“Casa Izabel”, filme queer, é o convidado da abertura do Olhar de Cinema em festa na Ópera do Arame

Por Maria do Rosário Caetano

O Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba promove sua renovada festa de abertura na noite de quarta-feira, 14 de junho, num dos pontos mais badalados da capital paranaense – a Ópera do Arame, imenso teatro instalado no Parque das Pedreiras. Os ingressos para noite inaugural – com capacidade para 1.572 pessoas – estão esgotados.

O que provoca tamanho frisson?

Um filme paranaense – “Casa Izabel” (foto), do descoladíssimo Gil Baroni, umas das forças do cinema queer brasileiro. Com ele na empreitada estão o escritor e roteirista Luiz Bertazzo e um time de atores comandado pelo consagrado Luiz Mello, protagonista de grandes montagens de Antunes Filho (“Vereda da Salvação”, “Trono de Sangue”, Gilgamesh”), de muitas telenovelas (“O Cravo e a Rosa”) e intérprete do “Diabo” no filme “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes.

Curitibano de 63 anos, devotado ao teatro, Mello foi protagonista de ruidoso “divórcio” com Antunes Filho, quando decidiu dedicar-se, também, à TV. O inventivo e exigente diretor do CPT (Centro de Pesquisa Teatral, mantido pelo Sesc) acusou seu brilhante ator de estar preocupado em “comprar eletrodomésticos” com os recursos que adviriam dos folhetins da Rede Globo.

O curitibano teve cabeça fria e seguiu em frente. Fez especiais, séries (a ótima “A Muralha”) e muitas telenovelas. Mas nunca abandonou o teatro. E manteve sua casa no estado natal. A presença de Luiz Mello à frente do elenco de “Casa Izabel”, filme vencedor do Festival de Cinema de Pernambuco e escolhido para abrir o Olhar de Cinema, promete causar sensação. Com elenco coral, Mello — ao lado de, entre outros, Jorge Neto, Laura Haddad, Luiz Carlos Pazello, Andrei Moscheto e Zeca Cenovicz — interpreta um dos crossdressers que passam a ocupar, na Curitiba da década de 1970, um casarão isolado (a Casa Izabel do título), fundado pela elite escravocrata que o edificou durante o Brasil imperial. Lá, os novos ocupantes se vestem com trajes femininos e realizam sonhos de luxo e fantasia.

Só que, na história urdida por Bertazzo, a Casa (Grande) Izabel esconde muito mais do que os caprichos e devaneios secretos de seus hóspedes. Do encontro dos crossdessers resultará “trama de suspense e tensão crescentes, na qual o passado ditatorial” será encarado “por afiada mirada queer”.

Depois da noite de inauguração, a décima-segunda edição do Olhar de Cinema prosseguirá, até 22 de junho, com a exibição de 87 filmes de curta, média e longa-metragem, em duas salas do charmoso Cine Passeio e mais duas no Cineplex Novo Batel, plantado em dos mais vistosos shopping centers curitibanos.

A escolha de um filme LGBTQ+ para a abertura do Festival de Curitiba, além de mobilizar mais de 1.500 pessoas em sessão única – algo impensável nos seus onze anos de história –, indica que o outrora “cabeçudo” Olhar de Cinema está dando mais atenção ao cinema paranaense, brasileiro e ao público. Afinal, troca sessão inaugural de longa-metragem convidado (antes projetado em duas ou três salas pequenas, atingindo menos de 500 espectadores) pela prata-da-casa exposta nos mesmos moldes do badaladíssimo Festival de Teatro de Curitiba. Ou seja, utiliza a  Ópera do Arame, segunda atração mais procurada pelos turistas vindos do interior do estado e de todas as regiões do país (e do exterior), quando visitam a capital paranaense.

Outra mudança significativa do Olhar de Cinema: pela primeira vez, o festival contará com uma mostra competitiva de filmes brasileiros. São seis ao todo. Antes, duas produções brasileiras eram colocadas em cada uma das diversas mostras do evento e acabavam não tendo o destaque desejado por seus produtores e realizadores.

Os poucos troféus distribuídos pelo festival curitibano em seus onze primeiros anos acabavam não laureando a produção nacional. Agora, além de melhor filme, outros créditos serão valorizados com prêmios (melhor direção, atriz, ator, roteiro etc.). Esta é a mais significativa mudança do remodelado Festival de Curitiba.

