“Sinfonia de um Homem Comum”, “Sideral” e “Marte Um”: três brasileiros em busca de vaga no Oscar

Por Maria do Rosário Caetano

“Sinfonia de um Homem Comum” (foto acima), décimo-terceiro longa-metragem do paraibano-carioca José Joffily, participa, até o dia 20 de novembro, do IDFA, o poderoso Festival de Documentários de Amsterdã, na Holanda. Ele é um dos títulos selecionados pela mostra competitiva de filmes investigativos.

Quem conhece a obra completa de Joffily, que já realizou projetos internacionais como “Olhos Azuis” e “Soldado Estrangeiro”, sabe que “Sinfonia” é o mais sólido de seus seis documentários. E que o cineasta segue, seja na ficção ou no documentário, empenhado em abordar temas de grande importância social e política.

Será que “Sinfonia de um Homem Comum” conseguirá espaço na ‘short list’ dos 15 semi-finalistas (categoria longa-documental) que a Academia de Artes e Ciência Cinematográficas de Hollywood divulgará dia 21 de dezembro? Duas datas são fundamentais para o prêmio mais midiático do mundo do cinema — dia 8 de fevereiro serão conhecidos os cinco finalistas em cada uma das 23 categorias. No dia 27 de março serão entregues as estatuetas douradas aos vencedores.

Houve ano em que circulou, nos meios cinematográficos, lista de mais de cem longas documentais habilitados a concorrer ao Oscar. Esse ano essa lista (ainda) não se tornou pública.

Se, por alguma razão, “Sinfonia de um Homem Comum” chegar à ‘short list’ do Oscar, ele será o terceiro título brasileiro a tentar, neste ano, vaga na poderosa vitrine hollywoodiana.

No campo da disputa de melhor longa internacional, o representante brasileiro é “Marte Um”, do mineiro Gabriel Martins, indicado oficialmente pela Academia Brasileira de Cinema. O outro é o curta-metragem potiguar “Sideral”. Seu diretor, Carlos Segundo, conta que o filme já foi, oficialmente, disponibilizado pela Academia de Hollywood, para ser assistido por seus integrantes.

Na Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso, no litoral do Rio Grande do Norte, a atriz Camila Damião, do quarteto de protagonistas de “Marte Um”, garantiu, em debate público, que, “se nosso filme entrar na lista dos cinco finalistas, ninguém nos segura mais”. O longa mineiro, produção da Filmes de Plástico, de Contagem, está em cartaz há 10 semanas e já foi visto por 80 mil espectadores.

O novo documentário de José Joffily, grande surpresa da última edição do Festival É Tudo Verdade de São Paulo, teria sua vida facilitada na corrida ao Oscar se tivesse vencido o festival paulistano. Mas, por barbeiragem do júri oficial, perdeu o prêmio principal, que o pré-qualificaria à disputa, sem ter que buscar novos (e tortuosos) caminhos. Em compensação, “Sinfonia de um Homem Comum” foi reconhecido pela Associação de Profissionais de Edição Audiovisual, no mesmo É Tudo Verdade, que atribuiu a Jordana Berg seu Prêmio EDT (de melhor montagem). E, em seguida, veio o reconhecimento do Festival Internacional de Cinema Documentário de Amsterdã, que o escolheu para sua disputadíssima edição 2022.

Ao questionar-se aqui a decisão da historiadora Eloá Chouzal, do diretor de fotografia Carlos Ebert e do documentarista Renato Terra (júri do ETV 2022), não se quer defender a tese de que tal colegiado deva guiar-se por submissão aos ditames da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Claro que não. Mas a escolha de “Quando Falta o Ar”, das irmãs Helena e Ana Petta, um filme sensível, mas que destacou-se mais pelo tema da hora (a pandemia), que por ousadias formais ou temáticas, mostrou-se contraproducente. Repetiu-se, em ano seguido, o erro do ETV 2021, que preteriu “Segredos do Putumayo”, de Aurélio Michiles, projeto de envergadura planetária, com presença em três continentes (África, América Latina e Europa) e abordagem de questões candentes (como o colonialismo, materializado na exploração brutal da mão de obra negra e indígena), pelas divertidas memórias dos “coroas” da Libelu (Liberdade e Luta, corrente do Movimento Estudantil uspiano).

Vamos, pois, ao que interessa: no mais importante documentário da carreira do veterano José Joffily, temos no centro da narrativa um personagem de alcance mundial, o diplomata brasileiro José Maurício Bustani. Anos atrás, ele foi empossado diretor da OPAQ (Organização para a Proibição de Armas Químicas), órgão da ONU voltado ao controle armamentista. Foi destituído de maneira vergonhosa por forças ocultas lideradas pelos imensos poderes da maior potência do mundo, os EUA, e seus aliados. Joffily sistematizou, brechtianamente, a corajosa história desse homem que enfrentou o poder desmesurado dos Estados Unidos e de seus parceiros servis.

