Músicas de Chico Buarque embalam “Quando Eu me Encontrar”, drama minimalista cearense

Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba

A apresentação de “Quando Eu me Encontrar”, drama minimalista das cearenses Amanda Pontes e Michelline Helena, na competição brasileira do festival Olhar de Cinema, foi precedida de fala entusiasmada de um dos curadores da maratona curitibana, o crítico e cineasta Eduardo Valente.

Antes de chamar ao palco as diretoras e elenco do filme, Valente festejou o triunfo de outro longa-metragem cearense – no caso “Estranho Caminho”, de Guto Parente – no Tribeca Festival, em Nova York. O filme evocado conquistou quatro prêmios na competição norte-americana (melhor realização da mostra internacional, melhor ator para Carlos “Marte 1” Francisco, melhor roteiro e fotografia). “E no júri”, lembrou o curador, “estava o ator Brandon Fraser (“A Baleia”)”. Um ponto liga o filme de Parente ao de Amanda e Michelline. Este é produzido pela Marrevolto, de Pedro Diógenes, cineasta que integrou, ao lado de Guto e dos irmãos Pretti, o coletivo Alumbramento, força renovadora do cinema cearense.

Amanda e Michelline, que fazem sua estreia no longa-metragem, apresentaram ao público, que lotou o Cine Novo Batel, suas atrizes, a baiana Luciana Souza, de “Opaió” e da telenovela “Flores Raras“, e as cantoras (ou melhor, cantrizes) Di Ferreira e Adna Oliveira. Com elas, o ator David Santos, que interpreta um vendedor de sapatos, de nome Antônio.

O filme cearense, uma ficção escrita pelas duas diretoras, começa com o desaparecimento de Dayane (voz de Larissa Góes), noiva do jovem e apaixonado Antônio. O rapaz se desespera, bebe, resmunga e chora suas dores pelos bares. A mãe da desaparecida, Marluce (Luciana Souza), ao contrário daquele que seria seu genro, amarga as dores da perda de forma introspectiva. Segue sua vida de vendedora de comidas de rua e tudo faz para que a filha mais nova, Mariana (Pipa), lhe dê alegrias e desfrute um futuro promissor. Tanto que consegue bolsa de estudos para ela num colégio de classe média alta.

Construído com pegada minimalista (que ninguém espere as reviravoltas vistas no documentário “Neirud”), a trama vai centrar-se em três gerações de mulheres, Marluce, sua mãe Iolanda (Adna Oliveira) e Mariana, estudante do colegial. Todas marcadas por muitas ausências, embora a mais jovem seja cheia de atitudes. Em torno delas (e até de Antônio) circundam duas mulheres plenas de vitalidade – a cantora Cecília (Di Ferreira, cantora na vida real) e a vizinha de Marluce, a efusiva Wanda (Cláudia Pires). Se Marluce é só contenção e sofrimento sublimado, Wanda é pura alegria, cuida do corpo, faz ginástica e se esbalda nas noites forrozeiras de Fortaleza.

A música e, em certa medida, a dança são vitais em “Quando Eu me Encontrar”. Duas canções — podemos garantir — fazem de Chico Buarque uma espécie de roteirista involuntário do filme: “Trocando em Miúdos”, parceria com   Francis Hime, e “Uma Canção Desnaturada”.

No momento mais inspirado e cinematográfico do filme, Marluce volta, num ônibus semivazio, da casa da mãe Iolanda, com quem está rompida. O encontro não cura as velhas feridas. Em desempenho magistral, Luciana Souza concentra em seu rosto as dores do mundo. E o versos lancinantes que Elba Ramalho imortalizou na “Ópera do Malandro”, soam, potentes e narrativos, na voz da cantora (e agora atriz) Adma Oliveira. Ou seja a intérprete da mãe da personagem de Luciana Souza. Ouvimos versos de desabafo de uma mãe – “Te ver as pernas bambas, curumim/ Batendo com a moleira/ Te emporcalhando inteira/ E eu te negar meu colo/ Recuperar as noites, curumim/ Que atravessei em claro/ Ignorar teu choro / E só cuidar de mim” (…).