O Paraná tem cineasta importantes como Marcos Jorge (“Estômago”), Heloisa Passos (“Construindo Pontes”), Aly Muritiba (“Para minha Amada Morta”), Fernando Severo (“O Mundo Perdido de Kózak”), Rodrigo Grota (“Leste Oeste”), entre outros. O jovem Gil Baroni, diretor de “Casa Izabel” depois de alguns curtas, estreou no longa-metragem com uma colorida comédia LGBTQ+ de nome curto e mobilizador – “Alice Jr” (2018). Sua protagonista era (é) uma jovem trans, envolvida com o mundo das redes sociais. Depois de percorrer dezenas de festivais – a estreia aconteceu na mostra Generation de Berlim –, o filme, uma comédia pop e descolada, serviu como estandarte do cinema paranaense e chegou ao circuito comercial sem fazer feio. E ainda encontrou vitrine na poderosa Netflix.

Entre as muitas mostras do festival curitibano, há uma dedicada por inteiro ao cinema do estado das Araucárias. Para a edição deste ano foram selecionados dois longas e oito curtas (ver lista abaixo).

Os filmes concorrentes da recém-criada competição brasileira são majoritariamente assinados por nomes femininos. O mineiro Rafael Conde é o bendito-fruto entre as mulheres. Ele participa com “Zé” (inspirado em personagem real, o militante estudantil José Carlos da Mata Machado, assassinado pela ditadura militar aos 27 anos). As realizadoras que apresentarão seus novos filmes são Fernanda Faya (“Neirud”), Flora Dias (“O Estranho”, em parceria com Juruna Mallon), Alice Riff (“O Policial e a Pastora”), Amanda Pontes e Micheline Helena (“Quando Eu me Encontrar”) e Suellem Vasconcelos (“Toda Noite Estarei Lá”, em parceria com Tati Franklin).

Outro segmento especial do Olhar de Cinema – a mostra “Exibições Especiais” – trará cardápio dos mais empolgantes. A começar pela sessão de “A Invenção do Outro”, documentário de Bruno Jorge, grande vencedor do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, ano passado. O filme mostra o ambientalista Bruno Pereira (assassinado um ano atrás, no Vale do Javari, ao lado do jornalista britânico Dom Phillips), acompanhado de indígenas da nação Koburo, indo ao encontro de parentes ainda não-contatados.

Ao filme “Invenção do Outro” se somarão mais quatro títulos brasileiros – “Diálogos com Ruth de Souza”, de Juliana Vicente (mesma realizadora do sacudido documentário protagonizado por Mano Brown e os Racionais MC’s), “O Acidente”, de Bruno Carboni, “Caixa Preta”, de Saskia e Bernardo Oliveira, e “Lá nas Matas Tem”, de Pedro Apahan e César Guimarães.

Dois filmes estrangeiros completam as Sessões Especiais: o francês “O Muro dos Mortos”, de Eugène Green (o mesmo do cultuado “La Sapienza”) e o chileno “Notas para una Película”, de Ignácio Agüero, realizador já premiado no Olhar de Cinema com o belo “O Vento Sabe que Voltarei para Casa” (2016). Não é exagero dizer que Agüero forma com Patricio Guzmán (“A Batalha do Chile”, “Nostalgia da Luz”) a dupla de mais sólida obra documental construída no país andino.

Na noite de encerramento (e entrega do Troféu Olhar de Cinema, de design original e cinematográfico), será exibido “Agressor”, de Jennifer Reeder. O filme faz parte de uma das sensações do cinema contemporâneo – o filme de horror feminista. A cineasta estadunidense volta seu olhar para Jonny (Kiah McKirnan), que é mandada pelo pai à casa da tia (a ex-patricinha Alicia Silverstone), pois muitas jovens estão desaparecendo de forma misteriosa.

A produção estrangeira terá mostra competitiva própria e contará com seis títulos contemporâneos e independentes, nenhum vindo do mundo anglo-saxão. Há filmes europeus (França, Dinamarca e Croácia), latino-americano (Colômbia), asiático (Japão) e africano (Senegal) — ver lista abaixo.

Quem prestar atenção na nova configuração do Olhar de Cinema, constatará que o evento tornou-se mais simples e atrativo. E o fez sem perder seu rigor e olhar prospectivo. Por sorte, deixou de lado jargões “cabeçudos”, que confundiam ao invés de explicar seus propósitos (ou eixos curatoriais). A simplicidade e a clareza só fazem bem ao festival e aos milhares de espectadores que procuram suas sessões ao longo de seus nove dias de duração (contando a repescagem).

Quem não puder comparecer à cidade de Curitiba, poderá acompanhar, gratuitamente, parte da programação (principalmente de curtas-metragens) pela plataforma Itaú Play, serviço de streaming do Itaú Cultural.

