“Rio, Negro” empreende apaixonante mergulho na cultura afro-brasileira

Por Maria do Rosário Caetano

O documentário “Rio, Negro”, dirigido pela dupla Fernando Sousa e Gabriel Barbosa, está disponível em cinemas de São Paulo e Rio de Janeiro. Merece ser visto por sua temática incendiária, por seu time de entrevistados – gente da pesada como o ensaísta dos “cruzos” Luiz Antônio Simas, a serena e instigante Ynaê Lopes dos Santos, o carnavalesco Leandro Vieira, o incrível (bota incrível nisso) Eryck Quirino – e por ser um “cabeças-falantes” cheio de ginga e bossa. Ou seja, um filme que nunca namora o tédio, nem o tom professoral. “Rio, (atenção para a vírgula) Negro” corre vivo pela tela, cheio de cores, direção de arte esperta e trilha sonora capaz de levantar até defunto.

Fernando e Gabriel se propõem a apresentar “um olhar sobre a história do Rio de Janeiro, assentada na presença e contribuição da população negra de origem africana à formação da cidade”. A partir de dezessete entrevistas (ufa!) e amplo material de arquivo (fotos formidáveis e alguns trechos de filmes), a trama se constrói com excelentes narradores. O articuladíssimo cuíqueiro Quirino, da Mocidade Independente de Padre Miguel, e Simas e suas histórias de “cruzos” (encruzilhadas afro-indígenas-e-brancas) se somam a historiadores, filósofos, geógrafos, artistas, mães-de-santo, arquitetos e urbanistas (além de Ynaê, Eryck, Leandro e Simas, Álvaro Pereira Nascimento, Eduardo Possidonio, Carlos Eugênio, Nielson Bezerra, Christian Lynch, Mãe Meninazinha de Oxum, Antonio Edmilson, Tainá de Paula, Haroldo Costa, Vinícius Natal, Helena Theodoro, Mauro Osório e Henrique Silveira). E vão, todos, nos seduzindo com suas falas enriquecedoras. Dois atores – os jovens Juliana França, na pele de uma baiana e uma porta-bandeira, e Átila Bee, encarnado no mestre-sala dos mares, o marinheiro João Cândido – intervêm ficcionalmente, e com parcimônia, na narrativa.

Nas duas primeiras partes do filme — concordemos ou não com o que dizem os entrevistados (muitos deles em cenário sobre fundo vermelho, decorado com objetos afro-brasileiros) —, vamos mergulhando numa viagem apaixonante. As falas nada têm de professorais. São vivas, enfáticas, arrebatadores, algumas polêmicas. Compreenderemos que – até a proclamação da República/1889, quando o branqueamento da população via importação de mão-de-obra europeia se tornou política de Estado – o Rio, capital federal, gravitava em torno da Pequena África. Ou seja, tinha seu polo mais dinâmico, seu centro vital, na região portuária do Valongo. O Rio de Janeiro era “a maior cidade escravocrata do mundo”.

Amedrontada, a elite branca reagiria, impondo seu projeto social, econômico e político “civilizatório”, tão bem representado pelas reformas de Pereira Passos, que expulsou os pretos e pobres para os morros e transformou o Rio numa cópia de Paris.

E aí, “Rio, Negro” chega à sua terceira e mais problemática parte. A que discute – superficialmente – a mudança da capital da República para Brasília, 62 anos atrás (63 anos em 21 de abril próximo). Depoimentos apressados (e bairristas) culpam o projeto levado a cabo por JK e colaboradores pelas agruras do Rio, que perdeu sua condição de capital federal. Perdendo, por consequência, sua pujança e glória.

Os pilares que sustentaram a transferência para o Planalto Central – em especial a interiorização de projeto de país atavicamente ligado ao litoral – são desprezados. E dois outros pilares, pró-permanência no Rio de Janeiro, são magnificados.

1. A capital do Império (e das Repúblicas até então) seria uma cidade negra, portanto incômoda às elites. O material de imprensa de “Rio, Negro” afirma com todas as letras: “a transferência da capital para Brasília foi estratégia racista e de apagamento da população negra”.

2. O Rio seria – outro agravante – uma cidade politizada-mobilizada, portanto incômoda. Nada melhor, para a elite, portanto, que construir um centro urbano artificial, controlado, higienizado, “sem povo”. Esta é a conclusão dos cariocas-fluminenses ouvidos pelos dois cineastas. Nenhuma voz nordestina, candanga, paulista ou nortista é ouvida.

Recorre-se, até, a escritos do diplomata e militante do liberalismo conservador José Osvaldo Meira Penna (1917-2017) para erguer o pensamento retrógrado que teria servido de sustentação à criação de Brasília. Sem que se dê voz aos que conceberam a cidade como projeto da utopia modernista, defendida, inclusive, por um arquiteto socialista (Oscar Niemeyer).

Apesar dessa complicada parte derradeira – ligeira e mal fundamentada –, o filme merece ser visto, pois despertará instigantes reflexões. E tudo que o Brasil precisa nestes tempos de polarização ideológica e ódios é de debate.

 

Rio, Negro
Brasil, 96 minutos, 2023
Direção e roteiro: Fernando Sousa e Gabriel Barbosa
Atores: Átila Bee (João Cândido) e Juliana França (porta-bandeira)
Fotografia: Laís Dantas
Montagem: Eduardo Braz, Gabriel Barbosa e Thomaz Tarre
Direção de arte: Caroline Meirelles
Figurino: Greice Simpatia e Espaço Afro Obìnrin Odara
Produção: Quiprocó Filmes e Casa Fluminense

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