voluntários no exército germânico, movidos por patriotismo. Mas a decepção chega rapidamente. Eles deparam-se com trincheiras brutais, fome, desespero, fogo, morte. Um pesadelo sem fim. Embora conte com alguns recursos (poucos, registre-se) que lembrem narrativas romanescas (um lenço perfumado, um arrependimento frente ao inimigo, etc.), há momentos em que o filme nos faz lembrar um dos maiores épicos de guerra da história do cinema (“Vá e Veja”, do soviético Elem Klimov, 1984).
Uma curiosidade: Erich Maria Remarque (1898-1970), que alcançou sucesso planetário com seu cruel retrato da Primeira Guerra Mundial, migrou-se para os EUA, onde viria a casar-se com a atriz Paulette Godard (“Tempos Modernos”, ex-esposa de Charles Chaplin e namorada de Diego Rivera). Os dois viveram juntos até a morte do escritor, aos 72 anos, nos EUA.
“Plano 75”, escrito e dirigido pela japonesa Chie Hayakawa, é um drama realista, mas que parte de premissa totalmente fictícia. Afinal, supõe que o país oriental adote, para resolver problemas advindos do envelhecimento da população, programa governamental (o tal plano número 75) que estimula a eutanásia. Ou seja, quem, já entrado nos anos, se dispuser a morrer por vontade própria, receberá estímulos. Uma mulher idosa (Chieko Baishô, excelente), premida por enormes dificuldades financeiras, viverá seu calvário. Um jovem rapaz se dedicará a vender, de forma pragmática, o tal Plano 75. Uma jovem cuidadora filipina também terá que fazer escolhas que envolvem vida e morte. Será que os integrantes da Academia de Hollywood estão abertos a tema tão doloroso?
O candidato da Costa Rica, “Domingo e a Neblina”, de Ariel Escalante, é um filme singelo, mas encantador. Seu protagonista, o pequeno proprietário rural Domingo (Carlos Ureña, ótimo), vive nas montanhas tropicais do país centro-americano. Quando uma rodovia vai cruzar suas terras, o preço é estabelecido pelos poderosos e todos devem negociar suas propriedades. Domingo se nega a fazê-lo. Pistoleiros começam a amedrontá-lo. A filha implora para que ele vá morar com ela e deixe o local. Ele resiste. Age assim porque aquele pedaço de terra esconde um segredo. As chances do filme chegar a finalista ao Oscar são pequenas. Mas o filme merece ser visto.
Os outros candidatos ao Oscar presentes na Mostra SP:
. “Joyland”, de Saim Sadiq (Paquistão)
. “Febre do Mediterrâneo”, de Maha Haj (Palestina)
. “Alma Viva”, de Cristèle Alves Meira (Portugal)
. “Boy from Heaven”, de Tarik Saleh (Suécia)
. “Um Pedaço do Céu”, de Michael Koch (Suíça)
. “Peregrinos” (Piligrimai), de Laurynas Bareiša (Lituânia)