O Olhar de Cinema prestigia, em especial, o cinema contemporâneo, aquele voltado à invenção de linguagem e a temas desafiadores. Mas seu comando nunca se descuidou do diálogo com o cinema do passado. Todos os anos, são apresentados grandes filmes de outrora. Houve ano em que os cinéfilos curitibanos e visitantes se extasiaram com o polonês “Manuscrito Encontrado em Zaragoza”, de Wojciech Has, protagonizado pelo astro Zbigniew Cybulski (“Cinzas e Diamantes”, de Andrezj Wajda). Em outra edição, a curadoria, plugada no diálogo com a tradição do cinema, apresentou “Gente no Domingo”, primeira experiência de vários jovens austríacos e alemães, entre eles o futuro Billy “Crepúsculo dos Deuses” Wilder, roteirista de mão cheia e grande diretor. O então jornalista atrevido e aspirante a cineasta ajudou a escrever o filme realizado em 1930 e dirigido por Robert Siodmak e Edgard G. Ulmer.

Inesquecível tornou-se, também, mostra de obras raras de F. W. Murnau, que deixou os amantes do cinema em estado de graça. O Olhar Clássico possibilitou ainda a descoberta dos filmes do senegalês Djibril Diop Mabéty e dedicou ao francês Jean Rouch e a seus seminais documentários uma bela mostra.

Nesse ano, o segmento Olhares Clássicos contará com um filme brasileiro cinquentão, o thriller-pop-gay “A Rainha Diaba”, de Antônio Carlos da Fontoura, em cópia restaurada em 4K. Realizado num tempo (começo dos anos 1970) quando a expressão “cinema queer” não existia, o filme vem, em nossos dias, mobilizando plateias majoritariamente jovens. Fez sucesso até no Festival de Berlim, em fevereiro último, e tem convites para dezenas de festivais nacionais e internacionais.

Além da “Diaba” encarnada em Milton Gonçalves, serão exibidos o belga “Jeanne Dielman”, de Chantal Akerman (1975), eleito recentemente “o melhor filme de todos os tempos“ pelo BFI/Sight and Sound, o espanhol “Cria Cuervos”, de Carlos Saura (1976), o britânico “A Paixão da Lembrança”, de Maureen Blackwood e Isaac Julien (1986), o francês “En Rachâchant”, da dupla Straub e Huillet (1982), e os estadunidenses “Salomé”, de Bryant e Nazimova (1923), e “No Calor da Noite”, de Norman Jewison (1967).

A ampliação do espaço da produção brasileira no Olhar de Cinema não significa que a parte internacional esteja desprestigiada. Continuarão chegando às telas curitibanas filmes oriundos dos cinco continentes. Um país, em especial, o Canadá, será o homenageado. Além de retrospectiva de David Cronenberg, de 80 anos, seu mais badalado realizador (junto com Denys Arcand e Denis Villeneuve), o Olhar lançará sua mirada sobre a produção contemporânea de documentários do Quebec, o Canadá de expressão francesa.

Mostra de Longas-Metragens Brasileiros

. “Zé”, de Rafael Conde
. “O Estranho”, de Flora Dias e Juruna Mallo
. “Neirud”, de Fernanda Faya
. “O Policial e a Pastora”, Alice Riff
. “Quando Eu me Encontrar”, de Amanda Pontes e Micheline Helena
. “Toda Noite Estarei Lá”, de Suellem Vasconcelos e Tati Franklin).

Mostra Mirada Paranaense

. “Fale Comigo Verão: O Diário de Um Cineasta Amador”, de Evandro Scorsin (longa)
. “Solange”, de Nathália Tereza e Tomás Osten (longa)
. “Blackout”, de Rodrigo Grota (curta)
. “A Trilha Sonora de um Bairro”, de Betinho Celanex e Danilo Custódio (curta)
. “Menininha”, de Débora Zanatta (curta)
. “Pés que Sangram”, de Roberta Takamatsu (curta)
. “Midríase”, de Eduardo Monteiro (curta)
. “Pixo na Cidade Modelo”, de Willian Germano (curta)
. “Sereia”, de Estevan de la Fuente (curta)
. “Só por Hoje”, de Stillo Eustachio, Dionwill e Jessica Candall (curta)

Mostra Competitiva Internacional

. “A Migração Silenciosa”, de Marlene Choi (Dinamarca)
. “Anhell 69”, de Theo Montoya (Colômbia)
. “Disco Boy”, de Giacomo Abruzzese (França)
. “Lembranças de Todas Noites”, de Yui Kiyohara (Japão)
. “Lugar Seguro”, de Juraj Lerotic (Croácia)
. “No Cemitério do Cinema”, de Thierno Souleymane Diallo (Senegal)

