O adeus ao cineasta Prates Correia, criador do “Cabaret Mineiro” e das “Noites do Sertão“ roseano
Por Maria do Rosario Caetano
Carlos Alberto Prates Correia, diretor mineiro, que dedicou sua vida ao cinema de invenção, aquele pautado por narrativas livres e experimentais, morreu, neste sábado, 27 de maio, aos 81 anos. Deixa obra enxuta, mas de grande importância para o cinema brasileiro. Os fãs de seu “Cabaret Mineiro”, vencedor de Gramado, o têm num altar. Mesmo caso dos admiradores de “Perdida”, protagonizado por Maria Sílvia, e “Noites do Sertão”, sua adaptação da novela “Buritis”, de João Guimarães Rosa, que encontrou em Débora Bloch e Tony Ramos inesquecíveis e delicadas representações.
No meio cinematográfico brasileiro, muitos realizadores evocaram nas redes sociais, com saudade e carinho, o arredio cineasta mineiro, que migrou para o Rio em 1968, mas nunca se libertou das Minas Gerais de sua infância, adolescência e primeira maturidade. Todos os seus longas-solo (foram apenas seis em quase 60 anos de carreira) estão impregnados de algo de sua terra de origem. Seja a poesia de Drummond, a prosa de Rosa, os cantos populares tão bem captados por Tavinho Moura ou a geografia do estado que a mineração (ainda) não conseguiu destruir.
O cineasta Murilo Salles, diretor de fotografia de “Cabaret Mineiro”, relembra a experiência com Prates: “este filme foi uma dádiva, um presente dos Deuses da Cinematografia. Foi um milagre que aconteceu nas Gerais Mineiras num encontro surpreendente entre Carlos Alberto e eu. Sou Minas Gerais na alma. Meu pai nasceu no Serro. ‘Cabaret’ foi uma celebração em cada plano, alegria e gozo de cinema. PRATES-GODARD. Que luxo maior poderia querer?”
O diretor de “Como Nascem os Anjos” prossegue em sua rememoração do trabalho com Prates: “eu voltava de estada de três anos em Moçambique, completamente mergulhado nos inacreditáveis processos das transformações sociais ainda em seus momentos vitais, para fotografar ‘Cabaret Mineiro’! Não tinha feito nada desde ‘Dona Flor e seus Dois Maridos’. Estava dando aula de fotografia, treinando militantes militares a filmar a revolução moçambicana. Desci de paraquedas em Grão Mogol, em Montes Claros. Carlos Alberto, Tavinho Moura, Murilo Antunes! E qual foi meu espanto em perceber em cada plano que filmamos uma certa coceira godardiana. Estávamos tinindo!”. Para concluir, “Cabaret é um rebento de êxtase. Realmente uma dádiva, joia rara da cinematografia inventiva brasileira”.
A produtora mineira, de Montes Claros como Prates, Vânia Catani (“Festa da Menina Morta”, “O Palhaço”, “Medusa”) relembra a importância do conterrâneo. “Comecei a desejar e a entender que poderia sonhar com aquilo (o cinema), quando, ainda adolescente, vi pela primeira vez um set de filmagem. O de ‘Cabaret Mineiro’. Eu estava do lado de fora da corda que delimitava o espaço sagrado da equipe. Aquela vivência foi inesquecível e definitiva na minha vida”.
Hoje, produtora das mais atuantes no cinema brasileiro (coproduziu “Zama”, da argentina Lucrécia Martel), Vânia constrói metáfora poética para evocar a morte do artista que encaminhou seus sonhos adolescentes para a prática cinematográfica: “Depois de encantar por aqui, agora Prates encantou-se a si mesmo e voou como um passarinho para a eternidade. Em mim, só gratidão”.
Carlos Alberto Prates Correia era o que os mineiros chamam de “bicho do mato”. Pessoa arredia, na dele, não gostava de ser fotografado, nem entrevistado. Consegui, como repórter, realizar duas entrevistas com ele, uma em sua casa no Rio de Janeiro. A outra, por escrito, para o Estadão, quando em 2001 ele ganhou mostra retrospectiva no Canal Brasil.
Para a primeira, desloquei-me de Brasília até a capital fluminense, depois de exercício de diplomacia exercido por Marco Antônio Guimarães, então diretor-artístico do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Prates, renomeado Charles Stone, ia competir no Festival candango com “Minas-Texas”. Ele, porém, defendia reivindicação das mais estranhas: queria dar a entrevista, desde que o entrevistado fosse CHARLES STONE!!! Topei o “combinado” e arrumei as malas. Eu conhecia a natureza do mineiro, mineira que sou (como ele, do interior). Afinal, Prates e Charles Stone eram a mesma pessoa.
Em 1984, no Festival de Gramado, eu fôra testemunha de algo inusitado: Prates não compareceu ao debate de “Noites do Sertão”, produção badaladíssima do Grupo Novo de Cinema. Nunca, em minha larga experiência festivaleira, vira (nem veria) algo parecido.
