“O Homem Cordial” revela um país marcado pela violência e por fake-news

Por Maria do Rosário Caetano

“O Homem Cordial”, segundo longa-metragem do brasiliense Iberê Carvalho, protagonizado pelo roqueiro Paulo Miklos, nos conduz a duas significativas “palavras geradoras” – caso  queiramos recorrer ao universo pedagógico de Paulo Freire.

Comecemos por seu título, que nos remete ao livro “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Hollanda. Dele extraímos a palavra “cordial”. E a ela acrescentamos a seiva do filme – a “violência”.

A “cordialidade” do título,  na verdade, é uma falsa palavra-geradora, pois o que encontramos na narrativa — fertilizada por “Depois de Horas” (“After Hours”, Martin Scorsese, 1985) – são homens nada cordiais. Aurélio Sá, o protagonista da fragmentada trama, vive noite de tantas adversidades na metrópole dividida, que somos obrigados, de saída, a tomar o termo “cordial” por sua antítese.

O que veremos ao longo de enxutos 83 minutos nos prova que a “cordialidade” há muito deixou de nos caracterizar. Se é que um dia nos caracterizou (e, além do mais, as ideias de Sérgio Buarque não podem ser simplificadas, ou reduzidas, ao “brasileiro de bom coração”). A saga do quase sessentão Aurélio (o Paulo Miklos  do seminal  “O Invasor”), nos revelará um país brutal, racista, demófobo.

“O Homem Cordial” demorou a chegar às nossas salas de cinema. Ele foi realizado em 2018, pós-impeachment de Dilma e nos momentos que germinaram o triunfo da extrema-direita, liderada por Bolsonaro. Premiado em Gramado, em 2019 (melhor ator, melhor trilha sonora), o filme foi guardado por causa da pandemia. Mas não envelheceu. Ao contrário. Chega aos espectadores no momento exato, em que o país discute possível regulação, via Parlamento, das redes sociais e de um de seus subprodutos, as multiplicação infinita e avassaladora de fake news.

Plano nervoso – e nebuloso – abre a narrativa de Iberê Carvalho. Vemos confusão entre suposto “bandido”, policial e cidadãos comuns. Um destes é o roqueiro Aurélio, que, na importante sequência seguinte, tentará com sua banda reviver o sucesso de outrora. Mas algo dá errado no badalado show de sua banda punk-rock, a Instinto Radical. Ele começa a receber vaias estrondosas e objetos lhe são arremessados pela revoltada plateia. Revida com gritos e gestos. Forma-se a confusão.

E por que a plateia vaia o músico? Porque, nas redes sociais, ele é acusado de ter matado um policial. Descompensado, Aurélio e sua trupe (empresária e músicos) tentam recobrar os ânimos. Vão jantar juntos, mas os desencontros continuarão se multiplicando. Se, em “O Invasor”, o pistoleiro Anísio (o próprio Miklos) vinha da periferia cobrar o que “lhe deviam” dois engenheiros-empreiteiros, agora, é o roqueiro de classe média branca, quem vai à periferia ver se encontra paz no bar de amigo e ex-músico de sua banda, interpretado pelo rapper Thaíde.

A periferia lhe trará novos tormentos. A mãe-costureira do garoto Mateus (Felipe Kenji) vai cobrá-lo pelo paradeiro do filho, desaparecido desde que fôra entregar encomenda (um vestido novo) a uma madame na parte descolada da cidade. Como esta não pagou em efetivo (promete fazê-lo em depósito bancário!), o menino não dispõe de dinheiro nem para voltar para casa.

Iberê Carvalho, depois do generoso (e nostálgico) “O Último Cine Drive-in” (2015), somou-se ao inquieto diretor e roteirista uruguaio Pablo Stoll (do cult “Whisky”) para construir história tensa e explosiva. Recorreu, também, às imagens febris e poderosas de Pablo Baião. Convocou intérpretes descolados como Thaíde, Roberta Estrela D’Alva e os jovens Thamyris O’Hanna, Dandara de Morais e Thalles Cabral. Na retaguarda, profissionais experientes como Bidô Galvão, Murilo Grossi e Theo Werneck. Para montar os fragmentos da longa e exaustiva noite vivida por Aurélio, Nina Galanternick plugou-se em ritmo vertiginoso.

Paulo Miklos, em sua passagem relâmpago por Gramado 2019 (na ocasião interpretava Chet Baker no teatro e o protagonista do longa “Jesus Kid”, de Aly Muritiba), contou não ter recebido com muito entusiasmo o convite para interpretar um roqueiro quase-sexagenário. Ou seja, um personagem dedicado ao mesmo ofício que o ocupava (na banda Titãs) e na mesma faixa etária.

Será que teria algo a acrescentar ao “homem cordial” do filme brasiliense-paulista?

Ele foi para casa e começou a ler o roteiro. Aí brotou o entusiasmo. “Vi a complexidade e os muitos desafios trazidos pelo personagem e mergulhei de cabeça no projeto”.

O resultado foi muito compensador para o músico-intérprete. E o será para o público. “O Homem Cordial” é um filme inquieto como seu protagonista. Mantém sintonia fina com os dramas sociais que o Brasil acumula há séculos – pobreza, racismo, violência e falta de perspectiva para infantes (como o filho da costureira periférica) e jovens. Agora, agravados por cancelamentos e linchamentos virtuais açodados, sem chance e tempo de defesa para o acusado.

A trama parecerá confusa ao espectador, em especial a quem não está muito acostumado ao caráter fragmentário das redes sociais.

Aurélio é, realmente, responsável pela morte de um policial? Ou foi um acidente? Onde está o filho da costureira? Por que as pessoas acreditam, instantaneamente, em qualquer vídeo que ganhe carga viral na internet? Se tudo nos parece nebuloso, aos poucos compreenderemos o que jogou o músico naquele pesadelo.

Para quem gosta de buscar diálogos (intencionais ou casuais) entre filmes, vale notar que Paulo Miklos, na pele de Aurélio, viverá situação oposta à outro de seus feitos cinematográficos. No descolado curta “Quando Parei de me Preocupar com Canalhas” (Tiago Vieira, 2015), o titã interpreta motorista muito do reacionário, malufista até a medula, que atormenta a vida de um passageiro, João Carlos (Matheus Nachtergaele).

Em “O Homem Cordial”, perdido na noite e sem grana, Aurélio tentará convencer um motorista de táxi a levá-lo até sua casa, quando pegaria dinheiro para pagar a corrida. Ao reconhecer o “assassino (virtual) do policial”, o taxista o deixa ao Deus dará, depois de bater-lhe a porta na cara e dirigir-lhe impropérios.

Como “A Longa Noite de Loucuras” (La Notte Brava, Mauro Bolognini, roteiro de Pasolini, 1959) e o scorsesiano “Depois de Horas”, Iberê Carvalho e sua trupe realizaram obra que merece bom diálogo com o público, pois tem muito a dizer. E o faz com pulsão de vida e muita inquietação.

 

O Homem Cordial
Brasil, 2019-2023, 83 minutos
Direção: Iberê Carvalho
Elenco: Paulo Miklos, Thaíde, Roberta Estrela D’Alva, Tamirys O’Hanna, Dandara de Morais, Thales Cabral, Felipe Kenji, Bidô Galvão, Murilo Grossi, Bruno Torres, Theo Werneck, Fernanda Rocha, Mauro Shames, André Deca
Fotografia: Pablo Baião
Direção de arte: Maíra Carvalho
Montagem: Nina Galanternick
Design de som: Daniel Turini, Fernando Henna e Henrique Chirchu
Distribuidora: O2 Play

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