Bustani é um diplomata que ama tocar piano, cultiva a arte e a cultura. Cultiva as teclas de seu instrumento com a mesma convicção que emprestou à sua luta contra a invasão do Iraque, baseada em imensa e fabricada mentira (o país árabe teria perigoso arsenal de armas químicas).

Passados 19 anos da invasão do Iraque (e mais uma cruenta guerra não referendada pelo Conselho Geral da Organização das Nações Unidas), Joffily reencontra Bustani em sua casa brasileira, sentado ao piano e executando peça que o apaixona. Como um ourives, o cineasta reconstituirá a história desse Dom Quixote, que lutou com todas as suas forças, perdeu a batalha, mas não traiu sua consciência, nem se dobrou à arrogância dos donos do mundo.

O que dá grandeza e diferencia o filme de tantos outros realizados no Brasil é que ele não fica na superfície dos fatos, nem se restringe ao amontoamento de depoimentos na linha ‘cabeças-falantes’. Menos ainda a testemunhos na base do “ouvi dizer”. Ele registra a voz de pessoas que respaldaram as autoridades norte-americanas na hora de invadir o Iraque e hoje admitem que o fizeram sem dispor de evidências factuais, de provas legítimas. Caso do ex-porta-voz de George Bush, Richard Boucher, hoje professor da Universidade de Brown, em Providence. Boucher admite, com todas as letras (ou fonemas), que foi porta-voz de uma mentira bancada pelos EUA, Reino Unido, Austrália e alguns parceiros.

Outro trunfo do filme é a participação do neozelandês Bog Rigg, ex-funcionário da OPAQ, em serviço em sua sede, na cidade holandesa de Haia (o IDFA sabe que filme escolheu para sua seleção de Obras Investigativas!). Rigg confirma toda a pressão sofrida pelo brasileiro Bustani, liderada-comandada por John Bolton, poderosíssimo secretário de Bush.

O ex-funcionário da OPAQ, a quem o documentário é dedicado, morreria alguns meses depois de prestar seu valioso testemunho a  “Sinfonia de um Homem Comum” (as entrevistas somam esforços de Joffily e de parceiro de imensa valia, o estadunidense David Meyer, produtor de “Carmen Miranda: Bananas is my Business” e outros filmes de Helena Solberg).

Coube a Jordana Berg, parceira de Eduardo Coutinho em diversos projetos, organizar o rico material colhido por Joffily no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa e no Oriente Médio.

Um registro final: até o júri oficial do ETV 2022 reconheceu a imensa qualidade do trabalho de Jordana Berg, atribuindo a ela singela menção honrosa pela edição de “Sinfonia de um Homem Comum”. Sua justificativa: por contar “com montagem envolvente, o filme narra a história de um brasileiro que lutou contra os imensos interesses norte-americanos por trás da Guerra do Golfo e na Síria. O filme é hábil em equilibrar a índole inabalável e o talento artístico do diplomata José Bustani para contar sua história de jeito original e eficiente”.

 

Sinfonia de um Homem Comum
Brasil, 2022, 84 minutos
Direção: José Joffily
Documentário com depoimentos de José Maurício Bustani, FHC, Lula, Bog Rigg, Richard Boucher, Camilla Bustani, Celso Amorim, Celso Laffer, Janine Bustani, John Holmes, Scott Ritter.

 

FILMOGRAFIA
José Joffily (João Pessoa/PB, 27 de novembro de 1945)

1985 – “Urubus e Papagaios” (ficção)
1992 – “A Maldição de Sanpaku” (ficção) – Vencedor do Festival de Brasília
1996 – “Quem Matou Pixote?” (ficção) – Vencedor do Fest Gramado
2001 – “Chamado de Deus” (documentário)
2002 – “2 Perdidos Numa Noite Suja” (ficção)
2005 – “A Vocação do Poder” (doc, codireção de Eduardo Escorel)
2005 – “Achados e Perdidos” (ficção)
2009 – “Olhos Azuis” (ficção) – Vencedor do Festival de Paulínia
2011 – “Mão na Luva” (ficção em parceria com Roberto Bomtempo)
2014 – “Prova de Artista” (doc)
2015 – “O Caminho de Volta” (doc, codireção de Pedro Rossi)
2019 – “Soldado Estrangeiro” (doc, codireção de Pedro Rossi)
2022 – “Sinfonia de um Homem Comum” (doc)

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