No debate do filme, as diretoras garantiram que “desde a fase de roteirização do filme, iniciada em 2017”, escolheram as músicas de Chico Buarque para a composição orgânica de sua trama rarefeita e minimalista.

Luciana Souza, ao centro, Di Ferreira, à esquerda, e Adna Oliveira, à direita

A produtora Caroline Louise, por sua vez, garantiu que “não foi difícil adquirir os direitos de uso de ‘Trocando em Miúdos’ e “Uma Canção Desnaturada’, pois os custos eram compatíveis com o orçamento do filme”. Já outra composição, do acervo da gravadora Sony Music, resultou em problema pela exorbitância do valor em se tratando de um filme de orçamento modesto”.

Amanda e Michelline fizeram questão de envolver a cena musical cearense na trama de “Quando Eu me Encontrar”. Tanto a cena jovem (a banda Pulso de Marte, que embala festa colegial-adolescente na qual Mariana se esbalda), a cena forrozeira e as músicas de bar que compõem o repertório da cantora Cecília e embalam as dores de amor do sofrido Antônio. E há Cartola (“Preciso te Encontrar”) e a trilha incidental, dos cearenses Victor Cozilo e João Victor Barroso.

As diretoras contaram que Cláudia Pires, que estreia como atriz (no papel da vizinha louca por forró) é do ramo! Tanto que foi dançarina da banda de Beto Barbosa. Quem prestar atenção em Wanda, verá o show de malemolência que ela dá para os olhos tímidos da contida Marluce. E dos espectadores.

O público, quando deparar-se com o filme, poderá até pensar que “não acontece nada na trama”. Acontece sim, mas nas entrelinhas, no rosto, gestos e crispações de mulheres comuns, nas pequenas alegrias (no canto, nos trejeitos do forró, na dança de Mariana na festa dos colegas ricos).

As diretoras-roteiristas não queriam registrar fatos épicos. Apostaram no íntimo, nas dores cotidianas, que, na maioria das vezes, passam despercebidas. “Fizemos questão de deixar claro que Dayane partiu por vontade própria, que não foi sequestrada”. Nem assassinada num beco escuro. Ela deixou um bilhete (que não será lido para o espectador). Partiu para quebrar o ciclo daquelas vidas miúdas, que não saem no jornal.

O segundo longa da competição internacional – “No Cemitério do Cinema”, de Thierno Souleymane Diallo – veio da África. Em especial da Guiné Equatorial, aquele país colonizado pela França, que causou escândalo no Brasil por ter assumido patrocínio milionário de escola de samba de primeira linha do Carnaval carioca.

Seu protagonista é o próprio Souleymane. Ele perambula por empoeirados vilarejos do país, descalço, com uma câmera no ombro e um imenso microfone alojado em sua mochila. Empreende larga itinerância por regiões pobres de seu país, em busca de um filme realizado em 1953, que seria o primeiro da fase em que realizadores guineenses, apoiados por revolução socialista, sonharam com uma indústria de cinema.

Vieram a contra-revolução e a barbárie. A produção audiovisual estagnou-se e nascente projeto de Cinemateca transformou-se em um cemitério de celuloide. O filme procurado sobreviveu a esse tempo de horror? É possível encontrar algum integrante de sua equipe? Ou alguém que o tenha assistido, 70 anos atrás? Esse filme existe mesmo ou é uma lenda? Estará depositado na Cinemateca Francesa?

Em cativantes 93 minutos veremos o carismático cineasta-ator realizar seu documentário. Documentário? Melhor definir o filme como um híbrido. E frui-lo, pois o jovem realizador, formado em cinema pelo Instituto Superior de Artes da Guiné, é um talento nato. E apaixonado pelo documentário e suas imensas possibilidades. Tanto que foi para duas outras nações africanas – Niger e Senegal – aperfeiçoar-se no cinema não-ficcional. Depois de alguns curtas e dois médias-metragens, ele fez sua estreia no longa com este substantivo “No Cemitério do Cinema”.

Em cena, vemos grandes salas de exibição guineenses arruinados e fechados nas décadas de 1980 e 90. Latas com películas degradadas pelo tempo. Um panorama desolador. Mas, por sorte, jovens como Souleymane insistem em fazer cinema na periferia do capitalismo e de Hollywood.

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