Mostra Novos Olhares

. “O Mel é Mais Doce que o Sangue”, de André Guerreiro Lopes (Brasil)
. “A Portas Fechadas”, de João Pedro Bin (Brasil)
. “Desvio de Noche”, de Paul Chotel e Ariane Falardeau (Canadá)
. “Mudos Testemunhos”, de Jerónimo e Luís Ospina (Colômbia)
. “Notas do Eremoceno”, de Vera Cákacanyová (Eslováquia)
. “A Vida e as Estranhas e Surpreendentes Aventuras de Robson Cruzoé, que Viveu 28 Anos Sozinho em Ilha e Disse que Era Dele”, de Benjamin Deboosere (Bélgica)

Mostra Brasileira de Curtas-Metragens

. “Virtual Gênesis”, de Arthur B. Senra
. “Ramal”, de Higor Guimarães
. “O Mar Também é Seu”, de Michelle Coelho
. “Apocalypse Repentino”, de Pedro Henrique
. “As Inesquecíveis”, de Rafaelly la Conga Rosa
. “Cemitério Verde”, de Maurício Chades
. “Kanau’Kyba”, de Gustavo Cacoco
. “Thue Pihi Kuuwi – Uma Mulher Pensando”, de Ainda Harika, Edmar Tokorino Yanomami e Rosane Yariana

Mostra Internacional de Curtas-Metragens

. “Um Caroço de Abacate”, de Ary Zara (Portugal)
. “Maria Schneider, 1983”, de Elisabeth Subrin (EUA)
. “Mecânica dos Fluidos”, de Hala Hernandez (Espanha)
. “Paralelo 45”, de Lawrence Abu Hamdam (Inglaterra)
. “A Moça”, de Fardin Ansari (Irã)
. “Fuga de Visão”, de Zuqiang Peng (China)
. “Humano Não-Humano”, de Nathan Castay (Bélgica)
. “Pele de Mãe”, de Leah Jonston (Canadá)
. “Uma Espécie de Testamento” , de Vuillermin Stephen (França)

Mostra Pequenos Olhares

. “Fabulosos João e Maria”, de Arnaldo Galvão (longa-metragem, 101 minutos)
. Curtas brasileiros e estrangeiros: “A Menina e o Mar”, “A Pedra Mágica”, “Coelhitos e Gamazitas”, “De Miau a Pior”, “Diafragma”, “Jussara”, “Shackle”, “Teo, o Menino Azul”

Mostra Foco – Documentários do Québec

. “Bestiário”, de Denis Côté
. “Kassinu”, de Uapukun Mestokosho
. “Cantos Guturais em Kangirsuk”, de Eva Kaukai e Manon Chamberlain
. “L.A. Tea Time”, de Sophie Bedard
. “Virus”, de Réal Junior
. “Conceda-me sua Confiança”, de Isabelle Kanapél
. “Novembro”, de Iphigénie Marcoux-Fortier e Karine van Ameringeni
. “O Innu do Futuro”, de Stéphane Neptoni
. “Perdi minha Mãe”, de Denys Desjardins
. “Xalko”, de Hind Benchekrkroun e Sami Mermerl

Mostra Olhares Clássicos

. “Salomé”, de Bryant e Nazimova (EUA, 1923)
. “No Calor da Noite”, de Norman Jewison (EUA, 1967).
. “Jeanne Dielman”, de Chantal Akerman (Bélgica, 1975)
. “A Rainha Diaba”, de Antônio Carlos da Fontoura (Brasil, 1975)
. “Cria Cuervos”, de Carlos Saura (Espanha, 1976)
. “En Rachâchant”, da dupla Straub & Huillet (França, 1982)
. “A Paixão da Lembrança”, de Maureen Blackwood e Isaac Julien (Inglaterra, 1986),

Máquina de Cicatrizes – Retrospectiva David Cronemberg

. “Ralo Acima” (1975, 14 minutos)
. “Calafrios” (1976, 87′)
. “Videodrome: A Síndrome do Vídeo” (1983 – 87′)
. “A Mosca” (1986)
. “Gêmeos: Mórbida semelhança” (1988)
. “Crash: Estranhos Prazeres” (1996)
. “eXistenZ” (1999)

 

O Olhar de Cinema 2023 – 12º Festival Internacional de Curitiba
Mostra Brasileira, Mostra Internacional, Novos Olhares, Exibições Especiais, Mirada Paranaense, Foco, Olhares Clássicos, Olhar Retrospectivo e Pequenos Olhares, esta para crianças
Data: 14 a 22 de junho
Locais: Cine Passeio e Novo Batel (mostras presenciais)
Ingressos: R$14,00 (podem ser comprados pelo site do Festival ou nas bilheterias dos cinemas)
Sessões on-line: na plataforma Itaú Play (de 20 de junho a 4 de julho, com acesso gratuito, em todo território brasileiro)

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