Tarcísio Vidigal, produtor de “Noites do Sertão”, seria, anos depois, o “embaixador” de minha segunda entrevista com Prates (a que enganchou-se na homenagem que o Canal Brasil prestara ao “bicho do mato”).
O comando de Gramado e a imprensa estavam, naquela manhã de 1984, estupefatos com a ausência do cineasta. Como um diretor, já premiado em Gramado (com “Cabaret Mineiro”), não comparecia ao badalado debate do dia seguinte, no belo auditório do Hotel Serra Azul, com a imensa plateia formada de dezenas de espectadores e a fina flor do jornalismo cultural?
O ti-ti-ti começou: “Prates tomou um porre federal depois da sessão e está nocauteado!”, “Prates é tímido, não gosta de dar entrevista e menos ainda de responder a perguntas de dezenas de pessoas!”, “Prates é um mineiro na dele, um bicho do mato!”…
Resultado: ele não compareceu mesmo ao debate e o ator Tony Ramos, com modéstia jamais vista num astro de horário nobre das telenovelas da Globo, segurou o tranco. Isto depois de avisar que era apenas um ator, que não se sentia preparado para discorrer sobre a obra de Guimarães Rosa, nem sobre a realização artístico-técnica de um filme. Só poderia falar sobre seu labor como intérprete.
O debate transcorreu calmo, com a imprensa impressionada com a modéstia do astro global. A grande surpresa viria no dia da entrega dos prêmios. Os dois “favoritaços” ao Kikito de melhor filme eram “Noites do Sertão” e “Nunca Fomos Tão Felizes”, este de Murilo Salles, o fotógrafo de “Cabaret Mineiro”. O júri rachou ao meio. O crítico Nelson Hoineff, que integrava o colegiado, propôs solução salomônica (metade dos prêmios para cada um — na verdade uns sete foram para o filme de Prates). Mas o crítico tirou da cartola outra solução — um tertius: “O Baiano Fantasma”, de Denoy de Oliveira. Que ganhou o Kikito de melhor filme. Mas a quase totalidade das estatuetas, que representam o deus sol (ou uma hortênsia estilizada), foi empalmada por Prates e por Murilo Salles. Que dali a alguns meses venceria o Festival de Brasília com seu “Nunca Fomos Tão Felizes”.
Em 2007, Gramado entregaria seu segundo e principal Kikito ao filme-testamento de Prates – o documentário “Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais”. Mergulho do artista no cinema mineiro, do qual ele fora um dos mais criativos artífices.
Por fim, um registro de outra face de Prates: ele era “um excelente produtor”. Quem garante é outro produtor mineiro, o muito experiente Tarcísio Vidigal. Depois de lembrar que o cineasta era um expert no ramo dos números matemáticos e econômicos, Tarcísio me disse (está registrado em página inteira no Estadão): “além de grande criador, Prates é um excelente economista”. Entende de “produção e sabe fazer filmes baratos”. Foi parceiro próximo de Joaquim Pedro de Andrade, que o escalou para o setor da produção (em “Os Inconfidentes” e “Guerra Conjugal”).
Na mesma oportunidade, Tarcísio se revelou como “o contrabandista” da rara foto (a mais conhecida de Prates, ele próximo a uma câmera 35 milímetros) para a imprensa. “Pedi ao still do filme que fotografasse o Prates num momento de descontração, perto da câmera. Com a foto pronta, distribuímos, sem ele saber, para os jornais. Quando ele se informou do que acontecera, insistiu para que fôssemos recolher uma por uma. Não fomos, claro”.
Hoje, na internet, já é possível encontrar outras (mas ainda raras) imagens e entrevistas do mineiro de Montes Claros. Mas contam-se nos dedos as fotos e as entrevistas. Como o curitibano Dalton Trevisan, Carlos Alberto Prates Correia era uma espécie de “vampiro do Vale do Jequitinhonha”.
FILMOGRAFIA
Carlos Alberto Prates Correia (Montes Claros, 28/09/41 – RJ, 27/05/23)
1965- “O Milagre de Lourdes” (curta)
1968 – “Os Marginais” (primeiro episódio)
1970 – “Crioulo Doido” (longa)
1975 – “Perdida” (longa) – Prêmio Coruja de Ouro e Prêmio Governador do Estado de São Paulo
1978 – “Bem Atrás da Câmera” (curta)
1979 – “Cabaret Mineiro” – melhor filme e melhor direção em Gramado
1983 – “Noites do Sertão” – Prêmio Especial do Júri em Gramado, mais prêmios técnicos e artísticos, também no Festival de Brasília.
1989 – “Minas-Texas” – assinado com o pseudônimo de Charles Stone — melhor roteiro, atriz (Andréa Beltrão), fotografia (Gilberto Otero), trilha sonora (Tavinho Moura), atriz e ator coadjuvantes (Maria Sílvia e Álvaro Freire) no Festival de Brasília.
2007 – “Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais”, vencedor de Gramado (melhor filme e melhor montagem) – documentário